No Tibete, uma visita bastante guiada
Quando percorremos a Região Autônoma do Tibete – escoltados, obrigatoriamente –, não vemos nenhuma guarnição militar chinesa, e pouquíssimos policiais. Tudo parece calmo. O poder central passou da “repressão total” a um sistema de liberdade religiosa e cultural condicionada
O budismo é de enlouquecer. Pelo menos é isso que se pode imaginar diante da agitação provocada pela futura sucessão do 14º dalai-lama, Tenzin Gyatso, de 84 anos. Em Pequim, o Partido Comunista Chinês (PCC) pretende indicar – se não escolher – a reencarnação do “Buda vivo” que substituirá o odiado líder. Em Nova York, no dia 9 de novembro, o embaixador dos Estados Unidos na ONU, Samuel Brownback, apelou à Assembleia, que deveria “envolver-se” no processo de designação. Em Dharamsala (Índia), os tibetanos no exílio garantem que o líder do budismo tibetano pode reencarnar em qualquer lugar… exceto no Tibete. Isso diz muito sobre essa região chinesa, onde se entrelaçam identidade cultural e crenças religiosas, aspirações por autonomia e questões geopolíticas.
Não é preciso explicar que fazer uma reportagem ali não é como passear no bosque. É preciso pedir permissão a Pequim. É assim que um pequeno grupo de jornalistas se vê rumo a uma visita à Região Autônoma do Tibete, forçado a ver apenas o que quiserem lhe mostrar.
No final de setembro, bandeiras chinesas e lanternas vermelhas são hasteadas na estrada que leva do aeroporto à capital, Lhasa: é véspera do 70º aniversário da fundação da República Popular da China, e isso deve ser notado. Embora os cartazes e todos os materiais públicos estejam escritos sistematicamente em duas línguas, mandarim e tibetano, a primeira está sempre maior que a segunda.
Apesar desse contexto singular, a chegada a Lhasa (mais de 3.600 metros acima do nível do mar) é mágica. Os prédios vermelhos e brancos do Palácio de Potala, sede da antiga teocracia, orgulhosamente pendurados no flanco da montanha, reinam sobre a cidade. Uma cidade desfigurada, nas palavras de todos que a conheciam antes dos anos 1990: os edifícios que se estendem aos pés do palácio, para além do Parque Norbulingka, lembram mais os conjuntos habitacionais de um subúrbio de Paris do que as construções de uma cidade medieval. “Os projetos mudaram”, diz um guia, mas os líderes não desistiram da política do trator.
O centro da cidade, porém, parece ter preservado sua história, com o Templo de Jokhang e seus milhares de visitantes, a Rua Barkhor e suas centenas de lojas – ainda que os puristas expliquem que o templo, brilhando de novo desde a mais recente reforma, já foi destruído diversas vezes e reconstruído de forma idêntica. Na China, isso é comum. Os olhos menos treinados contentam-se em admirar o edifício que abriga a estátua ricamente adornada de Buddha Sakyamuni, “do tamanho de uma criança de 12 anos”, trazida no século VII por uma princesa chinesa, Wencheng, que se casou com um imperador tibetano – prova, para as autoridades, de que o destino dos dois povos está fundido. Aos pés do Monte Baoping, o caso serve de argumento para um espetáculo ao ar livre grandioso, até grandiloquente, diante do qual o de Puy du Fou, na França, parece muito pobre, mas cuja relação com a verdade histórica parece igualmente limitada e parcial.

O turismo de massa se anuncia
Apesar do fim da temporada turística, há muitos devotos. Eles entram no templo, com o maço de notas na mão, depois se curvam diante de um Buda antes de deixar algumas para que seu pedido se realize; outros caminham em torno do mosteiro em sentido horário. Nesse dia, um jovem fazia a volta se prostrando, baixando a cada três passos até tocar a cabeça no chão. Vimos outros fazerem o mesmo ao longo da estrada. Ninguém foi levantá-los, ninguém foi mostrar indignação. Crianças e adultos, jovens e idosos, todos puderam orar com a maior tranquilidade – até os mais fanáticos. Estamos longe da imagem amplamente difundida de repressão cotidiana. E totalmente diante da visão que as autoridades de Pequim querem difundir: a religião não é inimiga do poder central. Sob certas condições, é preciso juntar-se a ela.
Pudemos confirmar isso a 85 quilômetros dali, no Mosteiro de Yangbajing. No salão-biblioteca de cores vibrantes, os monges explicam que o governo financiou a reforma do local, bem como a do templo e a dos alojamentos dos 45 religiosos, que agora podem contar com aposentadoria e seguro-saúde.
No centro do grande cômodo, logo abaixo de um majestoso Buda, o livro de Xi Jinping está posicionado no centro de um altar. “Estamos estudando tudo o que diz respeito aos pensamentos do presidente Xi e à religião”, declara um dos monges diante de nosso espanto. “Somos monges, mas também somos cidadãos, e os jovens precisam conhecer os princípios patrióticos e do governo chinês”. Em bom português: o dinheiro do governo comunista bem vale uma missa… Três vezes por mês, já que desde 2011 a “educação legislativa e patriótica” deve ocupar obrigatoriamente pelo menos 10% do tempo.
Assim, Pequim parece ter passado da repressão total, que provocou a revolta de 2008,1 a uma permissividade condicionada. Os fiéis podem ir ao templo, orar, prestar homenagem aos budas, adotar práticas extremas; os monges podem conduzir esse belo mundo segundo os arcanos da religião e até receber subsídios, desde que não enveredem pelo caminho da política e da reivindicação independentista, nem mesmo autonomista.
Um encontro com uma família da vila de Kesong, perto de Shannan (ou Lhoka, antiga capital do Tibete), a cerca de 100 quilômetros ao sul de Lhasa, ilustra esse pacto implícito. Em uma casa tradicional dessa vila moderna e limpa, um casal de seus 60 anos nos aguarda com tsampas (bolinhos doces e salgados feitos com farinha de cevada) e o inevitável chá com manteiga de iaque. Ele é comunista e nos fala da vida de sua família, liberta “do jugo do regime feudal dos dalai-lamas” graças ao PCC. Ele só sai do discurso convencional para falar sobre seus negócios (transporte de pessoas e mercadorias), que lhe rendem dez vezes aquilo que ganha um habitante médio da vila! Sua esposa é budista e às vezes vai ao templo com os pais, mas em geral se recolhe em um cômodo da casa ricamente transformado em local de culto. Há ali uma capela para os ancestrais, um incensário, um imponente tambor, um retrato do Panchen Lama (mas nenhuma imagem do 14º dalai-lama, o que é proibido) e outro de… Xi Jinping. A harmonia perfeita, tanto nas paredes da sala como no interior do casal. “Não evitamos falar no assunto”, afirma Da Wu, “porque a crença é uma questão pessoal.” Mas não deve interferir na esfera pública.
“Como na França, onde, de acordo com seus princípios de laicidade, a religião diz respeito ao âmbito privado”, comenta, sorrindo, Li Dencheng, pesquisador e diretor administrativo do Centro de Pesquisa Tibetológica da China, em Pequim, ao fim de nossa estadia. Exceto pelo fato de que, na França, não obstante haja separação entre Igreja e Estado, qualquer religioso tem o direito de participar do debate público – o contrário do silêncio imposto a esse grupo, tanto em Lhasa como no restante do país.
De qualquer forma, o casamento entre o comunista convicto e a budista declarada é exibido como um exemplo pelas autoridades: isso seria inimaginável dez anos atrás. Pequim quer que as pessoas saibam que as coisas estão mudando e que o governo respeita as crenças e os lugares sagrados – especialmente quando tais lugares são de interesse turístico, a nova obsessão quando se trata do Tibete.
Eis então que estamos a caminho do Lago Namtso, local de peregrinação budista, a cinco horas de ônibus da capital: uma pérola esmeralda situada a 4.718 metros de altitude, cercada por cadeias de montanhas com picos nevados que vão do branco ao laranja, dependendo da luz, e rodeada por imensos prados onde pastam manadas de iaques. O cartão-postal perfeito.
Dezenas de pessoas invadem a área para serem fotografadas. “Eles postam as fotos nas redes sociais”, explica Ma Yang, nossa guia. “De repente, o lugar ficou na moda. Especialmente desde que os locais de turismo coletivo na China ficaram comuns. Os jovens querem originalidade.” Em 2018, o Tibete recebeu quase 34 milhões de turistas, principalmente chineses: uma alta de 31,5% em um ano. O turismo de massa se anuncia. Não é certo que o Lago Namtso e o restante do território ganhem alguma coisa com isso.
Por enquanto, os 200 quilômetros que percorremos são apenas um emaranhado de canteiros de obras para a construção de estradas, rodovias e ferrovias, pedreiras nas encostas das montanhas e uma infinidade de caminhões. “Claro que as pessoas mais velhas não estão muito felizes, pois precisamos cortar a montanha e, para eles, a natureza é sagrada”, reconhece o secretário-geral adjunto do Partido Comunista de Damxung. “Mas, para os mais jovens, isso significa que o distrito deixará de ser um enclave. Podemos vender nossos produtos do lado de fora, comprar outros…” A mais de 5 mil metros de altitude, as imponentes torres de linhas de alta-tensão estalam de novas ao longo da montanha. Os pastores que antes não tinham eletricidade agora podem assistir à televisão e ter telefone celular.
Esses projetos têm mais de 90% de seu financiamento garantido pelo governo central, isso sem falar do Centro de Tibetologia de Pequim. A Região Autônoma do Tibete é campeã em todas as categorias de despesas públicas por habitante: 61.567 yuans (R$ 37.242) por ano. “Uns encostados!” – assim são classificados os tibetanos em algumas redes sociais. Mas eles não pedem muito: preferem reduzir as velas e decidir seu próprio destino.
Porque de autônoma a região só tem o nome. A grande maioria dos altos funcionários é da etnia han, majoritária na China. A maior parte dos projetos é decidida por Pequim, com três objetivos. O primeiro deles é impulsionar o crescimento por meio de dois instrumentos dificilmente compatíveis: turismo e mineração (cobre, cromo, prata etc.). Esta última já representa mais de um quarto do PIB da região, mas nunca ouvimos falar dela durante nossa viagem: o assunto não combina bem com a declarada preocupação com o meio ambiente. O segundo objetivo está vinculado ao primeiro: construir uma rede de infraestrutura para, no contexto das “novas rotas da seda” (Belt and Road Initiative, BRI), chegar ao Nepal e à Índia – Xi Jinping esteve em Katmandu no dia 12 de outubro de 2019, 23 anos depois da última visita de um líder chinês. Por fim, o governo central deseja integrar a população, sobretudo os habitantes de formação mais elevada. Apesar da existência de uma política de discriminação positiva nos empregos públicos urbanos, os tibetanos ainda são sub-representados nesse domínio.2
Nesta região muito pobre, o desenvolvimento impetuoso da economia (crescimento de 10% em 2018) permitiu o surgimento de uma nova classe média, e até abastada. No início de setembro, por exemplo, Lhasa abrigou uma feira com o sugestivo nome de Fashion Himalayan, organizada por um rico tibetano, onde foram apresentados produtos de alto luxo, como roupas Max Mara e joias Chopard.
Uma cena cultural dinâmica
No entanto, nada indica que, aqui mais do que em qualquer outro lugar, a riqueza vá fluir em direção aos mais pobres. Nada indica também que isso será suficiente para extinguir o sentimento nacional tibetano, como sonha Pequim. Claro que nossos gentis organizadores enfatizam o desejo manifestado pelo poder central de preservar a cultura local: visitas à universidade, onde são preservados os 70 mil documentos e sutras budistas, atestando que “a escrita tibetana existe há 1.300 anos”; à faculdade de medicina tibetana, que produz entusiasmo garantido; a oficinas de artesanato dinâmicas; além dos lugares sagrados. Mas os tibetanos temem a marginalização de sua língua e a folclorização de sua cultura tanto, se não mais, quanto a caça ao dalai-lama.
Tibetologista e professora do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais (Inalco), Françoise Robin, que voltou de Lhasa no início de outubro, conhece bem o conjunto do platô tibetano. Ela confirma: “A ansiedade em relação à perda da língua pode ser sentida em toda parte”. Diversos depoimentos afirmam que isso está relacionado, em parte, à má qualidade do ensino.
Além disso, um número crescente de tibetanos prefere colocar seus filhos em escolas chinesas ou estudar em universidades chinesas. Eles não estão mais confinados à sua região de origem, tendo maior liberdade para exercer sua profissão, mas “tendem a se tornar chineses, a abandonar o sentido de comunidade. Estão perdendo sua ‘tibetanidade’”, observa Françoise. Um jovem rapper, Ludup Gyatso, com dreadlocks, óculos escuros e uma barulhenta motocicleta, denuncia a situação em um clipe, “Citadins”, pregando a volta às raízes. A pesquisadora vê isso como motivo de otimismo: apesar dos ventos contrários, “existe uma sociedade intelectual tibetana dinâmica”. E cita muitos exemplos, assim como escritores tibetanos.
Entre eles, o famoso Tsering Dondrup, com seu humor devastador e escrita aguda. Mas ele só publicou, por conta própria, o romance Tempête rouge [Tempestade vermelha], que Françoise traduziu para o francês:3 o relato da revolta dos nômades contra a política chinesa em 1958 não agradou. Dondrup foi demitido de seu emprego como funcionário público, mas “continua escrevendo, e seus livros, como Mes deux pères [Meus dois pais], uma ficção de inspiração autobiográfica sobre o período 1970-1990, vendem bem”, diz Françoise. A poetisa Tsering Woeser, que tinha um blog muito popular e publicou diversos livros, incluindo Mémoire interdite [Memória proibida],4 não tem mais essa possibilidade. Ela está em prisão domiciliar em Pequim.
Podemos falar em “genocídio cultural”? O primeiro diretor tibetano a filmar em seu idioma, Pema Tseden, que antes era escritor,5 não usa esse termo. Pequenas joias de sensibilidade e humor, seus filmes – Tharlo, a história de um jovem pastor esmagado pela cidade, ou Jinpa, um road movie que atravessa a estepe6 – são exibidos no país. “Só posso criar dentro da estrutura do sistema de censura, portanto preciso conhecer os mecanismos para contorná-los”, explica, contudo, o diretor. “Há assuntos que devem ser evitados” – especialmente a religião. “Então”, confessa, “há muitos desafios e, às vezes, como indivíduo, sinto-me impotente.” Mas ele não abandona a câmera. Pelo contrário: usa seu sucesso para ajudar outros jovens cineastas. Fazer filmes que são exibidos em toda a China “ajuda muito [os hans] a entender a cultura tibetana, mas é um processo lento”, diz. E é preciso que Pequim não apague a chama.
Martine Bulard é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Ler Mathieu Verneret, “Bourgeonnement précoce du printemps de Lhassa” [O despontar precoce da primavera de Lhasa], Le Monde Diplomatique, abr. 2008. Desde então, cinquenta monges se imolaram, segundo tibetanos no exílio.
2 Andrew M. Fischer e Adrian Zenz, “The limit to buying stability in Tibet: Tibetan representation and preferentiality in China’s contemporary public employment system” [O limite da compra de estabilidade no Tibete: representação e preferências tibetanas no sistema de emprego público chinês contemporâneo], The China Quarterly, Londres, out. 2017.
3 Tsering Dondrup, Tempête rouge [Tempestade vermelha], Picquier Publishing, Arles, 2019.
4 Tsering Woeser, Mémoire interdite. Témoignages sur la Révolution culturelle au Tibet [Memória proibida. Testemunhos sobre a Revolução Cultural no Tibete], Gallimard, Paris, 2010.
5 Ler “Le Tibet sans manichéisme” [Tibete sem maniqueísmo], Le Monde Diplomatique, mar. 2013.
6 Jinpa será apresentado no Festival Internacional de Cinema Asiático de Vesoul (11 a 18 de fevereiro de 2020), no qual Tseden será presidente do júri.