No Brasil, as águas são muitas, mas não são infinitas
Professora de Relações Internacionais e Meio Ambiente questiona, no terceiro artigo da série sobre o novo marco do saneamento, a legitimidade e consequente adesão à Lei 14.026/20, que destoa da Política Nacional de Resíduos Sólidos, pode criar embates profundos nos estados e arrisca contaminar as águas por causa da má gestão do lixo urbano
No período marcado pelo fim do tráfico internacional, em função dos interesses econômicos da Inglaterra, o Estado brasileiro foi pressionado a editar uma lei de veto ao comércio de escravos no Atlântico, em 1831. Entretanto, a escravidão era o sustentáculo da nossa economia e a influência inglesa não agradou em nada aos políticos da época, já que todos tinham ligações com os comerciantes que controlavam aquele “infame comércio”; logo, a proibição nunca foi cumprida de fato, ficando a lei de 1831 conhecida, na época, como “para inglês ver”. Essa expressão caiu nas graças do povo e até hoje é usada para nomear tudo o que parece ser, mas não é.
Infelizmente, esse mau hábito do nosso passado não foi superado e muitas são as leis que temos “para inglês ver”. Esse é o risco que corre a Lei 14.026/20, que atualiza o marco legal do saneamento básico brasileiro, já que, com o veto do presidente, uma das principais mudanças que a versão final propõe é o fim do monopólio da prestação de serviço de saneamento das companhias estatais para os municípios, incentivando a concorrência entre empresas públicas e privadas. Além de criar uma grande demanda para a atuação da parceria entre empresas públicas e privadas, os estados perderão uma parcela significativa da sua fonte de arrecadação e os municípios terão muitos problemas para realizar novas licitações.
Cabe lembrar que a lei só foi aprovada no Senado porque o relator estabeleceu consenso com o artigo 16, em que os contratos de programas, ainda em vigor, pudessem ser mantidos e prorrogados por trinta anos, desde que as empresas comprovassem a viabilidade econômica. Com o veto desse item, a direção política do governo inicia mais um conflito com as entidades políticas subnacionais e fragiliza, ainda mais, a estabilidade do pacto federativo brasileiro, porque mais uma vez os interesses locais foram contrariados pelo governo central.
Quando olhamos para a capacidade fiscal e reguladora do modelo de Estado que vigora no Brasil é possível estimar que a Lei 14.026/20 não cumprirá o que promete – que é a intenção de fazer com que todos os contratos alcancem a meta de universalização para a população em até 90% do fornecimento de água e 99% do tratamento de esgoto até 2033. Embora, pelo texto aprovado, a Agência Nacional de Águas (ANA) permaneça com a competência da regulação e da fiscalização das agências estaduais, ela já entra limitada nesse cenário, porque o Brasil é um país continental que conta com 5.568 municípios. E, graças à emenda do teto dos gastos públicos, certamente não terá orçamento para ampliar o número de agentes fiscais para atuar na verificação do cumprimento ético da lei, diante dos milhares de contratos que serão gerados.
No campo das políticas públicas, nunca devemos esquecer que o Brasil é uma grande constelação de municípios, possuindo o traço marcante da diversidade sociocultural, com muitas desigualdades sociais, regionais e orçamentárias. Essa estrutura gera inúmeros conflitos e rivalidades impeditivos à sinergia do trabalho entre as cidades, da mesma forma que faltam instâncias de cooperação entre elas, seja por meio de um consórcio ou por outra prática gestora de cooperação compartilhada. E o Estatuto da Metrópole – que deveria facilitar a governança interfederativa – também ficou só no papel. Por isso, quem comemorou o fato de que o novo marco do saneamento aumentará a participação privada no setor, por meio de novas licitações e facilitação dos consórcios intermunicipais, pode se preparar para lidar com uma grande dor de cabeça.
Falamos da cooperação entre governança municipal para analisar a política de saneamento, porque as águas superficiais e subterrâneas não conhecem os limites das nossas fronteiras políticas administrativas. A falta de saneamento básico de um município impacta na qualidade da água disponível para si e todos os seus vizinhos, consequentemente na saúde da sua região. Assim, como os nossos veios de águas e malhas de esgotos são codependentes, água e lixo também; por isso, o saneamento básico trata, da mesma forma, da disposição final adequada dos nossos resíduos sólidos, pois quando não há tratamento sustentável dos nossos resíduos, o chorume gerado pela decomposição contamina rios e lençóis freáticos, ameaçando a disponibilidade global de água pura.
Por esse impacto ambiental, é necessário comparar a Lei do Saneamento com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), criada pela Lei 12.305/2010, que incluiu no rol de seus princípios a meta do poluidor-pagador e estimulou o fortalecimento da cooperação entre os municípios, com artigos incentivadores para a promoção da gestão compartilhada. O principal objetivo dessas inovações foi estimular arranjos produtivos, que são viabilizados por meio do reaproveitamento energético dos resíduos sólidos nas cadeias produtivas locais.
Mesmo com todos os entraves orçamentários que impedem a aplicabilidade da PNRS na sua totalidade, a obrigatoriedade da coleta seletiva foi popularizada no Brasil e, com isso, foi desencadeada a profissionalização dos catadores de materiais recicláveis; consequentemente, muitos deles se libertaram da situação de extrema pobreza e das condições de trabalho análogas à escravidão a que eram submetidos.
Por todos esses motivos, a PNRS é um modelo de contribuição para a redução das desigualdades sociais por meio de políticas públicas. Dentre os fatores indutores desse resultado estão o protagonismo do movimento nacional dos catadores de materiais recicláveis, a construção da lei por meio de processo participativo, incluindo-se todos os atores interessados e a prescrição das obrigatoriedades indispensáveis em seu texto.
Além da Lei 14.026/20 não ter sido inspirada por nenhum daqueles fatores da gestão democrática, ela agrava a situação atual da gestão dos resíduos sólidos, porque flexibiliza o prazo para os municípios desativarem seus lixões. Isso pode ser interpretado por parte das cidades que não elaboraram seu plano de gestão de resíduos como uma anistia para postergar o encerramento dos seus lixões a céu aberto.
Segundo a PNRS, o prazo para a extinção de lixões e substituição por aterros sanitários deveria ter ocorrido até quatro anos após a implantação da lei, entre 2010-2014. Como grande parte dos municípios não alcançou a meta, eles receberam um perdão em 2015, quando o Senado aprovou um novo prazo, de acordo com o tamanho das cidades: 2019 para as cidades com mais de 100 mil habitantes; 31 de julho de 2020 para aquelas com população entre 50 e 100 mil; 31 de julho de 2021 para cidades com menos de 50 mil. Agora, a nova lei de saneamento alargou esse prazo, de acordo com o artigo 54: as cidades capitais de estados e metropolitanas têm até 2 de agosto de 2021; 2 de agosto de 2023 para cidades com população entre 50 e 100 mil e 2 de agosto de 2024 para cidades com menos de 50 mil.
A nossa constelação municipal não precisa do perdão do Estado brasileiro, mas de redistribuição orçamentária para recuperar o passivo ambiental dos lixões e construir aterros sanitários e/ou usinas de tratamento dos resíduos, que usem técnicas que reduzam a decomposição do solo, disponibilizando mais áreas para agricultura urbana sustentável, por exemplo. Se a maior parte das empresas privadas, que operam no setor do saneamento básico, toma capital de investimento emprestado do BNDES e do FGTS,[1] isso significa que o Estado brasileiro tem os recursos disponíveis, restando saber por que não quer compartilhá-los com as cidades.
Quanto mais tempo os lixões existirem no Brasil – e aqueles desativados não forem recuperados –, maior o tamanho da contaminação das águas superficiais e subterrâneas. Quando as empresas multinacionais interessadas nas brechas da privatização da água (que o novo marco regulatório do saneamento básico abriu) perceberem, elas descobrirão que não há mais água pura disponível nem para comprar, nem para vender. De nada adianta discutir os direitos que temos em relação à água pura e reclamar a nossa soberania sobre a gestão desse patrimônio sem nos comprometermos a cuidar de erradicar os passivos ambientais gerados pelo lixo. Não precisamos de outra lei e sim fazer valer as diretrizes da PNRS.
Assim, terá o Brasil contrariado a benção que recebeu da natureza, onde se lê na Carta de Pero de Vaz de Caminha, “águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. Lamentavelmente, não haverá mais abundância e assim teremos que refundar a identidade brasileira porque, sem água pura disponível, nada que se plantar nesta terra brasilis dará.
Suellen Péres de Oliveira é historiadora, professora do curso de Relações Internacionais e Integração na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e cofundadora do Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer, atuando em pesquisas sobre gerenciamento integrado de resíduos sólidos; meio ambiente e relações internacionais; memória, identidades e acervos ambientais.
[1] Instituto Mais Democracia. Quem são os proprietários do saneamento no Brasil? Heinrich Böll Stiftung, Rio de Janeiro Office, 2018.
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Saneamento básico é condição mínima de dignidade e saúde. Parceria do Diplo Brasil com o Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer, esta série visa a colaborar com o debate sobre o novo marco legal do saneamento básico. Especialistas de diversas áreas evidenciam as implicações sociais, de saúde pública, jurídicas, econômicas e ambientais da gestão de água, esgoto e destinação do lixo urbano. Neste momento em que a pandemia ressalta a crise civilizatória que vivemos, o acesso à informação é essencial à transição para sociedades sustentáveis.