No mês das mães, quem tem direito a celebrar?
Enquanto a mulher-mãe negra está exercendo, historicamente, a função de ama de leite, a função de empregada doméstica, o trabalho do cuidado de filhos das famílias brancas uma pergunta não pode ficar silenciada: quem cuida dos seus filhos?
No mês de maio é celebrado o dia das mães. Este texto propõe uma reflexão acerca do que significa ser uma mãe negra no Brasil, sobre as vicissitudes enfrentadas por mulheres negras na vivência da maternidade. Sobre nossas vivências e inferências à maternidade, a escolha de não exercê-la, à maternagem, à maternância, ao ativismo, à militância, à curiosidade, às leituras e pesquisas sob essas perspectivas amealhadas com as experiências de nos relacionarmos de alguma forma com uma pessoa mãe.
Importante dizer que o dia das mães nasceu da busca por valorização das mulheres e começou a ser pensado da necessidade de se discutir as relações de cuidado exercido apenas por mulheres. A mãe de Ueslei, co-autor deste texto, é uma mulher negra baiana, nordestina, que, assim como sua avó, não foi “assumida” publicamente por seu pai, um homem branco. A mãe de Ueslei, assim como a mãe dela, não habitou o lugar da esposa oficial, da “mulher para casar”. Ambas tiveram que criar seus filhos sozinhas, sem o apoio e suporte dos pais.
Como é habitar uma vida no lugar da outra, da mulher da rua, da amante, da família bastarda? Quem pode cantar vitória? Quem tem podido celebrar? Quem tem sido historicamente derrotada? O que tem significado, portanto, ser uma mulher-mãe negra numa sociedade estruturada a partir do colonialismo e da branquitude?
Nossa sociedade foi forjada na desumanização de pessoas negras as tornando como bens de serviço e consumo a partir da exploração de seu corpo, seja para usurpar conhecimento, seja para exploração no âmbito laboral e até sexual. A formação da América Latina, ou Améfrica Ladina, nos termos da Lélia Gonzalez, foi ancorada num sistema de classificação das pessoas a partir de sua raça e gênero, diferente dos países que adotaram o sistema do apartheid.
Nesse sentido, às mulheres negras, também foi relegado o papel de cuidado doméstico, incluindo aqueles destinados à prole das famílias brancas. No texto fundamental da antropóloga e ativista Lélia Gonzalez “Racismo e sexismo na cultura brasileira (1983)”, a intelectual aponta que o “racismo à brasileira”, por meio do mito da democracia racial, exerce uma violência simbólica sob a imagem da mulher negra, indo da figura sexualizada e desejada da mulata durante o Carnaval à imagem e função estereotipada de empregada doméstica; são as imagens de controle às quais se refere a intelectual do feminismo negro estadunidense, Patrícia Hill Collins.
Na sala da casa da co-autora deste texto, Janaína Teresa, há um quadro próximo à mesa de refeições em contraponto à “santa ceia” comumente utilizada como adorno nesses espaços. Trata-se de uma réplica da obra “Mãe Preta” do pintor branco Lucílio Albuquerque (1877-1939) cujo original (1912) se encontra no Museu da Arte da Bahia (MAB), em Salvador/BA.
De acordo com pesquisas realizadas por Carolina Luisa Alves Barbieri e Marcia Thereza Couto e Manuela Henrique Nogueira, trata-se de uma tela que retrata uma modalidade de trabalho através da condição das “amas de leite”, função desempenhada por mulheres negras durante quase quatro séculos de sequestro de pessoas africanas com escravização hereditária de descendentes diretamente interligada ao trabalho doméstico das escravizadas, bem como desempenhado pelas libertas, alforriadas ou no pós-período da dita abolição.
A autora Manuela Henrique Nogueira expõe que “a obra de Lucílio representa uma mulher negra sentada no chão em um ambiente interno. Ela amamenta uma criança branca e dirige o olhar ao bebê negro, possivelmente seu próprio filho, deitado em um pano estendido no chão à sua frente. A composição privilegia uma paleta de tons marrons e recebe um tratamento de luz importante; por meio de uma porta ou janela, o sol penetra no ambiente iluminando a cena”.

A autora nos aponta que em 1916, por ocasião da exposição da obra, a Revista do Brasil (1916-1918) fez a seguinte crítica assinada por N.:
“‘Mãe Preta’, de que estampamos em outro lugar uma reprodução, é um quadro de museu. Uma preta, assentada ao chão, amamenta uma criança branca, e enquanto esta lhe suga o seio tolhido, o filho está ao lado deitado, e recebe da mãe um olhar prolongado e compassivo. Nesta cena, perfeitamente natural, quase um aspecto trivial da nossa vida, soube Lucílio por uma tal simplicidade de execução, numa tão intensa expressão de pensamento, e um tão forte espírito de síntese, que a transformou num quadro simbólico na dedicação da raça negra, na feliz evocação do tocante sacrifício das nossas ‘Mamas-pretas’, cujo afeto materno conseguia dividir-se entre filho do branco e a sua criatura. Para isso muito contribuiu a sobriedade quase austera que distingue à sua maneira, sobriedade que vamos encontrar ainda no excelente retrato de senhora, mas aqui temperado por uma nota de elegância e vivacidade exigidas pelo gênero e que o artista conseguiu dar-lhe, revelando assim a maleabilidade do seu talento e da sua técnica.” [Grifo dos autores]
Em que pese o suposto enaltecimento do sacrifício e dedicação da função das amas de leite, agora descritas como “mamas-pretas”, vale salientar que nesse momento da história a amamentação cruzada estava sendo rechaçada pelo movimento eugênico-higienista.
O contrassenso está no fato de que ao mesmo tempo que defendiam o aleitamento materno a ser realizado pelas mães biológicas já havia, desde 1876, a importação da Farinha Láctea desenvolvida pelo farmacêutico alemão Henri Nestle (1867). Associada a uma propaganda extensiva, a pesquisadora Taina Silva Santos aponta que “ainda que haja um consenso entre as estudiosas e os estudiosos da amamentação e da maternidade de que a popularização desse alimento tenha acontecido ao longo dos primeiros anos da República, a criação, o incentivo ao consumo e a comercialização desse alimento no Brasil do século XIX estavam diretamente relacionados à racialização, às transformações no mundo do trabalho e às mudanças dos entendimentos acerca dos papéis sociais das mulheres expressas através do pensamento médico”.

Nota-se que a chamada da propaganda acima foi intitulada com a expressão “ama de leite” que, segundo a autora, foi um estratagema para atrair famílias que estavam à procura de uma nutriz. É justamente sobre essa imagem de controle, esse lugar habitado historicamente pelas mulheres-mães negras no país que queremos refletir.
Estamos diante do que algumas pesquisadoras chamam de “práticas de longa duração histórica”, ou seja, imagens e lugares que atravessam tempos, séculos e fenômenos político-sociais. Enquanto a mulher-mãe negra está exercendo, historicamente, a função de ama de leite, a função de empregada doméstica, o trabalho do cuidado de filhos das famílias brancas uma pergunta não pode ficar silenciada: quem cuida dos seus filhos?
Por tudo isso, propomos a seguinte reflexão: neste mês das mães qual o cenário da maternidade negra à brasileira?
“Dói tanto, sabe? É um pedaço da gente que vai”: a guerra das mães negras

Como aponta a pesquisa de Ueslei Solaterrar, as mulheres negras seguramente não tem podido desejar, nem conseguido exercer plenamente a maternidade como têm direito em nosso país. Rachel Passos, em seu livro intitulado Na mira do fuzil: a saúde mental das mulheres negras em questão, afirma que “na realidade brasileira, as mulheres negras vivenciaram cotidianamente a negação da humanidade, bem como da maternidade e da experiência do ser mulher, sendo parte das engrenagens que estruturam as bases econômicas, políticas, sociais e culturais do país”.
Para a autora, o projeto estabelecido para as mulheres não brancas é a destruição e a negação da maternidade, do ser mulher e da humanidade, o que faz parte das estratégias de produção e reprodução do sofrimento da violência pertencentes às manifestações do patriarcado e do racismo, componentes estruturais e estruturantes do capitalismo.
Sônia Giacomini referenda tal afirmação ao defender que em nosso país houve uma priorização do potencial produtivo da mulher negra, em detrimento do reprodutivo: “a palavra mãe refere-se exclusivamente a uma relação entre a mulher branca e seus filhos. Quando a escrava é a mãe, ela é mãe-preta, ou seja, ama-de-leite da criança branca”. Pode-se afirmar, portanto, que dentre as práticas de longa duração histórica citadas, há um projeto que reiteradamente não autoriza, como aponta Rachel Passos, “as mulheres negras a serem mães, apesar da maternidade estar colocada compulsoriamente para o gênero feminino”.
A destituição da maternidade de mulheres negras lidas socialmente como loucas por ter algum diagnóstico de transtorno mental grave foi pesquisada por Ueslei Solaterrar que aponta para os (des)encontros entre raça, maternidade e loucura ao analisar a gestão estatal do desejo e do direito à maternidade reivindicado por essas mulheres, bem como as violações desses direitos e desejos por meio do afastamento compulsório de seus filhos.
O pesquisador aponta como a destituição se faz a partir do acionamento do lugar de “louca”, “irresponsável”, “cracuda”, “perigosa” e “desnaturada” que vai desqualificando e desmoralizando essas mulheres para o exercício da maternidade, afinal, são também potenciais “fábricas de marginais”. A vereadora carioca e fundadora do Movimento Moleque após a perda de seu filho para a violência de Estado, Mônica Cunha, faz um chamado para que não esqueçamos a fala do ex-governador do Rio de Janeiro que chamou as mulheres das favelas de “fábricas de marginais”. Segundo Mônica, “tal afirmação foi relativizada por setores da mídia e da branquitude intelectualizada. Nada mais revelador do racismo da nossa elite”.
“Dói tanto, sabe? É um pedaço da gente que vai.” A frase é de Marinete da Silva, mãe de Marielle Franco, mulher negra e parlamentar brutalmente assassinada em março de 2018. A fala da Marinete remete a habitar o lugar da dor e do sofrimento. Um sofrimento que tem empurrado diversas mulheres negras para o luto materno pelas perdas de seus filhos para a violência de Estado, conforme assistimos horrorizados no documentário Auto de resistência, de 2018, dirigido por Natasha Neri e Juliana Farias.
O sofrimento de Marinete se encontra com o da Mônica Cunha, com as mães de Acari, da Candelária, de Costa Barros, no Rio de Janeiro, com as mães do Cabula, em Salvador, com tantas outras mães Brasil afora. Para Mônica Cunha, “o nosso adoecimento começa de uma forma lenta, dando sinais não muito claros e, quando percebemos, já estamos com depressão, síndrome do pânico, perda de memória. Não são poucas as mulheres que, diante de tudo isso, desenvolvem AVCs, câncer, ou mesmo dependência química. E quando temos nossos filhos assassinados, humilhados, difamados pelo mesmo Estado que, desde a gravidez, nos negou saúde, educação, tempo de lazer e convivência diária, a sociedade nos aponta como inconsequentes e irresponsáveis”.
Adriana Vianna e Juliana Farias nomeiam de “guerra das mães” o movimento social e político das mães que perderam seus filhos para a violência policial, a violência do Estado e lutam por justiça. Ou seja, não é sem resistência, sem agenciamentos e movimentos coletivos que todo esse sofrimento é vivido. Contudo, qual o preço de uma vida habitada sob o empuxo e necessidade da guerra cotidiana?
O direito de ser mãe: Gracinha, mulher negra e quilombola
Neste mês das mães, portanto, temos uma importante oportunidade de refletir sobre a experiência da maternidade no Brasil, particularmente sobre a realidade das mulheres negras, cujas trajetórias de cuidado materno são frequentemente marcadas por desafios históricos e institucionais, como os apontado ao longo deste texto. A história de Gracinha, uma mãe negra quilombola da comunidade Toca Santa Cruz, em Paulo Lopes (SC), ilustra a complexidade e as tensões dessa vivência, conforme analisado pela pesquisa de Thiago Santana, também co-autor deste texto.
Gracinha teve sua maternidade destituída em um processo judicial que não apenas questionou sua capacidade de ser mãe, mas também sua dignidade enquanto mulher negra e quilombola.
A acusação contra ela, formulada pela promotoria, foi de agressividade, vida desordenada, promiscuidade, incapacidade, sem, no entanto, qualquer prova que sustentasse estas alegações. Não houve testemunhas que corroboram as acusações, nem registros ou evidências físicas de suas ações. Pelo contrário, havia um grande número de testemunhas de sua comunidade que atestam o contrário, reconhecendo-a como uma mãe dedicada e presente para suas filhas.
As suas filhas, então com 1 e 4 anos, foram, em uma decisão judicial, descritas como pequenos úteros reprodutores, justificando que aquela intervenção era para “salvar” as crianças de um futuro “ruim”, e para isso, elas precisavam ser afastadas de sua mãe para garantir seu futuro. O que parecia ser uma luta pela preservação do vínculo afetivo foi distorcido em um julgamento da identidade de Gracinha, cuja condição de mãe foi tratada como subalterna, em um claro reflexo das marcas do colonialismo e da desigualdade estrutural que ainda permeiam o sistema de justiça.
Esse processo foi, em grande medida, agravado pela composição das instituições responsáveis por decidir sobre a vida de mulheres negras como Gracinha. O caso foi conduzido por uma juíza mulher branca, de uma região sulista do Brasil, que, apesar de sua condição de mãe, não demonstrou sensibilidade para com a situação de Gracinha. Em sua decisão, a juíza afirmou que Gracinha era “descendente de escravos”, como se isso fosse justificativa suficiente para questionar sua capacidade de exercer a maternidade. Essa afirmação reflete uma visão racializada da maternidade, que ainda marginaliza as mulheres negras em um papel de cuidado reduzido e estigmatizado.
O que se tornou evidente ao longo desse processo foi que a judicialização da maternidade de Gracinha não representava apenas uma análise do seu caso particular, mas também uma expressão das dinâmicas mais amplas da justiça brasileira, que muitas vezes opera sem levar em conta as especificidades sociais e raciais das mulheres negras. A decisão, portanto, não só questionou o direito de Gracinha de ser mãe, mas reafirmou um ciclo de controle sobre os corpos e as famílias negras, um controle que se mantém desde o período colonial.
A história de Gracinha é uma entre muitas, mas é emblemática porque nos leva a refletir sobre as formas de invisibilidade e violência institucional que ainda marcam a experiência das mães negras no Brasil. Sua luta não se limita à busca pela reconquista de suas filhas, mas é também uma busca pelo reconhecimento de sua legitimidade como mãe, um direito que, para muitas mulheres negras, continua a ser negado pela sociedade e pelas instituições jurídicas.
Mesmo diante da estrutura que tenta deslegitimar sua maternidade, Gracinha persiste à sua espera. Sua resistência, longe de ser passiva ou resignada, é uma afirmação de sua identidade e de seu direito ao cuidado materno. A história de Gracinha nos lembra de que a luta pela maternidade negra não é apenas uma luta pela dignidade das mulheres, mas pela plena aceitação de seus direitos humanos, pelo reconhecimento de sua humanidade em sua totalidade.
A pesquisadora Rachel Passos, já citada neste texto, afirma que para as mulheres negras a destruição tem se dado sobretudo pelo útero. Mulheres que vêm tendo suas maternidades violadas, violentadas e destituídas, eixos de pesquisa e ativismo da Rede Transnacional de Pesquisas sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas (REMA) da qual fazem parte os autores deste texto.
Entretanto, também é pelo útero que têm vindo os caminhos de (re)existência, de aquilombamento, de agenciamento de outras formas de habitar o ser mulher-mãe negra no Brasil.
Neste mês das mães, é importante refletirmos não apenas sobre as mães que celebramos, mas também sobre aquelas que continuam a lutar por seus filhos, por sua identidade e pelo direito de ser mães, sem as amarras de um sistema que ainda as vê como menos do que plenas.
É para elas, as mulheres-mães amefricanas (mulheres-mães negras, mulheres-mães indígenas, mulheres-mães não brancas, mulheres-mães loucas, mulheres-mães com deficiência, mulheres-mães pobres, mulheres-mães trans/travestis…) que dedicamos este texto. Que elas possam viver num mundo onde o Dia das Mães seja apenas símbolo de celebração e amor e não de guerra, dor e luta.
Revisão e edição: Mariana Pitasse e equipe Le Monde Diplomatique Brasil.
Janaína Teresa Gentili Ferreira de Araújo é advogada, doula, mestre em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ, contadora de histórias do grupo Ujima e pesquisadora da Rede Transnacional de Pesquisas sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas (REMA).
Thiago da Silva Santana é mestre e doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS/UFSC, advogado e membro do Kabelice Jurídico do MNU/SC, pesquisador da REMA.
Ueslei Solaterrar é psicólogo (UFBA), doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ). Consultor acadêmico do Programa Rio sem LGBTIfobia e pesquisador da REMA.