No fundo, a desigualdade
As análises sobre as turbulências financeiras recentes costumam omitir um dado essencial: nos EUA, epicentro da crise, a concentração de renda voltou aos níveis de 1929. O empobrecimento levou a uma espiral de dívidas — que, ao se romper, produz quebradeiras em série e ameaça a economiaFlávio Dieguez
A economia passa por ser muito complicada. Mas complicado, mesmo, é deixar de entender o que está acontecendo por simples falta de informação. Esta coluna pretende, modestamente, reunir números e dados que possam dar uma idéia mais clara do quebra-cabeças que compõe a crise econômica armada no horizonte mundial. Com o objetivo de fugir, sempre que possível, do enfoque financeiro predominante e privilegiar informações de interesse da população em geral, como o impacto da crise sobre emprego, salário e qualidade de vida.
A primeira informação relevante, desse ponto de vista, é que a atual crise faz parte de uma série que se prolonga desde o início dos anos 1970, pontuando o calendário em 1973-74, 1981-82, 1987 a 1991-92, 1997-98, 2001-02 e agora novamente. A perspectiva histórica – embora muito fora de moda, atualmente – ajuda a mostrar as conseqüências acumuladas das crises anteriores e pode dar uma idéia do que é possível esperar mais à frente.
As crises são sempre internacionais, mas a agitação que a economia provocou nas eleições norte-americanas sugere que se comece a juntar dados por lá. E não só por isso: a crise nos EUA também pôs em relevo um debate há tempos esquecido sobre a importância do emprego e do salário para a saúde das economias. Durante quase 20 anos, acreditou-se que não tinham grande importância, mas existem hoje nos EUA cerca de 37 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha oficial de pobreza, definida como renda anual de menos de 20 mil dólares, para uma família de quatro pessoas (ou menos de 16 mil dólares, para um família de três). Destes, 15,6 milhões vivem na chamada “pobreza extrema”, que significa ter menos da metade da renda dos pobres. Entre pobres e miseráveis, lá se vai 10% da população norte-americana.
E não é só pobreza por falta de renda, conforme salienta a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos [1], que divulga dados atualizados sobre a situação social do país. Em 2006, dizem os números, havia 47 milhões de pessoas sem seguro de saúde, o que faz desse assunto um dos temas centrais da campanha presidencial deste ano. Os bispos enfatizam outro aspecto que consideram preocupante: a pobreza castiga especialmente os mais jovens. Há 13 milhões de norte-americanos menores de 18 anos mergulhados na pobreza — uma em cada seis pessoas, nesta faixa etária.
A partir de 1973, inverte-se a tendência do pós-guerra: já não há freios para a desigualdade
É surpreendente o país mais rico do mundo – que absorve mais da metade dos recursos do planeta – ter algo como 15% da população em situação de privação. Mas a maior supresa é que essa tendência não começou ontem ou anteontem: tem mais três décadas, contando a partir de 1973. Nesse período, a riqueza acumulada dos norte-americanos mais que dobrou — mas a pobreza cresceu cada vez mais rapidamente. Este é, digamos, o fundo do palco, o cenário diante do qual evolui a crise.
O desequilíbrio aparece com nitidez nos gráficos de concentração de renda divulgados pelo governo (veja abaixo). A desigualdade social, que havia se reduzido lentamente, durante o período de relativa democratização econômica do pós-II Guerra, voltou a crescer com rapidez, depois de 1973. Hoje, os norte-americanos mais ricos, correspondentes a um centésimo da população, apropriam-se de mais de 20% da renda nacional. A fatia abocanhada por eles duplicou em três décadas, como mostram os gráficos 1 e 2. A concentração de renda voltou aos mesmos níveis presentes na crise de 1929
Gráfico 1
Gráfico 2
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A diferença aparece com clareza marcante na lista dos 400 norte-americanos com fortuna superior a um bilhão de dólares, feita pela revista Forbes. Atualmente a riqueza somada desse minúsculo universo chega a 1,2 trilhão de dólares (gráfico 3).
Gráfico 3
O futuro depende, em parte, da eleição presidencial. E a crise tende a ser um tema central da campanha
Não é preciso usar complicados indicadores matemáticos para perceber o efeito de uma concentração de renda dessa ordem. Nos EUA, o quadro é claro: enquanto a riqueza total crescia, preservando o ritmo global do consumo, as camadas menos privilegiadas foram forçadas a recorrer a formas cada vez mais mirabolantes de empréstimos. A ponto de hoje, de acordo com dados recentes divulgados pelo governo, a dívida total das famílias chegar a vinte vezes a renda disponível – com o agravante de a atividade econômica estar em declínio. A perspectiva é que, a curto e médio prazos, a população terá muita dificuldade para sair dessa aparente sinuca de bico.
Não quer dizer que não há saída. Mas o preço provavelmente não vai ser baixo, já que o calote de um tende a provocar o calote do próximo, como uma fileira de dominós, colocando em risco, no final, a economia inteira. Essa é a perspectiva que, no momento, se desenha.
Os desdobramentos dependem um pouco do rumo que a campanha presidencial poderá tomar nos EUA. E ela é cada vez mais influenciada pela crise. Há menos de dois meses, apenas a guerra do Iraque parecia realmente um diferencial relevante para os pré-candidatos. Agora, a guerra divide as atenções com quatro outros temas, todos com um fundo econômico forte: o sufoco do endividamento das famílias; a questão da imigração, que cria tensões em vista dos empregos escassos; a falta premente de atendimento à saúde; e a possibilidade de um grande número de pessoas perderem casas hipotecadas. Rarame