No ritmo do kuduro
Na capital angolana Luanda, um fosso se abre entre a sociedade civil e o regime envelhecido do presidente. Muitos fazem um balanço amargo dos dez anos de capitalismo que marcaram a reconstrução do país e a juventude da capital exprime suas frustrações no kuduro, um gênero musical que atravessou as fronteiras nacionaisAlain Vicky
(Show de kuduro da banda Psirico e do grupo Dog Murra durante o carnaval de Salvador, Bahia)
Quando tem vontade de escutar sua cidade, Arlindo Barbeitos, de 71 anos, deixa seus livros, desce os andares de seu prédio velho onde o elevador já não funciona e passeia os ouvidos pelo bairro de Malanga, em Luanda. Na rua, ele assiste a engarrafamentos, torres de perfurações de petróleo, vias sem pavimento, candongueiros (táxis coletivos) tocando o último sucesso de kuduro [música e dança da moda em Angola e, recentemente, também no Brasil, com o tema de abertura da novela Avenida Brasil], trabalhadores chineses fumando cigarro e jovens portugueses que a crise europeia levou para a ex-colônia sentados contra um muro.1
A capital angolana, onde reside um quarto da população, comemora desde 2002 o fim da guerra civil que, depois da independência, em 1975, opôs praticamente sem parar o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita). No entanto, nestes últimos tempos, Barbeitos notou uma inflexão nas conversas: “Uma senhora me disse: ‘Eu sempre fui MPLA. Mas desta vez não vou votar, para que eles entendam que nós não concordamos com sua política’”.
Figura intelectual do país, ex-aluno do filósofo Theodor W. Adorno, Barbeitos é também um veterano da guerra de libertação. No entanto, esse companheiro de jornada do MPLA não está longe de pensar como sua interlocutora: “Eu não lutei para isso, mas por uma Angola mais justa”, diz ele, o olho brilhando, afundado no sofá. “Não defendo necessariamente o pensamento de Thomas Hobbes, mas aprovo sua ideia segundo a qual a democracia requer certa justiça econômica. Essa justiça agora não existe por aqui.” Algumas horas antes do nosso encontro, ele assistia a um espetáculo até então inédito nas ruas de Luanda: uma manifestação de 4 mil antigos militares, soldados e suboficiais das Forças Armadas Angolanas (FAA) que combateram entre 1975 e 2002 e reclamavam o pagamento de suas pensões atrasadas. Contrariamente aos oficiais e seus pares feridos em guerra, esses soldados, cujo número é estimado em cerca de 40 mil, não recebem uma aposentadoria mensal. Sem previdência social, eles aspiram, assim, a receber o prêmio de desmobilização prometido pelo governo ao final do conflito, dez anos atrás. “Estou indignado. Durante esse tempo, nosso ministro dos Antigos Combatentes se pavoneia na imprensa com seu relógio de US$ 50 mil. Também sou um veterano!”, exalta-se Barbeitos.
Os ex-soldados, entre os quais muitos combatentes da Unita, reintegrados a partir de 1992 no Exército nacional, voltaram às ruas e ameaçaram impedir as eleições gerais de 31 de agosto, a terceira desde a independência. Em virtude da última revisão constitucional de 2010, foi designado presidente da República e chefe do governo o primeiro nome da lista do partido que teve o maior número de votos. O MPLA saiu vencedor com 72% dos votos, distante da Unita (19%). Assim, o presidente José Eduardo dos Santos, de 69 anos e no poder desde 1979, foi reinvestido para um mandato de mais cinco anos. Ele dará, em seguida, o lugar ao seu vice, Manuel Vicente, antigo dirigente da companhia petroleira Sonangol.
Na capital, a taxa de participação de 58,19% ficou bem abaixo dos 87,36% atingidos nas eleições de 2008. A paz tinha, então, apenas seis anos. “Para evitar ressurgir o passado, os angolanos preferiram não discutir o assunto”, relata o pesquisador Justin Pearce, da London School of Oriental and African Studies.2 Era preciso reconstruir tudo. Sozinha contra quase todos durante os anos 1980, depois esquecida pelo mundo no fim do século XX, Angola, em ruínas, mas banhada por um mar de petróleo, via o mundo dos negócios chegar dos quatro cantos do globo para tomar parte em sua reconstrução.
Nas eleições de setembro de 2008, o MPLA recolheu 81,64% dos votos. Mas, pouco depois, a crise financeira internacional se abateu qual uma tempestade austral sobre o país. As perfurações congelaram, provocando um princípio de pânico nos investidores estrangeiros. Mal das pernas, o kwanza foi desvalorizado em 25% com relação ao dólar. A pequena classe média luandense, contratada pelo setor privado emergente de serviços, viu as taxas de juros subirem de 6% para 25% e, com elas, seus sonhos de ter acesso à periferia sul de Talatona, onde se instalam os estrangeiros expatriados. Muitos jovens empreendedores foram à falência.
Em 2009, o país sofreu um novo chacoalhão, dessa vez, político: contrariamente ao que havia sido anunciado, a eleição presidencial foi postergada em três anos. “A partir desse instante”, confidencia um próximo do regime, “o mal-estar começou a tomar conta de alguns militantes com prestígio do MPLA. Para eles, Santos acabava de transpor a linha vermelha. Se ele tivesse partido em 2008, teria saído de cabeça erguida: vencedor do conflito contra a Unita e instigador do renascimento econômico do país. Os luandenses não teriam visto o copo meio vazio, mas somente meio cheio. Agora, é o contrário”.
O som dos sem-voz
Em uma rara entrevista dada ao diário britânico Financial Times,3 o vice-presidente Vicente falou de sua preocupação diante do abismo que não para de crescer, na Angola pós-conflito, entre a fração dirigente e uma população que conta com 60% de jovens. Os musseques, bairros populares em volta da capital, continuam sendo as manchas negras de um país que está na 148ª posição – de 187 – no índice de desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Pouca água potável, ainda sem eletricidade, raras escolas. Aqui, os dividendos da paz parecem slogan publicitário, e o MPLA é normalmente visto como um vestígio do passado.
Música de uma nova Angola, misturada a ritmos eletrônicos (a quizomba e a semba são dançadas pelos mais velhos), o kuduro constitui para essa juventude um dos meios de expressar seu excesso de energia com figuras acrobáticas.4 Fabricado nos estúdios de fortunas individuais, depois difundido pelas caixas de som dos candongueiros, ele apareceu no meio dos anos 1990, quando os musseques viam sua população explodir com o afluxo de refugiados da segunda guerra civil que devastava o interior do país. Para as crianças dos guetos, ele se impôs rapidamente como um caminho que permitia esquecer um cotidiano de privações e de toques de recolher. Propagando-se entre as diásporas lusófonas de Lisboa e Johannesburgo, o kuduro canibalizou todas as músicas urbanas que estavam ao seu alcance. No fim da guerra, alimentado pelo techno comercial, pelo kwaito sul-africano, pelo reggae, pelo rap, mas também pelo kwaza-kwaza congolês, ele se impôs como o som dos sem-voz da capital.
Recentemente, a musicóloga alemã Stefanie Alisch constatou, durante uma pesquisa em Luanda, que os primeiros kuduros em favor do partido governamental começam a circular agora na cidade.5 “No estádio da Cidadela, durante um show de três grupos de kuduristas extremamente populares nos musseques, tinham até pregado imensos cartazes de Santos”, conta.
Até o fim dos anos 2000, o papel social do kuduro era, no entanto, ignorado pelo poder, que via ali, no máximo, uma bagunça sonora. Agora, o estilo musical foi promovido pelo Ministério da Cultura e amplamente divulgado nos dois canais públicos de televisão. “Mas ele também perdeu muito em termos de criatividade nos últimos três anos”, salienta outro especialista do estilo, o DJ franco-americano Benjamin Lebrave.6
“Em Angola, o dinheiro permite que se compre tudo, inclusive os músicos considerados um pouco rebeldes demais. Mas a juventude venceu o medo do sistema e começa a demonstrar publicamente suas frustrações. Acabou, cara, não há mais possibilidade de voltar atrás: o medo foi embora”, lança o DJ angolo-português Pedro Coquenão. Encabeçando o coletivo Batida, ele acaba de assinar com o selo Sound-way um primeiro disco de “kuduro consciente”, cristalizando a frustração de uma parte da juventude luandense: a que está conectada com as redes sociais e os blogs, tais como o Central Angola ou o site anticorrupção Maka Angola,7 dirigido pelo jornalista e militante dos direitos humanos Rafael Marques de Morais. “Como pode, dez anos depois do fim oficial da guerra, a maioria dos angolanos não ter tido lucro com o boomeconômico da reconstrução, diferentemente dos estrangeiros?”, questiona Coquenão. “Eu leio muito Agostinho Neto [primeiro presidente da Angola independente]. Seu sonho, o de um país multicultural poupado pelo imperialismo, se desfez. Ele não estava errado quando disse que a partida dos portugueses não impediria que os problemas ligados à exploração de nossos recursos petroleiros continuassem. Nós apenas passamos da catástrofe para a calamidade.”
No álbum de Batida, “Bazooka” parece fazer eco às reivindicações dos veteranos que se manifestavam nas ruas de Luanda. Inclui um trecho do comentário amargo de um jovem, antigo soldado do Exército angolano. Desmobilizado depois de ter recebido um estilhaço de bomba na cabeça, ele não dá razão nem a Jonas Savimbi (fundador da Unita, morto em 2002) nem a Santos. O trecho revisita “Bazooka”, do cantor Carlos Lamartine, instrumental de semba escrito antes da independência para apoiar o exército de libertação do MPLA. Na virada dos anos 1960-1970, muitos grupos elétricos, produzidos pelo selo Ngola, utilizavam a “rebelião pacífica da música” para acordar “as consciências adormecidas por cinco séculos de colonização e que não acreditavam em mais nada”, lembra Amadeu Amorim, membro dos N’gola Ritmos, pioneiros míticos da música popular angolana. Incluindo no álbum diversas amostras de numerosos clássicos dessa era de ouro, Coquenão pretende prolongar seu combate. Especialista nas relações entre a música angolana e a política, a historiadora norte-americana Marissa J. Moorman observa uma forte ressonância entre as canções de resistência de ontem e os trechos rappeados-cantados produzidos agora por Coquenão ou o inclassificável Nastio Mosquito − sem falar das perseguições que sofrem, como ontem sofriam os antigos, alguns dos porta-vozes dessa nova geração.
“Está na hora de um novo hino”
No coletivo Batida, muitos tiveram problemas com o poder: Sacerdote, MCK e principalmente Ikonoklasta, “homem procurado”, segundo o escritor José Eduardo Agualusa, “como todos os que lutam neste momento pela democracia em Angola”.
Desde a primeira manifestação, com quatrocentas pessoas, organizada contra Santos em março de 2011 em Luanda, na esperança de ver florescer uma “primavera” angolana, Ikonoklasta está em todos os ajuntamentos. Perseguido pela polícia, ameaçado pelos milicianos, agredido na saída de uma passeata, o jovem rapper incomoda ainda mais o poder por ser filho de João Beirão, um falecido amigo do chefe de Estado, diretor durante os anos 1990 da fundação de Santos [Fundação Eduardo dos Santos, Fesa]. “O MPLA tem uma história da qual muitos aspectos merecem não ser esquecidos, mas que comporta também muita sujeira, que até agora ficou escondida debaixo do tapete”, analisa Ikonoklasta. “Não sei se os historiadores vão conseguir fazer um balanço positivo ou negativo, mas uma coisa é certa: os que se recusam a aceitar que seu tempo passou deixam geralmente apenas amargura e más recordações quando decidem partir – ou melhor, quando são colocados para fora pela pressão popular. É o caso em todas as profissões: vejam os jogadores de futebol!”
Filho de Lúcio Lara, um dos pais da independência, Paulo Lara considera Ikonoklasta “muito corajoso”, mas pondera: “Luanda não é Angola”. No interior do país, onde a guerra deixou as sequelas mais importantes, os eleitores ainda consideram que “o copo está meio cheio”: centenas de quilômetros de estradas e ferrovias reconstruídas, que religam o mundo rural ao litoral, fonte de 90% da atividade econômica. Unindo-se à guerrilha aos 16 anos, Lara filho entrou em 1975 para a hierarquia militar, até pertencer ao Estado-Maior do Exército. Depois de quarenta anos de atividade, ele acabou se aposentando. “Essa nova geração quer esquecer o passado – a guerra – e, com ela, aqueles que a encarnam. Mas me parece importante se interessar por sua história, a fim de lembrar-se do caminho percorrido.” Hoje coordenador da associação Tchiweka, nome de guerra de seu pai, Lara recolhe os depoimentos de pessoas implicadas direta ou indiretamente no processo de independência, “e sem restrições de opinião política, de nacionalidade ou de religião”. Esse vasto projeto deveria ser finalizado até 2015, na ocasião do quadragésimo aniversário da independência.8
Na manhã de 11 de novembro de 1975, acompanhado por uma garrafa e uma música de Rui Mingas, o grande escritor Manuel Rui, então com 34 anos, compunha o hino que seria cantado naquela mesma noite, enquanto a nova bandeira angolana subiria, tremulante, na noite de Luanda. Tratava de “revolução, pelo poder do povo”, e, claro, do “novo homem”. “Está na hora de escrever um novo hino, vocês não acham?”, pergunta o escritor. No ritmo do kuduro?
Alain Vicky é Jornalista.