Nos labirintos das exclusões
Quando a pauta é discriminação, o presidente e seus apoiadores tentam se defender ao dizer que “O Brasil tem uma cultura diversa” e “Não existe uma cor de pele melhor do que as outras”. Assim, eles satisfazem os ingênuos e insufla o ódio nas redes sociais
O labirinto em que entramos não apresenta uma saída em curto prazo e o horizonte denota que, por ora, o atual governo continuará a produzir aberrações. Entre elas, o visível aumento do preconceito e da discriminação de todos os tipos. Aliás, nem mesmo um impeachment seria suficiente para mudar rapidamente esse cenário.
Charles Baudelaire cunhou o preceito “o melhor truque do diabo é persuadir você de que ele não existe”. Essa sentença inserida em O Jogador Generoso poderia condensar a ideia de que o desastre humano ocorre quando ignoramos os males que causamos.
No Brasil, a instabilidade não tem pausa e o espetáculo diário revela a triste acomodação do brasileiro que, cada vez mais, restringe a sua vida a um pequeno espaço mental. O apregoado distanciamento social se tornou a ausência de proximidade, longe de caracterizar esse termo como um sinônimo, ele representa a frieza dos tempos atuais, nos quais apenas contam-se as pessoas agredidas, discriminadas, assassinadas, desempregadas. Então, as pessoas cansam da piedade quando a piedade é inútil (Camus).
Esse é um dos resultados da ausência de credibilidade na política nacional. Com exceção dos adeptos do presidente, há um contingente de contrários e outro de silenciosos. Esses silenciosos atendem diligentemente ao controle social, bem como se alimentam das fake news. Nas palavras de Chomsky, poderíamos incluí-los naqueles que se sujeitam a “desviar a atenção às questões importantes decididas pelas elites políticas e econômicas por meio de distrações contínuas e informações insignificantes”. Mas, é importante lembrar que são estratégias que demandam recursos financeiros, como manifestou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, ao apontar financiamento internacional aos ataques antidemocráticos no Brasil.
Para essa multidão de silenciosos, Bolsonaro nega a realidade utilizando afirmações como “não há desmatamento, não há discriminação, não há corrupção”. Se for contrariado pelos dados ou imagens de satélites, resta identificar o responsável e exonerá-lo, como ocorreu com o cientista Ricardo Galvão do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em 2019. Essas ações revelam os vestígios mais sombrios.
Esse governo, ao que parece, também deduz possuir a melhor concepção sobre Deus, pátria e família. No entanto, o que se evidencia é um ‘deus’ que relega a intolerância religiosa, uma pátria onde os ‘filhos’ deslumbrados devem marchar ao lado de uma pretensa ideologia e o modelo de família é patriarcal; o mesmo que ilustraria a propaganda de algum produto vendido entre os anos 1964 e 1985.
Quando a pauta é discriminação, tenta-se afagar ao dizer que “O Brasil tem uma cultura diversa” e “Não existe uma cor de pele melhor do que as outras”. Assim, ele satisfaz os ingênuos e insufla o ódio nas redes sociais. Cada um desses componentes é instigado de diferentes maneiras. Por exemplo, ao zombar da esposa do presidente francês Emmanuel Macron, a agressão aos jornalistas e a “tentativa de calar mulheres e prejudicar a imprensa”. Ademais, a notória frase “E daí?”, em relação aos mortos por Covid-19, caracteriza o seu desdém ao sofrimento de milhares de famílias, as mesmas que diz valorizar. Embora o presidente não tenha fecundado o preconceito e a discriminação, ele, ao estilo Frank Underwood, protagonista da série House of Cards, “limpa os caminhos para fazer o lodo circular” e, ao mesmo tempo, injeta seu próprio detrito.
Sim, o comportamento de Bolsonaro inflama a irracionalidade, de tal modo que, no meio virtual, entre seguidores famosos e desconhecidos, não é raro notar quando “minorias” se discriminam entre si. Na ocasião em que, um de seus adeptos, Sérgio Camargo, “presidente da Fundação Palmares, chama o movimento negro de ‘escória maldita’”, também influencia e congrega uma multidão. E os silenciosos consolam-se na dúvida de que isso seja ruim.
A propósito, ainda nas redes sociais, é possível notar inúmeras pessoas que fazem discriminação de gênero, mas são, por sua vez, discriminados pela cor da pele. Do mesmo modo, existem entre as pessoas descriminadas por gênero, aquelas que são, por seu lado, hostis com as religiões de matriz africana. Não é necessário expor aqui o arranjo matemático das discriminações, contudo, existe um número significativo de pessoas que, apesar de serem capazes de entender a discriminação que sofrem, passaram a demonstrar menor habilidade para identificar o seu próprio comportamento discriminante.
Nas empresas, a título de exemplo, manifestam-se todos os tipos de preconceito e discriminação. Estão alocados nos processos de seleção, avaliação de desempenho e carreira, os múltiplos elementos subjetivamente influentes, não divulgados, não admitidos, mas que determinam o futuro de muitas pessoas. É notório o caso da cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, que, ao responder uma pergunta sobre racismo algorítmico, feita pela jornalista Angelica Mari durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, disse ser difícil contratar negros e que empresa não pode “nivelar por baixo”. O Nubank, algum tempo depois, publicou uma carta admitindo o erro e, mais recentemente, anunciou a contratação de Monique Evelle, empresária e ativista do movimento negro, para atuar como consultora da empresa. A despeito disso, a fala de Cristina Junqueira ecoa as vertentes humanas que abastecem esses algoritmos em inúmeras outras empresas.
É bom lembrar que, quando ocorrem ações de inclusão nas organizações, elas ainda estão restritas a poucos espaços no organograma. A contratação de uma pessoa que pertence a qualquer grupo socialmente excluído indica apenas uma fase dessa inclusão. Embora, essa etapa seja a mais alardeada na mídia, como aconteceu no processo seletivo exclusivo para pessoas negras do Magazine Luiza, o sistema demanda inúmeras ações para que essas pessoas sejam ouvidas nas reuniões, percorram oportunidades de carreira e, essencialmente, conquistem locais mais elevados no organograma.
Se forem atingidos esses objetivos, ainda assim, as ações de inclusão possuem uma influência reduzida na sociedade. Metaforicamente, ao final do expediente, ao deixar a “ilha organizacional” será preciso “saber nadar e sobreviver” aos tubarões, dos meios virtuais e reais, alimentados por figuras políticas que, por enquanto, estão no poder. Sim, por ora estão lá, mas logo os silenciosos e vacilantes, despertarão.
Enfim, é preciso acreditar na mudança, como disse Noam Chomsky “o otimismo é uma estratégia para construir um futuro melhor. Porque, se você não acreditar que o futuro possa ser melhor, é improvável que você dê um passo à frente e assuma a responsabilidade por fazê-lo”.
Renato Dias Baptista é professor associado livre-docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) – [email protected]