No Peru, os Wampis estão determinados a proteger seu território
Enquanto as elites políticas peruanas afundam no escândalo de corrupção que acaba de destituir o presidente conservador Pedro Kuczynski, as populações indígenas defendem sua autonomia por meio da ideia de um Estado “plurinacional”, uma noção que já está inscrita nas constituições da Bolívia e do Equador
São 8 horas da manhã quando nosso barco sai do porto de Santa María de Nieva, capital do departamento de Condorcanqui, no norte do Peru. Leva cinco horas para chegar a La Poza, uma pequena aldeia no coração das terras wampis,1 onde vivem cerca de 10 mil pessoas – caçadores, pescadores, horticultores, mas agora também professores, enfermeiros etc. –, agrupadas em pequenas aldeias ou “comunidades”. Estamos no norte da Amazônia peruana, nos departamentos do Amazonas e de Loreto.
O barco sobe lentamente o Rio Santiago, que corre a oeste da faixa verdejante dos Kampankis, o último relevo andino antes da vasta planície amazônica. Em alguns lugares, pequenos montes de terra desfiguram as praias. Um passageiro nos explica que são vestígios da atividade ilegal dos garimpeiros. Eles cavam o leito dos rios e “lavam” a terra com mercúrio para extrair o metal precioso. O homem, wampis ou awajún, não dirá mais nada. O assunto o deixa desconfortável. Mais tarde, ficaremos sabendo que alguns moradores da região são a favor da extração poluente de ouro, contra a opinião da Assembleia do Governo Territorial Autônomo da Nação Wampis (GTANW), cuja criação recente é motivada pela rejeição às atividades extrativas. A posição surpreende em um contexto continental marcado por uma corrida por matérias-primas, com todas as tendências políticas combinadas.
O governo autônomo (ler boxe) é resultado de um longo processo que começou na década de 1990 e do qual participaram muitos antropólogos, juristas e geógrafos próximos dos indígenas. Depois de mapearem o território e seus recursos, e terem comprovado uma ocupação antiga e contínua desse espaço, os Wampis se fizeram dotar de órgãos de governo e de um arcabouço legal próprios. Com a força dessas ferramentas, várias centenas de líderes anunciaram, no final de 2015, a criação da nação Wampis, exigindo, sobretudo, uma gestão independente dos recursos naturais, particularmente cobiçados pelo setor privado. Até o momento, seu esforço permanece sem resposta, já que a legislação peruana não reconhece entidades como “nações” ou “governos” indígenas. Para as administrações, existem apenas “comunidades” ameríndias, mas que dizem respeito somente a subconjuntos territoriais e demográficos limitados. É possível mensurar os problemas legais e administrativos impostos ao Estado pelo surgimento de uma nação de 10 mil pessoas que reivindica autonomia sobre quase 1,3 milhão de hectares de floresta tropical (ou seja, 1% da superfície do território peruano).
No horizonte, um enorme hotel de concreto indica que estamos chegando a La Poza. Nativos da maior parte dos Andes e da costa do Pacífico, seus habitantes vieram buscar fortuna com a venda de todo tipo de produtos manufaturados. Para eles, a atividade relacionada à extração de recursos naturais, auríferos ou não, é uma bênção. Tensões recentes com os vizinhos wampis, no entanto, exigem cautela. Diplomata, o porta-voz dos moradores, Fernando Ramirez, procura nos esclarecer: “Aqui em La Poza, todo mundo é contra a mineração ilegal, porque polui os rios”. No entanto, alguns cartazes ainda afirmam “Compra e venda de ouro”, deixando pouca dúvida sobre a natureza das atividades econômicas ali praticadas.
Um mototáxi nos leva à comunidade wampis de Puerto Galilea. Uma rua simples, chamada Calle de la Amistad (“rua da amizade”), separa as duas aldeias. Esse nome mal mascara as tensões entre os Wampis e aqueles que eles às vezes chamam, em um tom amargo, de “colonos”. Gerónimo Petsain, um dos arquitetos do governo autônomo, nos recebe em sua casa. Com 40 anos, ele demonstra uma determinação tranquila, resultado de anos de militância na federação política dos Wampis. Ele nos convida para a reunião no dia seguinte, cujo tema imediatamente nos mergulha nas notícias do momento: que destino reservar aos “colonos” acusados de estarem envolvidos na atividade mineradora ilegal?
Longe da visão doce e romântica
O governo autônomo wampis surgiu à medida que as pressões ambientais se tornavam mais fortes e o Estado, mais passivo. Durante o verão de 2015, uma delegação de chefes wampis viajou incansavelmente pelas comunidades ao longo dos rios Santiago e Morona. Ela procurou convencer seus membros a aderir ao projeto de governo territorial autônomo e a se incorporar ao território integral da nação Wampis. O conceito de “território integral” vem de uma reflexão conduzida em meados dos anos 1990 por organizações indígenas no noroeste da Amazônia peruana, apoiadas por advogados e antropólogos como Pedro García Hierro e Alexandre Surrallés. Era uma questão de pensar nas ferramentas que tornariam possível ir além do modelo comunal, uma fonte de divisão, a fim de alcançar uma unidade territorial maior.2
O principal argumento dos Wampis é de ordem ecológica. Metais pesados liberados nos solos e rios por mineradores de ouro ou em razão de rompimentos no oleoduto norte-peruano ameaçam a fauna, a flora e a saúde do conjunto da população. Em 2016, foram identificados onze rompimentos de oleoduto; eles causaram uma poluição alarmante nessa região da Floresta Amazônica. Da mesma forma, o comércio de madeira em grande escala ou a sobrepesca são denunciados como uma ameaça à biodiversidade e ao bem-estar da população.
A integração de áreas comunais dentro de uma jurisdição comum é então apresentada como a única solução para preservar o território ancestral diante da indústria extrativa e da poluição que ela pode causar. Como explica Andres Noningo, líder wampis de Puerto Galilea, a criação de um governo autônomo é “uma estratégia de defesa territorial, uma resposta aos esforços feitos para nos dividir em comunidades”.3 O fato de cada comunidade ser levada a negociar caso a caso e apenas em seu nome com as empresas constitui uma formidável ferramenta de divisão, contra a qual os Wampis pretendem lutar.
É também uma questão de encontrar certa fluidez territorial que rompa com a rigidez dos cadastros comunais e corresponda mais ao hábitat, tradicionalmente móvel e disperso, outrora privilegiado nessa parte da Amazônia – relação com o território que o próprio Juan Nuningo, atuuke (equivalente de ministro) responsável pelo desenvolvimento político e administrativo interno, classifica como “integral”: “Queremos recuperar a gestão do conjunto de nosso território, isto é, a floresta, os rios, o ar, o subsolo. O território é um todo e nossa cultura se baseia em todos esses elementos”. Enquanto fala, ele nos passa uma cabaça de masato, bebida de mandioca fermentada. Em meio à escuridão da noite que nos envolve, alguns vizinhos curiosos escutam a discussão. Alguns entram, cumprimentam o anfitrião e se sentam. A entrevista do ministro wampis se transforma em uma conversa bastante exaltada. Estamos longe da visão doce e romântica criada pelo colonialismo do índio “naturalmente” ecologista, que ignora os instrumentos e as questões políticas nacionais e internacionais.4
Longe de Washington e Genebra, os líderes wampis que conhecemos evocam, todo o tempo, como um mantra, as mesmas referências: Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais (1989) e Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas (2007). Esses tratados ajudaram a legitimar na cena internacional o direito à autodeterminação, à autonomia territorial, política e administrativa nos Estados-nações contemporâneos. Os Wampis encontram neles um apoio poderoso para esse esforço, não apenas quando se trata de desenvolver um modelo limpo de governo, mas também pela forma como esses tratados conceituam o tema da lei. Os Estados são levados a reconhecer a preexistência de “nações” ou “povos” autóctones, e não a reconhecê-los como subconjuntos sociais; é por esse motivo que os Wampis se referem constantemente a isso – um modo de lembrar ao Estado peruano suas obrigações, já que ele é signatário desses tratados.
A autonomia a que o povo Wampis aspira não se baseia em ambições independentistas. Bem ao contrário, explica-nos Julio Hinojosa, secretário-geral da Grande Assembleia: “Somos peruanos, temos carteira de identidade peruana. Não queremos romper nosso relacionamento com o Estado, mas queremos administrar nós mesmos nosso território, de acordo com nossa visão e nossa cultura, para preservar nosso meio ambiente”. Ele acrescenta, como para dissipar qualquer suspeita: “Queremos contribuir para o desenvolvimento de nosso país, mas por meio de um uso racional e sustentável dos recursos”. O governo autônomo, como aponta o pamuk (presidente) Wraiz Pérez, é um instrumento que permite lembrar ao Estado que a nação Wampis existia antes da República do Peru e obrigá-lo a aplicar os textos que ele mesmo ratificou.
Qual é o regime de propriedade privada?
Em Lima, as coisas não são vistas dessa maneira. Alguns altos funcionários e deputados acusam o governo autônomo de ameaçar a soberania do Estado, particularmente por causa da estreita relação que os Wampis mantêm com os Shuar do Equador – uma relação de parentesco, à qual se juntam as trocas comerciais –, para não mencionar várias parcerias políticas e logísticas entre federações indígenas. Nesse contexto, a autonomia wampis enfraqueceria sua soberania na região, já marcada por uma longa história de conflitos fronteiriços – o Peru e o Equador disputaram a fronteira por mais de um século, até 1993 –, e seria apenas um primeiro passo para a reivindicação da independência.
Para a deputada Maria Elena Foronda Farro, da Frente Amplio, uma coalizão de movimentos de esquerda que teve algum sucesso na última eleição presidencial, chegando em terceiro lugar, com quase 19% dos votos,5 essa acusação de separatismo, sem fundamento, destina-se apenas a desacreditar a iniciativa. Como presidenta da comissão ordinária Povos Andinos, Amazônicos e Afro-Peruanos, Meio Ambiente e Ecologia, ela distinguiu o governo wampis outorgando-lhe o título de “defensor do meio ambiente”.
É dia de reunião em Puerto Galilea. Sob o calor do telhado de calamina, os debates se sucedem por quase oito horas. A natureza das sanções contra os garimpeiros é discutida em detalhes. A sala está lotada, a atmosfera é agitada. Aqui encontramos as várias instâncias do governo descritas nos estatutos constitutivos do governo autônomo. No centro da pequena plataforma estão representantes da Grande Assembleia (Un Iruntramu). Algumas autoridades eleitas usam orgulhosamente a coroa de penas de tucano, acessório dos grandes guerreiros do passado, símbolo de uma vontade inabalável de assumir seu mandato representativo.
Ficamos impressionados com o crescente apego dos Wampis a uma organização de tipo estatal – um governo e uma assembleia –, organização que lhes era estranha até a segunda metade do século XX. Essa escolha deve-se a razões estratégicas. A primeira delas: fazer parte da continuidade do modelo de comunidade. De fato, essa continua sendo a estrutura política básica na qual esse novo governo se apoia. As assembleias comunais elegem os membros da Grande Assembleia. A ideia não é tanto desfazer as ferramentas legais atuais, mas integrá-las em uma nova dinâmica política e territorial.
Em seguida, trata-se de utilizar as mesmas ferramentas que o Estado peruano, assumindo algumas de suas prerrogativas, de modo a dialogar com ele e se impor como força democrática. A Grande Assembleia elege assim o pamuk, presidente do governo autônomo, que nomeia os membros de seu “conselho de diretores”. Cada um destes últimos administra uma área específica, da educação à saúde, passando pelo orçamento, meio ambiente, transportes ou comércio. Em suma, uma maneira de inventar uma interface com o Estado central.
O esforço autonomista dos Wampis representaria outro caminho político? Alguns dirão que ele não é de forma alguma incompatível com o neoliberalismo circundante. Afinal, a Constituição de 1993 colocou o Peru no caminho de uma economia desregulamentada, reconhecendo pela primeira vez a pluralidade étnica do país e a obrigação do Estado de protegê-la (artigo 2.19). Aqui, como nos outros países da América Latina, o “multiculturalismo neoliberal” visa valorizar as especificidades socioculturais das minorias indígenas, a fim de melhor integrá-las à economia de mercado,6 uma lógica que floresce no Peru.
Prefeito do distrito de Rio Santiago (que abrange a metade ocidental de todo o território), Mateo Impi ilustra isso perfeitamente. Na sala onde a reunião é realizada, a intensidade das discussões não impede os participantes de exigir uma pausa para o almoço. Aproveitamos a oportunidade para questioná-lo sobre os eixos de sua política e sobre sua visão de desenvolvimento. No cargo desde 2014, Impi é Awajún, o outro grande grupo étnico da região. Durante a primeira sessão da manhã, ele foi acusado de não adotar uma posição clara e medidas concretas para impedir a extração de ouro. No escritório onde nos recebe, ele se diz a favor da iniciativa do “povo Wampis” e reconhece “semelhanças” com sua política municipal. Mas há um ponto de desacordo fundamental que o opõe ao governo autônomo, que diz respeito à sua gestão econômica do território e seu corolário: o regime de propriedade privada.
De fato, se os estatutos constitutivos da nação Wampis procuram reafirmar o caráter coletivo e inalienável da propriedade territorial,7 Impi defende uma visão oposta: “Se eu conseguir adquirir um terreno na comunidade, quem garantirá meus direitos de propriedade? Podem me tirar de lá a qualquer momento. Assim, quem arriscará investir se não lhe for dada uma garantia que a terra dele realmente lhe pertence? Em minha opinião, não é porque se é um indígena que se deve continuar a viver na pobreza”. Ele lamenta a perspectiva “muito fechada” do GTANW, que recusa qualquer liberalização da terra e deseja conferir à escala do território wampis o mesmo tipo de gestão coletiva que a aplicada aos territórios comunais. Nas comunidades, todas as decisões relativas à chegada de um novo morador, à concessão de uma parcela para a construção de uma casa ou ao estabelecimento de uma empresa devem ser objeto de um acordo coletivo por votação. Em último caso, dependerá, portanto, da decisão do GTANW e de sua assembleia.
Sem monopolizar a palavra
Impi retransmite aqui uma falácia comum segundo a qual a propriedade coletiva, legal mas informal, retardaria o desenvolvimento econômico, com os potenciais investidores temendo que seus bens fossem confiscados arbitrariamente. Ele trabalha em estreita colaboração com uma instituição responsável pela “formalização da propriedade informal”, a Cofopri. Muito ativa nas comunidades da Amazônia, ela incentiva os moradores das comunidades a recomprar a porção de terra em que sua casa é construída. Apesar das boas intenções apresentadas, essa estratégia deixa poucas dúvidas sobre o objetivo dos poderes públicos: desmontar gradualmente o regime de comunidades, favorecendo o parcelamento progressivo de seus territórios.
Além de se opor a qualquer exploração de petróleo, a forma como o governo wampis planeja administrar coletivamente o acesso à terra vai contra a orientação neoliberal do governo peruano. A política econômica esteve precisamente no centro das discussões da quinta cúpula da nação Wampis, realizada em agosto de 2017 na comunidade de San Juan de Morona, a duas horas de barco da fronteira equatoriana. Os representantes eleitos da Grande Assembleia discutiram ali atividades alternativas e não poluidoras, como o turismo ecológico, a piscicultura, a avicultura e a cultura do cacau.
Essa perspectiva faz parte de um modelo de desenvolvimento alinhado com os valores do bem viver (tarimat pujut, em wampis). Essa noção, de que os líderes wampis e as ONGs locais se apropriaram, tornou-se o leitmotif de muitas lutas indígenas na América Latina, especialmente desde sua inscrição nas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009).
Além das orientações econômicas e políticas, os valores do bem viver incluem uma exigência democrática. De acordo com os estatutos do governo autônomo, a autoridade suprema não é o pamuk, mas a Grande Assembleia, um colégio de dirigentes. Durante as reuniões, os líderes evitam cuidadosamente monopolizar a palavra, mais usada pelos representantes comunitários. Disseminados pelo público, eles são de longe os que mais fazem reivindicações e se esforçam para fazer que a voz de sua comunidade seja ouvida com toda a veemência que convém aos discursos políticos wampis. Um por vez, eles expõem sua opinião e tentam convencer a plateia. Alguns, de rosto pintado e armados com uma lança, começam seu discurso esboçando os movimentos que outrora costumavam preceder qualquer reunião entre os chefes tradicionais, uma maneira de lembrar aqueles que estão na plataforma de que sua legitimidade emana de uma base local, a das comunidades.
Afirmação da anterioridade da nação Wampis em relação à chegada dos colonos espanhóis, demanda reivindicação de um diálogo de igual para igual com o Estado central e promoção de uma política de desenvolvimento de acordo com os valores do bem viver: o governo autônomo reúne todos os elementos que levaram a Bolívia e o Equador a se definirem constitucionalmente como Estados “plurinacionais “. Ao contrário do multiculturalismo, o plurinacionalismo afirma ir além da atribuição aos povos indígenas de um status de minoridade que deve ser integrado a uma sociedade majoritária. Sem renunciar a um princípio de unidade nacional, trata-se de estabelecer uma relação mais horizontal entre o Estado e as entidades que o compõem, com cada uma podendo reivindicar uma gestão autônoma de seu território e de seus recursos. Isso implica uma profunda reforma do aparelho legislativo. Lima vai aceitar?
Um reconhecimento ambíguo
Quando, em novembro de 2015, quase trezentos líderes wampis, representando cerca de setenta comunidades, formalizaram a criação de seu governo autônomo, o esforço era certamente sem precedentes, mas inscrevia-se numa longa e delicada história da relação entre os indígenas e o Estado peruano. A iniciativa se apresentou, de início, como uma reação à chamada lei das “comunidades nativas”, adotada em 1974 pelo governo militar de Juan Velasco Alvarado. Líder autoritário de orientação esquerdista, Velasco decretou uma ampla reforma agrária voltada para a redistribuição das terras aráveis, havia muito monopolizadas por grandes latifundiários. A lei das comunidades nativas foi o primeiro corpus legal a garantir os direitos territoriais aos indígenas da Amazônia. Ela encorajou as várias etnias a se unirem nas “comunidades” cujos membros, coletivamente proprietários do território, desfrutam de certa autonomia na administração dos assuntos internos. A lei deveria garantir a inalienabilidade das terras comunais.
Símbolo de emancipação após ondas coloniais de grande violência, esse dispositivo permanece, no entanto, projetado para integrar as populações amazônicas (1,05% da população total atual) na dinâmica nacional. A inclusão de comunidades em uma complexa rede administrativa e a eleição de representantes encarregados de encarnar localmente o Estado, cuja comunidade é, em última análise, apenas uma espécie de excrescência, são todas formas de estabelecer a legitimidade das instituições públicas na vida cotidiana. Além disso, o Estado central, jacobino, continua sendo o dono da água, da fauna e do subsolo: ele “cede para uso” o solo e os recursos florestais para as comunidades. Por conseguinte, reserva-se o direito de conceder parcelas a empresas extrativas, como as companhias petrolíferas, apesar dos riscos e consequências de suas atividades para o ambiente e a saúde da população.
O gradual estabelecimento do Estado nessa região só revelou o lugar que ocupa desde os primórdios da colonização: o de um espaço considerado vazio, cuja exploração se vê alçada à condição de causa nacional. “A criação das comunidades foi, em última instância, muito problemática porque, legalmente, os recursos continuam a pertencer ao Estado, que pode decidir explorar a floresta ou o petróleo no interior dos territórios comunais”, explica Juan Nuningo, atuuke (equivalente de ministro) responsável pelo desenvolvimento político e administrativo interno. O exemplo mais recente é o da atribuição à Petroperú, empresa estatal, de um direito de exploração de trinta anos sobre o lote de petróleo número 192, que cobre 500 mil hectares no norte da Amazônia e tem capacidade de produção de 10 mil barris por dia.8 O anúncio provocou a ira de centenas de comunidades tradicionais diretamente afetadas por essas atividades.
Limitado desde o início, esse direito à propriedade coletiva foi em seguida atacado o tempo todo por sucessivos governos. A natureza “inalienável” do território comunal foi notavelmente revogada pela Constituição de 1993, abrindo caminho para a privatização das parcelas comunais.9 A liberalização da terra começou em 1991, com o objetivo de pôr fim ao “paternalismo estatal” em relação às comunidades rurais, estimulando o investimento privado, cavalo de batalha dos principais economistas neoliberais, que veem na propriedade coletiva um arcaísmo pré-capitalista.10
O processo de liberalização tem se aprofundado nos anos 2000 por causa do impulso da indústria de petróleo e gás, ligado à forte demanda internacional. Como resultado, as atividades relacionadas ao petróleo e à extração mineral representaram 14,36% do PIB de 2016. A importância desse setor foi incentivada pelo aumento do preço do barril de petróleo, especialmente a partir de 2005. Durante seu segundo mandato (2006-2011), o presidente Alan García tentou remover os obstáculos ao investimento privado com uma política fiscal vantajosa e a licitação maciça de áreas de exploração. Enquanto em 2005 os lotes de petróleo cobriam “apenas” 15% da Amazônia peruana, cinco anos depois cobriam 490 mil quilômetros quadrados, ou quase 72% do território das terras amazônicas.11 Essas decisões políticas provocaram fortes protestos das federações indígenas, violentamente reprimidos pela polícia. Os confrontos em Bagua, em junho de 2009, deixaram 33 mortos e mais de duzentos feridos. (P.C. e R.C.)
*Paul Codjia e Raphaël Colliaux são doutorandos em Antropologia e Sociologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França.