Nos bastidores da vitória de Rafael Correa
Emergência do movimento indígena, uma sucessão de presidentes derrubados, crise do neoliberalismo na América Latina. Graças a tudo isso, um economista de classe média e idéias não-convencionais é o novo presidente do EquadorMaurice Lemoine
O Equador é uma terra de vulcões, em todos os sentidos da palavra. Foi lá, em junho de 1990, que uma poderosa corrente indígena entrou em erupção, em manifestações sem precedentes organizadas pela Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). Este movimento permanecerá a única força social dotada de capacidade real de mobilização neste país que, ao longo de uma década de instabilidade, vai ver oito chefes do Estado se sucederem no poder.
Em 21 de janeiro de 2000, o descontentamento popular e uma mobilização indígena apoiada por um grupo de oficiais – dentre os quais um certo coronel Lucio Gutiérrez – derrubaram o presidente Jamil Mahuad. Para solucionar uma bancarrota financeira de US$ 7 bilhões e salvar os estabelecimentos financeiros, este havia simplesmente congelado os haveres bancários dos poupadores [1]. Num espaço de tempo muito curto, um governo popular foi constituído. Em 22 de janeiro, o alto comando militar se interpôs e entregou o poder ao vice-presidente, Gustavo Noboa, que substituiu a moeda nacional, o sucre, pelo dólar, a título de agradecimento [2].
Apesar do seu desfecho, o levante de 2000 consolidou a influência dos indígenas e do partido político que eles fundaram – o Pachakutik – junto com diversos setores mestiços. Diante da perspectiva da eleição presidencial de 22 de outubro de 2002, o coronel Gutiérrez fala da necessidade de “forjar uma segunda independência”, afirmando ser um “nacionalista, progressista, humanista, revolucionário”. O Pachakutik abandona a perspectiva de um candidato índio e faz aliança com o ex-militar. Ele vence no segundo turno, em 25 de novembro. Inclui indígenas no seu governo [3]. E acaba traindo todo mundo, ao assinar um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), implementar um programa de ajuste estrutural, alinhar-se com Washington e Bogotá, e fechar um pacto com a direita dura – o Partido Social Cristão (PSC).
Um erro estratégico do movimento indígena
Menos preocupado em defender um projeto político do que em pactuar os acordos necessários para a distribuição de cargos no poder, o Pachakutik não exerceu pressão para impedir a nomeação de ministros abertamente neoliberais. Seus dirigentes alienaram-se das suas bases, que os qualificam de “ponchos dourados”. Desde essa época, o economista Rafael Correa mostra-se preocupado: “No plano econômico”, esta participação “legitima a vergonhosa assinatura da carta de intenções com o FMI” [4]. Enquanto Lucio Gutiérrez neutraliza o movimento indígena por meio da cooptação, da divisão e da repressão, vai ser preciso esperar até julho de 2003 para ver o partido tomar distância, retirando os seus militantes do governo. Os acordos assinados com o FMI e o Banco Mundial conduzem, entre outros, à suspensão dos subsídios ao gás de uso doméstico e à privatização das companhias nacionais de eletricidade e de telecomunicações. Enquanto isso, o setor petroleiro espera a sua vez [5]?
Na América Latina, contudo, fatores imponderáveis não raro reduzem a nada as intenções dos mandatários. Em 20 de abril de 2005, é a vez de Lucio Gutiérrez ser derrubado pela pressão popular. A participação dos jovens nas manifestações revela-se impressionante. “Nos anos 1970”, explica Wilma Salgado, uma professora da Universidade Andina Simon Bolívar Toledo, “a exploração petroleira gerou fontes de trabalho. Minha geração aproveitou-se deste ’elevador’ social. Meus pais eram muito mais pobres do que eu. Meus filhos não podem nutrir a mesma esperança. Nós investimos na sua educação, mas eles chegam ao mercado de trabalho e não encontram mais nada!” Imagens incômodas sucedem-se na avaliação da acadêmica: “Nós estamos vivendo uma crise profunda; a dolarização não funcionou como seus promotores haviam imaginado. Provocou aumentos dos custos de produção locais, que passaram a ser mais elevados que os dos países vizinhos. Nossas empresas foram liquidadas. Em particular, na agricultura. Consumimos batatas norte-americanas, melancias colombianas e peruanas, e por aí vai…” Após ter criado um segmento de forte consumo, a economia concentra-se na esfera voltada para a importação e, numa proporção reduzida, no setor de exportação, mas sem capacidade para ativar o aparelho produtivo e o emprego. “Se você pedir um crédito para comprar um carro”, queixa-se um camponês, “é atendido em 48 horas. Se pedir um empréstimo para semear três hectares de batata, não vai conseguir”.
Foi-se, portanto, o antigo coronel Gutiérrez. Contudo, o sociólogo Werner Vásquez avalia que “esta ’Insurreição dos Foragidos’ [6] caracterizou-se por ser muito mais uma união de certos setores da classe média, segundo os quais o presidente se comportava de maneira imoral, que um verdadeiro movimento social. Após uma intervenção que durou um mês e meio, ele se diluiu, sem ter nenhuma proposta política para apresentar”. Conforme um ritual que já foi experimentado diversas vezes, o vice-presidente Alfredo Palacios herda o poder. Oferece, então, o Ministério da Economia a Rafael Correa.
Um economista bem pouco ortodoxo
Oriundo da classe média, educado em colégios católicos, Correa fez seus estudos superiores na Universidade Católica de Leuven (Bélgica) e na Universidade do Illinois (Estados Unidos), após ter atuado durante um ano como militante numa comunidade indígena da província de Cotopaxi. Proclamando-se de uma esquerda “humanista e cristã”, ele negocia com o presidente Chávez a venda de US$ 500 milhões em bônus da dívida externa e o eventual refino na Venezuela do petróleo equatoriano. Também por iniciativa de Correa, o governo decide rever a utilização dos recursos petroleiros. Em vez de servirem exclusivamente para reembolsar a dívida – 40% do orçamento nacional -, uma parte será destinada às despesas sociais.
Do lado de Washington, alguns rostos se fecham. Rafael Correa narra o episódio: “Eu tentei mudar radicalmente a política econômica, porque os últimos vinte anos de neoliberalismo foram um verdadeiro desastre. Para defender os seus privilégios, os bancos, os donos do petróleo, os Estados Unidos, o FMI, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento fizeram pressão sobre o presidente. Perdi sua confiança, seu apoio”. Em vez de renegar a si mesmo, Correa se demite.
Agora que tem as mãos livres, Alfredo Palacios expurga a ala “nacionalista-foragida” do seu governo, celebra um pacto com o patronato, opta pela reconciliação com Bogotá [7], normaliza as relações com os organismos financeiros multilaterais e negocia um tratado de livre comércio (TLC) com os Estados Unidos. Em março de 2006, estradas bloqueadas, árvores abatidas, pneus que queimam provocam a decisão de impor o estado de emergência em onze províncias (de 22) paralisadas pelas múltiplas manifestações indígenas que se opõem ao TLC, proclamando aos brados que “nós não queremos ser colônia americana”.
Já em 15 de maio de 2005, para reduzir a pressão, o presidente interino não tivera outro remédio a não ser expulsar a multinacional norte-americana Occidental Petroleum (Oxy) e confiscar seus ativos (780 milhões de euros, equivalentes a R$ 2,1 bilhões) por não respeitar o contrato que firmara com o governo. A medida provoca a suspensão, por Washington, das negociações sobre o TLC. Mas seu efeito, em relação às eleições presidenciais de 15 de outubro de 2006, é anular a vantagem do movimento social, e particularmente o movimento indígena, que tinha como uma de suas principais reivindicações a expulsão da Oxy.
A Conaie desconfia da Aliança País
Frente à direita dura e à esquerda fortemente falsificada dos partidos tradicionais, surge o movimento Aliança País, uma combinação de diferentes tendências progressistas, como mais uma criação de Rafael Correa. Seu discurso, nacionalista, reflete em inúmeros pontos o que está acontecendo na Venezuela.
Para vencer, Correa precisa do apoio do movimento indígena. Mas esbarra numa recusa polida. Escaldados pelo terrível erro que representou a aliança com Lucio Guttiérrez, que os dividiu e enfraqueceu, os índios suspeitam dos mestiços e preferem se recolher. Não querem mais saber de um homem político de aluguel: “Teremos o nosso candidato ou não teremos nenhum”. O Pachakutik descarta a proposta de Rafael Correa, de realizar uma pesquisa em diversas províncias para definir a ordem de uma possível chapa – presidente e vice – com Luis Macas, o fundador da Conaie. Este último, após ter ficado muito em evidência durante os anos 90, manteve-se mais discreto até ressurgir quando Gutiérrez o nomeou ministro da agricultura. Quando opta por avançar no terreno político-eleitoral, sua única meta é a candidatura à presidência. Um conselheiro político de Rafael Correa, Ricardo Patino, comenta: “Rafael disse que se sentiria muito honrado em ser candidato à vice-presidência de um ’compañero’ representante do movimento indígena, com a condição de que esta fosse a opção mais capaz de levar à vitória”.
Não se sabe quantos índios há no país. Para a direita, eles seriam 10% da população; para a esquerda, 25%; para a Unesco, alguns anos atrás, 45%. Apesar do papel que exerceram nas lutas bem-sucedidas contra o TLC e a Oxy, parece improvável que um dos seus líderes possa ser reconhecido pelo conjunto da sociedade como seu representante. É notório que uma candidatura Macas-Correa” não tem chance alguma de vingar. Uma chapa “Correa-Macas” teria maiores possibilidades. O Pachakutik fica dividido. “Muitos consideram Luis Macas como um dirigente social”, explica Delfín Tenesaca, o presidente do Movimento Indígena do Chimborazo (Mich), “e não como um líder político; portanto, isso gera discussões”. Em 23 de junho, durante reunião do Conselho político do Pachakutik, treze coordenadorias provinciais optam por apoiar Rafael Correa. As outras preferem alinhar-se com a candidatura de Luis Macas.
Isso provoca uma dispersão total. Até mesmo os militantes mestiços dos movimentos sociais duvidam de Correa. “De onde surgiu? De uma classe social elevada. Não tem contato algum com as bases”. Criticam-no por ter sido decano da faculdade de Economia da Universidade Privada San Francisco – a mais cara de Quito. Aumentando mais ainda a confusão, Hugo Chávez declara implicitamente simpatia por seu “amigo” Correa. De passagem no Equador, o presidente boliviano Evo Morales incentiva seu “irmão indígena” Luis Macas, cujo discurso, contudo, pouco difere do de Correa. Ambos defendem uma reforma agrária, uma Assembléia Constituinte, a rejeição do “Plano Colômbia” e do imperialismo. Apóiam a solidariedade com a Venezuela, a Bolívia e Cuba. Recusam os TLC e prestigiam o Fórum Social Mundial… “O nosso movimento”, explica Macas, “percebeu que é preciso elaborar uma agenda global. Se nós cuidarmos apenas dos indígenas, corremos o risco de nos recolher no mais completo isolamento. Isso não resolverá nem os problemas indígenas, nem os problemas nacionais”.
A campanha é marcada pelo jogo “sujo” do candidato do Partido Renovador Institucional de Ação Nacional (Prian), Álvaro Noboa, um magnata da banana, o homem mais rico do país. Num dos seus discursos, ele dispara: “Por ser um instrumento de Chávez e das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), o senhor Correa jamais fará como que o povo vote em favor do comunismo, do terrorismo, de Cuba…” Esses argumentos aumentam a divisão, a dispersão dos votos… Em 15 de outubro, possivelmente por meio de uma fraude, Noboa vence o primeiro turno, com Correa em segundo. O Pachakutik e Luis Macas são tomados pelo pessimismo: o Equador não é a Bolívia. Os outros partidos não passam de meros figurantes.
O recreio acabou. Àquela altura, parece claro para todos que existe consenso em torno de uma certeza: o sistema político deve mudar. Um amplo movimento de cidadania manifesta seu apoio a Rafael Correa no segundo turno. Este é integrado pelo Pachakutik, o Movimento Popular Democrático (MPD), o Partido Socialista (PS), o Esquerda Democrática (ID) e mais 200 organizações sociais, das quais a Conaie. Em 26 de novembro, o candidato da esquerda triunfa com 56,67% dos votos.
A opção da Assembléia Constituinte
Durante a administração de Alfredo Palacios, uma reforma da lei dos hidrocarbonetos permitiu que o Estado recebesse maiores quantias em impostos das multinacionais petroleiras. Mas, para Correa, ainda não é suficiente. “Nós não podemos permitir que, de cada cinco barris produzidos, as multinacionais fiquem com quatro e deixem apenas um para nós. Vamos rever a participação do Estado nesses contratos”. Assim como fizeram Caracas e La Paz. Um adversário do TLC, Rafael Correa recusa-se a envolver o Equador no “Plano Colômbia” e a considerar as FARC como um movimento “terrorista”. Sem poder contar com uma força parlamentar para apoiar a sua ação – seu partido não apresentou nenhum candidato na eleição legislativa -, ele conta recorrer diretamente ao eleitorado para “fundar novamente a República”, por meio de uma Assembléia Constituinte, daqui a seis ou sete meses.
“Nós não somos nem ’chavistas’, nem ’bacheletistas’, nem ’kirchneristas’ [8], declarou ele em junho de 2006. “Mas nós somos parte integrante do socialismo do século 21, que busca a justiça social, a soberania nacional, a defesa dos recursos naturais e uma integração regional embasada numa lógica de coordenação, de cooperação,
Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.