Nos bastidores da investigação
Eles encarnam o contrapoder: jornalistas que pesquisam a corrupção dos poderosos. Esses investigadores provocaram a demissão de ministros, chacoalharam conselhos e, mais raramente, derrubaram empresários. Mas guardam um lado sombrio. O público não sabe nada sobre sua maneira de trabalhar, ao que se opõem e o que os motiva
Desde meados dos anos 1980, a vida pública francesa parece marcada por um paradoxo. De um lado, o aumento do desemprego, das desigualdades sociais e geográficas, a globalização econômica e o recuo do Estado de bem-estar tal qual foi concebido após a Segunda Guerra Mundial e seu redirecionamento em benefício das empresas privadas deram o tom ao nosso tempo. De outro, o mundo midiático alçou ao ponto mais alto de sua hierarquia não a pesquisa social ou a reportagem econômica, aptas a esclarecer essas transformações, mas um gênero e uma figura que geralmente prosperam quando tudo se esboroa: o escândalo de corrupção político-financeira e o chamado jornalismo investigativo.
Na França, repisamos o nome dos casos como cantarolamos as musiquinhas-chiclete que imprimem sua melodia nos sulcos da memória coletiva: Botton, Schuller-Maréchal, Urba, MNEF, HLM de Paris, HLM dos Hauts-de-Seine, Elf, Pelat, a fita–cassette Méry, Crédit Lyonnais, Dumas, Balkany, Takieddine, Woerth-Bettencourt, Cahuzac… Cada qual por sua vez, eles são manchete, acabam com carreiras políticas e instalam a ideia de uma sociedade estruturada não mais pelo enfrentamento de forças sociais e políticas, mas pelo combate do bem – um número reduzido de pessoas decididas a purgar nossa bela democracia das ovelhas negras que a desfiguram – contra o mal – um grupelho de eleitos e altos funcionários corruptos. Esses anjos devotados de corpo e alma à virtude suprema – o direito à informação – formam uma elite no seio de seu ofício.
Durante os anos 1970, a relação de forças entre a imprensa e o poder, desequilibrada em favor do segundo, atuava marginalmente, pelo menos até uma dupla de investigadores do Washington Post provocar a queda de um presidente dos Estados Unidos. Mito fundador1 transformado em modelo, o caso Watergate fixou de uma vez por todas as regras do exercício: o investigador escolhe como adversário o Estado, fonte presumível de todo poder e todo dano, no momento exato em que este empreende a retirada em favor das empresas privadas.
Passando das colunas irreverentes do Canard Enchaîné, em fins dos anos 1970, às do Le Monde em meados da década de 1990, o jornalismo investigativo especializado em assuntos político-financeiros modificou profundamente a cena democrática. Agora, o observador é ator e às vezes diretor da peça representada pelos partidos, os eleitos e os eleitores. Suas revelações alteraram o panorama das eleições presidenciais francesas de 2017 ao contribuírem para a eliminação de François Fillon, tal como provocaram a demissão do vice-chanceler austríaco Heinz-Christian Strache em 2019. O contrapoder foi içado às fileiras do poder. Mas quem conhece seu funcionamento? De que maneira vêm a público essas “revelações”? Quem escolhe sua agenda, seus alvos?
Uma característica curiosa dessa atividade, empreendida em nome da moral e do imperativo da transparência, é sua opacidade. Com efeito, um golfo separa a imagem do jornalista investigativo, veiculada pela própria imprensa por meio de retratos de seus agentes (indivíduos de olhar sombrio e talentos supostamente excepcionais, fotografados de costas uns para os outros, como nos cartazes de filmes de espionagem),2 e a prática cotidiana da profissão.
É que existem, no fundo, duas maneiras de investigar. Uma, reivindicada de preferência pelo autor destas linhas, poderia ser definida como um jornalismo lento e banal: o investigador escolhe seu tema e dedica-lhe certo tempo, uma energia que a maior parte das redações não se dispõe a investir. Ele avança às cegas, aos tropeços, e corre o risco de se enganar. Suas pesquisas desembocam quase sempre em casos judicializados, diferentes dos escândalos político-financeiros que inspiram as manchetes. Com esse material, ele escreve um livro cujo adiantamento cobre, grosso modo, as despesas que fez e cujas vendas ajudarão a dar início à investigação seguinte. O modelo é frágil: alguns fracassos comerciais sucessivos, acompanhados de processos por difamação, bastam para privar o jornalista da possibilidade (e do desejo) de recomeçar. Para reaver o crédito abalado das mídias, algumas redações, inclusive do ramo audiovisual, procuram casos que permitam investigar temas econômicos ou de sociedade, mas o fenômeno continua marginal. E com razão.
Embora pretendam, de modo geral, seguir o caminho escarpado, a maioria das atrações principais do jornalismo investigativo funciona de maneira radicalmente diferente. Não se trata de pesquisar, mas de esperar um vazamento – o de um auto processual ou de uma investigação criminal feitos por um juiz, um policial, um advogado. O documento chega, ontem por fax, hoje por mensagem criptografada. O intrépido detetive põe-se então a reescrevê-lo em estilo jornalístico: pormenores, datas precisas, nomes conhecidos ou que logo o serão. Essa tarefa de transposição é entremeada por alguns telefonemas que permitem ouvir desmentidos ou gaguejos embaraçados das pessoas envolvidas, prova inequívoca de um trabalho de primeira ordem.
“O caso HLM permitiu a descoberta de uma categoria especial da corporação dos homens de imprensa: os jornalistas investigativos. Quando eu ainda era ingênuo, pensava que sua função era… investigar”, escreveu o juiz Éric Halphen. “Engano! […] Com pouquíssimas exceções, e penso aqui principalmente no Canard Enchaîné […], os jornalistas investigativos não investigam…”3 O magistrado confidencia então, em off, que recebeu uma proposta de dois grandes jornalistas investigativos da época para “uma mão lavar a outra”, que ele recusou.
“Não tomamos a iniciativa da investigação”
A ascensão desse jornalismo que está no centro das atenções se deve, assim, a uma aliança de ocasião entre uma pequena parte do mundo judiciário e alguns elementos do mundo midiático.4 Essa coalizão marginal, de efeitos contundentes, apresenta diversas características. Em primeiro lugar, e de modo geral, não é o jornalista investigativo que toma a iniciativa do caso: este lhe é enviado já pronto por um juiz, um policial ou um advogado que têm suas prioridades, seus interesses – por exemplo, destravar os freios políticos à investigação judicial de um figurão, tornando-a pública. “Nossa regra é seguir as instruções”, explicou Ariane Chemin, do Le Monde. “Não tomamos a iniciativa da investigação.”5
O caso do suposto financiamento líbio para a campanha de Nicolas Sarkozy em 2007, noticiado pelo site Mediapart, esclarece bem os bastidores da investigação. Os principais atores da peça são os responsáveis pelo Departamento Central de Luta contra a Corrupção e as Infrações Financeiras e Fiscais. Esse serviço da polícia judiciária, sediado em Nanterre, interrogou os protagonistas líbios e franceses citados na investigação. O chefe responsável pelo dossiê digitalizou regularmente os novos relatórios. Um advogado da associação Sherpa, parte civil nesse processo, recuperou os últimos CDs que continham os documentos. Nos dias seguintes, um jornalista do Mediapart publicou outro elemento da “investigação”, evidentemente bem documentado. Tendo em mãos toda a documentação judiciária e na qualidade de maior especialista no caso, Fabrice Arfi completou a tarefa do Departamento Central recorrendo aos relatórios, que continham nomes, lugares e endereços dos envolvidos, bem como das pessoas próximas a eles. Portanto, a investigação consiste em selecionar os documentos de um processo que possam interessar aos leitores, reescrevê-los e completá-los: o investigador gerencia vazamentos.
O segundo aspecto diz respeito justamente à origem e uso dessas informações. Explorá-las significa infringir duas leis, a presunção de inocência e o sigilo da fase de instrução processual, em nome de um princípio, o direito à informação. Essas distorções da legalidade dão ao punhado de “investigadores” que falam em nome da profissão meios que vão além do direito comum, os da justiça e da polícia, mas sem o enquadramento administrativo e judiciário que normalmente os acompanha. Formado no Le Monde e depois diretor de redação do Journal du Dimanche, Hervé Gattegno admitia, no início dos anos 2000, trabalhar mais ou menos como um juiz de instrução. Costumava deixar seu cartão de visita na caixa de correio de um protagonista inalcançável por telefone, com estes simples dizeres: “Hervé Gattegno gostaria de ouvi-lo”.
No caso Cahuzac (que, convém esclarecer, se originou de um verdadeiro inquérito de iniciativa), Edwy Plenel, diretor do Mediapart, não hesitou em escrever ao procurador da República exigindo que ele apresentasse uma petição suplementar para que o juiz considerasse os fatos novos revelados pelo site. Ou seja, o jornalista não se contenta mais com ajudar na divulgação da verdade e esclarecer a opinião dos leitores: ele se faz, como nesse caso, de auxiliar da justiça ou mesmo de polícia. Tal postura parece legítima aos olhos do público quando se trata de denunciar ao procurador um ministro da Economia que frauda o fisco, como sucedeu a Jérôme Cahuzac. Mas o jornalista denunciaria amanhã, ao juiz, um adversário político, um inimigo pessoal, um concorrente nos negócios? Enquanto nenhum contrapoder contrabalançar o poder midiático, uma parte do debate público dependerá da seleção, por alguns investigadores, dos vazamentos postos à sua disposição; uma triagem efetuada de maneira a chegar onde “se pratica o mal, na esperança de que, um belo dia, haja menos mal, menos desgraça ou sofrimento, injustiça e miséria”.6 Se alguém estiver interessado em dramatizar esse suposto enfrentamento entre o justo e o indigno, a começar pelos juízes e a polícia (que veem aí uma maneira de agir sem aparecer), não se iluda: é seguindo seus próprios critérios, suas prioridades políticas, sua agenda ou a de seus informantes que o investigador decidirá, por exemplo, publicar os documentos obtidos durante uma busca na casa de uma personalidade eminente, que a polícia se apressou em lhe entregar. Por acaso nos informaremos sobre a vida privada de Jean-Luc Mélenchon, cujos computadores e correspondência pessoal foram confiscados em outubro de 2018, oportunamente levada à internet na véspera de um evento político? Ou sobre os dados recolhidos pelos detetives de Bernard Arnault sobre a vida do deputado François Ruffin e suas relações com a equipe do jornal Fakir?
Tudo acontece como se alguns personagens da cena jornalística conseguissem sub-repticiamente alterar a ordem dos artigos da Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, de 1789, colocando a presunção de inocência (artigo 9) depois da livre comunicação de pensamentos e opiniões (artigo 11). E mais: o direito à informação não figura aí. A tese relativa ao conjunto dos cidadãos, que são teoricamente seus beneficiários, só foi definida pelos profissionais da informação em textos corporativistas (como a Declaração dos Deveres e Direitos dos Jornalistas de Munique, em 1971). Cabe à imprensa resolver somente essa questão ou também a da proteção da vida privada?
O debate sobre o uso de escutas telefônicas pelas estrelas da investigação ilustra bem essa tensão. Como todos os que trabalham com problemas sensíveis, Plenel, então jornalista do Le Monde, foi alvo de vigilância. Ele conta, em livro, essa experiência. “Uma conversa ao telefone é uma espécie de conversa consigo mesmo”, escreve em Les Mots Volés [Palavras roubadas] (Stock, 1997). “Se o interlocutor é íntimo, nós nos abrimos, nos despimos, meditamos em voz alta, falamos rápido, discorremos sobre o que não pensamos de fato, mentimos, proferimos asneiras, dizemos qualquer coisa, garantimos ser verdade aquilo de que duvidamos profundamente […]. Sentimo-nos em casa, ao abrigo de uma intimidade protetora.” Vinte anos depois desse texto percuciente e sincero, ele invoca a noção de “interesse público” para justificar a publicação, pelo Mediapart, de outras “palavras roubadas”, as do mordomo de Liliane Bettencourt, herdeira da L’Oréal. Inegavelmente, as revelações suscitam o interesse público. Mas seus motivos não são sempre tão moralmente impecáveis quanto gostariam de acreditar esses justiceiros de gabinete. A alegria perversa de ver os corruptos no chão tem por corolário, com frequência, a impotência diante das estruturas corruptoras, que continuam inabaláveis mesmo quando um ministro escorraça outro. Acreditamo-nos vingados, mas nada mudou.7
O furo rende dinheiro
Isso quando não é a conta bancária ou o verniz social da mídia que descobriu a história, pois o interesse público, tantas vezes invocado, mantém laços estreitos com o interesse privado. Sempre sugerido como um serviço prestado ao público, o furo rende. Faz jus à manchete, reaparece na televisão e no rádio, pipoca nas redes sociais, converte-se em notoriedade, credibilidade e depois em vendas, assinaturas, aumento dos preços de publicidade. Daí a técnica irritante do “folhetim”, que consiste em fragmentar a publicação dos relatórios para protelar a revelação e expandir seu impacto, apresentando ao mesmo tempo esse truque comercial, digno de um saltimbanco de feira, como uma dramaturgia inerente às reviravoltas da investigação. Esse escalonamento desestabiliza por vezes a marcha dos confrontos políticos: em época de campanha eleitoral, permite centrar o debate em suspeitas sobre um candidato, ignorando seu programa.
A própria produção do furo obedece a critérios econômicos. O acesso aos documentos da justiça permite ganhar tempo e, portanto, dinheiro. Os jornalistas-justiceiros que recebem esse material se beneficiam de investigações não apenas já feitas, mas também já pagas, pois os relatórios que o constituem sintetizam as pesquisas realizadas pela polícia e a justiça com dinheiro público. Os poucos jornalistas que “descobrem a história” graças a vazamentos conseguem, assim, uma espécie de subvenção que depende de seus contatos pessoais, dos quais seus colegas estão privados. Os caminhos da virtude e do combate contra o Estado são decididamente sinuosos!
Essa economia da investigação apresenta um duplo efeito perverso. Os jornalistas que aceitam a aliança entre a mídia e o Judiciário pagam o acesso aos documentos com uma extrema dependência das fontes. Quando os relatórios emanam dos advogados das partes civis, os artigos geralmente tomam o lado de uma das partes. Considerando-se o pequeno número de magistrados, advogados e policiais prontos a revelar o segredo da instrução, a quantidade de “grandes jornalistas investigativos” que se dedicam a assuntos fortemente judicializados está até agora limitada, na França, a uma dúzia. A desigualdade de acesso à informação, implícita nessa estrutura, comporta também uma dimensão econômica: como um punhado de jornalistas investigativos detém o monopólio do acesso aos autos dos processos sensíveis, todos os outros se veem forçados a repeti-los e citá-los, promovendo, dessa forma, seus concorrentes.
Três décadas após sua irrupção no centro da vida pública francesa, esse jornalismo que transforma certos processos político-financeiros em “casos” não perturbou apenas o jogo democrático ao substituir o enfrentamento ideológico dos partidos pelo espetáculo de um tribunal de virtude orquestrado pelas mídias. Ele desequilibrou também a balança da justiça, introduzindo uma segunda instância de julgamento público dos acusados. A primeira, o Judiciário, baseia-se na aplicação da lei. A segunda, a mídia, vale-se dos meios da primeira, mas se baseia na moral: a moral do jornalista-juiz de instrução. Este pronuncia o veredito antes do processo, influenciando necessariamente seu desfecho, e apresenta a assustadora singularidade de não permitir apelação. Nem o direito de resposta nem a ação na justiça bastam para anular o julgamento da mídia. Assim, durante o caso Elf, na segunda metade dos anos 1990, Roland Dumas apareceu em 52 manchetes e chamadas do Le Monde; o ex-ministro das Relações Exteriores foi inocentado de todas as acusações, mas seu nome ficou associado à malversação.
Está bem, pode-se dizer, mas e Cahuzac? A moral pública não se fortaleceu? Tocamos aqui os limites da “revelação”. As ramificações não desenvolvidas de alguns casos são às vezes mais prenhes de sentido do que as que abrem o jornal da noite. Em qual momento e por que as fontes institucionais se esgotam de repente, deixando os jornalistas sem provas? A resposta é quase sempre muito simples: isso acontece quando o prosseguimento da investigação já não questiona alguém substituível e corrompido, mas o próprio sistema corruptor.
Pierre Péan é jornalista. Este texto foi redigido em maio. Algumas semanas depois, em 25 de julho, Pierre faleceu. Ele contribuía com o Le Monde Diplomatique desde 1975. Um de seus artigos mais marcantes, “História de um massacre anunciado” (set. 2002), está disponível em nosso acervo on-line.
1 Ver Serge Halimi, “Une icône du journalisme” [Um ícone do jornalismo], Le Monde Diplomatique, jun. 2019.
2 Cf., por exemplo, o dossiê “Le retour des chasseurs de ‘unes’” [A volta dos caçadores de “manchetes”], Télégrama, Paris, 3 mar. 2012.
3 Éric Halphen, Sept ans de solitude [Sete anos de solidão], Denoël, Paris, 2002.
4 Cf. Dominique Marchetti, “Les révélations du ‘journalisme d’investigation’” [As revelações do “jornalismo de investigação”], Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n.131-132, Paris, mar. 2000.
5 Citado em Jean-Marie Charon e Claude Furet, Un secret si bien violé. La loi, le juge et le journaliste [Um segredo muito bem violado. A lei, o juiz e o jornalista], Seuil, Paris, 2000.
6 Edwy Plenel, Le journaliste et le président [O jornalista e o presidente], Stock, Paris, 2006.
7 Ver Razmig Keucheyan e Pierre Rimbert, “Le carnaval de l’investigation” [O carnaval da investigação], Le Monde Diplomatique, maio 2013, e Denis Robert, Pendant les “affaires”, les affaires continuent [Durante os “casos”, os casos continuam], Stock, Paris, 1996.