No front contra o Escola Sem Partido
Historiador Fernando Penna articula movimentos de defesa da educação desde 2015. Para 2019, convida a todos para a Ação Educação Democrática: ‘Temos a possibilidade de fortalecer a resistência. A hora é agora’
Às 3 horas de uma tarde de novembro, sol a pino no Rio, o historiador Fernando Penna, 39, se dirigia ao campus da UFF (Universidade Federal Fluminense). A travessia Rio-Niterói é habitual para o historiador, que desde 2013 integra o quadro docente da Faculdade de Educação.
Mas o smartphone tocou. Era a produtora Paula Lavigne, com quem o professor nunca tinha trocado uma palavra. Ela o convidou para participar de uma “conversa” na sua casa, em Ipanema, às 8 horas da noite. Ao lado do marido, Caetano Veloso, Lavigne reuniria artistas e ativistas da campanha 342 Artes, que combate a censura a manifestações culturais, para discutir dois temas: a Lei Antiterrorismo (que, se alterada, pode criminalizar movimentos sociais) e o Projeto de Lei Escola Sem Partido.
Guilherme Boulos (Psol), coordenador do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), discutiria a Lei Antiterrorismo. À frente do coletivo Professores contra o Escola Sem Partido, que se desdobrou no movimento Educação Democrática, que idealizou a iniciativa Ação Educação Democrática, Penna daria uma “aula” sobre o Escola Sem Partido. Depois do convescote cultural, Boulos e Penna foram entrevistados para o quadro Caetano Entrevista, da Mídia Ninja.
“Saí direto da aula à noite e fui pra lá correndo com uma mochila nas costas. Vestia uma camisa horrível, surrada, super-velha, mas não podia perder a oportunidade”, lembra Penna. A camisa (na verdade, uma esgarçada camiseta polo, de listras irregulares e tons de cinza) era um detalhe, já que o professor anda equipado com seu fiel passador de slides e seu notebook, contendo diversos modelos de conferências sobre o controverso tópico que se tornou a sua causa.
Desde 2015, Penna está rodando o país para discutir o Escola Sem Partido. Até fins de 2018, protagonizou mais de 300 palestras, aulas abertas, audiências públicas, podcasts e vídeos sobre o tema (este link reúne todos os materiais produzidos pelo autor). Por sua atuação, o historiador foi condecorado com a Medalha Tiradentes, da Assembleia Legislativa do Rio, indicado pelo deputado Flavio Serafini (Psol).
Penna não para. Nos primeiros dias de dezembro, ele emendou encontros diversos durante uma “semana de luta”: fez conferência com o historiador Diogo Salles em Niterói; voou para participar do relançamento da Frente Nacional Escola Sem Mordaça em Brasília; voou para duas palestras em Fortaleza; voltou à capital fluminense para dividir o palco com a filósofa Márcia Tiburi na Casa Pública. No último dia 19, véspera das férias e festas, integrou o Festival CPII Sem Censura, no Teatro Mário Lago.
O historiador não é remunerado pelas palestras e viaja a convite dos organizadores de cada encontro – “já teria falido se precisasse pagar todas as passagens”, diz. “Já fiz de tudo. Fiz duas jornadas atravessando cidadezinhas no interior do Rio Grande do Norte, peguei seis voos e 5 horas de carro para chegar a uma cidade no Rio Grande do Sul, aluguei carro para pegar 5 horas de estrada para Macaé e voltar para dar aula à noite em Niterói. Dei aula pública na Cinelândia, roda de conversa na ocupação estudantil de Feira de Santana (BA), entrevistas, debate direto com Miguel Nagib e por aí vai.”
Idealizado pelo advogado Miguel Nagib, por volta de 2004, e pivô de fervorosas discussões desde 2016, o Escola Sem Partido é um movimento conservador que alega uma “doutrinação ideológica” de esquerda nas escolas. Licença poética superlativa: segundo o argumento de seus defensores, é como se “docentes doutrinadores” buscassem incutir ideias nos alunos para a instauração de uma “ditadura comunista, feminazi, gayzista, abortista, racista reversa, heterofóbica e herege” no Brasil.
Apesar da visibilidade recente, principalmente durante as eleições de 2018, o Escola Sem Partido ficou por bastante tempo fora do radar de educadores. Era tratado apenas como um projeto “excêntrico” e “bizarro”. “Muitos não conheciam o movimento. E os que conheciam não o levavam a sério”, lembra Penna.
Em maio de 2014, o deputado Flávio Bolsonaro (à época PP, atualmente no PSL) propôs o Escola Sem Partido na Assembleia Legislativa do Rio. Penna estranhou e passou a pesquisar propostas legislativas: na época, projetos similares estavam se espalhando por diversas cidades, culminando no PL 7180/2014, que tramita no Congresso Nacional.
“E o mais surpreendente: o PL 7180 tinha tido um parecer positivo da Comissão Especial de Educação na época. Fiquei preocupado. O que estão propondo é grave. Mas se é tão grave, pensei, por que ninguém está discutindo o assunto? Fui procurar a página do Escola Sem Partido e tomei um susto maior ainda. Notei que era um assunto sério, que precisava ser enfrentado de frente.”
PL 7180/2014
Fernando Penna passou a comentar o Escola Sem Partido nas aulas de Ensino de História, que aborda políticas públicas educacionais. Em junho de 2015, organizou uma primeira roda de conversa com alunos e outros professores, o que mais tarde se tornaria o núcleo do coletivo Professores contra o Escola Sem Partido.
Nas suas primeiras intervenções, no Simpósio Nacional da Anpuh (Associação Nacional de História), por exemplo, Penna ouvia gargalhadas no auditório diante do “absurdo” das diretrizes do PL. Alguns ficavam assustados, outros incrédulos. “Infelizmente, hoje vejo gente chorando nas minhas palestras”, conta.
O historiador começou a compilar memes, posts e vídeos pró-Escola Sem Partido. Impressionado com a violência verbal do movimento, escreveu uma das primeiras críticas à “campanha de ódio aos professores“, segundo suas palavras, em setembro de 2015.
Não demorou a tréplica: nas páginas do Escola Sem Partido, Penna foi retratado como exemplo de “professor mimimi” e “vampiro historiador”. Alvo de ameaças e amedrontado inicialmente, o docente cogitou a possibilidade de desistir da militância. “Aí você para e pensa: recebi uma ameaça, pode ser um militante louco e assassino, mas também pode ser um menino de 14 anos no Facebook. Não desisti”.
Ao longo de 2016, nas primeiras reportagens a respeito do Escola Sem Partido, Penna foi procurado por diversos diários e revistas para representar “o outro lado”, o contraponto às ideias de Nagib. Assim, segundo a hipótese do historiador, eles notaram que, ao difamá-lo, deram mais visibilidade a Penna, consolidando-o como principal opositor ao Escola Sem Partido. “Hoje, eles atacam ministros e políticos, mas não citam mais meu nome por nada deste mundo”.
Segundo Penna, poucos conseguem defender o Escola Sem Partido num debate argumentativo além de Nagib. Um dos eventos que mais marcou sua memória foi uma audiência pública na cidade de Araraquara (SP), onde o propositor do PL não conseguiu ninguém para defender o projeto, precisando recorrer ao movimento Direita SP para convidar uma jovem youtuber que, ao se deparar com um auditório lotado de professores paulistas, se negou a participar e foi embora. “Eles não argumentam. Só sabem gritar palavras de ordem e embalados por uma claque. A fuga deles do debate foi de lavar a alma. Foi lindo”, lembra.
No último dia 11, após 12 sessões infrutíferas, o PL 7180 foi arquivado na Comissão Especial de Educação da Câmara dos Deputados, o que foi considerado uma vitória por parlamentares da oposição, educadores e estudantes. Segundo as normas da casa, as comissões temáticas são desfeitas ao fim da legislatura – entretanto, o tópico deve retornar à pauta em 2019. O teor do projeto também deve ser julgado no STF (Supremo Tribunal Federal).
Feliz 2019
A articulação também não para. No coletivo Professores contra o Escola Sem Partido, um grupo menor, de dez integrantes, o contato é 24 horas por dia. Na Educação Democrática, um movimento maior, mas flutuante no número de participantes ativos, discute-se a ideia de construir uma aliança a partir do Rio, abrindo braços no Paraná e Santa Catarina.
Para Penna, foi “simbólico” o ato de relançamento da Frente Nacional Escola Sem Mordaça, composta por diversos movimentos e associações docentes (como o Andes-SN – Sindicato Nacional dos Docentes de Instituições do Ensino Superior), durante as sessões da Comissão Especial. A ideia, diz, é mostrar a presença da resistência. Nos últimos tempos também foram feitas iniciativas como os manuais de defesa para docentes, encampados por Ação Educativa e outras organizações.
Além do Escola Sem Partido e a nova Base Nacional Comum Curricular, palavras-chaves como “ideologia de gênero”, “kit gay” e “marxismo cultural” têm inquietado professores.
“Atualmente, precisamos entender o Escola Sem Partido dentro de um contexto mais amplo. A ideia de ‘doutrinação’ se tornou bandeira de um discurso reacionário que projeta suas fantasias persecutórias nas escolas. Independentemente da aprovação dos projetos de lei, uma parcela significativa da sociedade aderiu a esse discurso. Eles agem como se o Escola Sem Partido já estivesse em vigor”, considera.
Nas suas andanças pelo país, o professor relata diversos casos de professores perseguidos, processados, censurados, alvos de fake news e ameaças de morte. Apenas entre professores universitários, de acordo com The Intercept Brasil, são mais de 181 episódios. Segundo a análise do historiador, neste contexto não basta mais só ser “contra”: os movimentos precisam pensar bandeiras propositivas.
Para 2019, a proposta da Ação Educação Democrática (organizada pela Anped – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, em parceria com o Movimento Educação Democrática) é articular atividades simultâneas no primeiro semestre, por todo o país. Penna lança o convite: “Vamos pensar atividades (um ato, uma disciplina, uma aula pública, um curso de extensão ou uma roda de conversa) em defesa da educação democrática? Coletivos, grupos diversos, docentes, estudantes, movimentos sociais, sindicatos, universidades, escolas, colégios inteiros, todos estão convidados.”
Embora não centralize ações ou pretenda protagonizar individualmente a oposição a agitações conservadoras no campo da educação, Penna vem atuando como porta-voz dos movimentos: está no front, mas ao lado de outros professores, do ensino superior e da educação básica, de diferentes cidades.
Apesar do horizonte incerto com o novo governo, o historiador está animado: “Temos a possibilidade de fortalecer a resistência e garantir a defesa da educação pública no país. A hora é agora. O ensino crítico e democrático, capaz de formar cidadãos, é o que está em jogo. É o que importa.”
Por Juliana Sayuri, jornalista e historiadora, é autora de Diplô: Paris – Porto Alegre (2016) e Paris – Buenos Aires (2018)