Notas sobre derrotas na saúde pública e na reforma sanitária
Um sistema eficaz de encanamento, que garanta o fornecimento de água limpa e a retirada de esgoto dos centros urbanos, não contribui para a melhoria da saúde pública? Sim, mas essa visão se tornou dominante pelos benefícios das suas propostas simplesmente tecnocratas, que retiravam a perspectiva sociológica, atenta aos condicionantes sociais de adoecimento e que obrigaria a uma reflexão ética a respeito da sociedade como um todo
Quando escrevemos que a água ou o ralo eram “necessários” ou explicamos o movimento de saúde pública em termos de taxas de mortalidade ou sujeira nas ruas, permitimos que os sanitaristas controlem sua própria história, nos conduzam pelo nariz através do esgoto de pequeno calibre. As condições não nos levam ao reino dos motivos, estratégias, interesses, ideologias e poder.
Christopher Hamlin
A história, em geral, é contada pelos vencedores. Aqueles que saíram como os bons moços acabam tendo o direito à caneta que escreve o que aconteceu no passado. No caso da saúde pública, saíram vencedores os ralos e os canos. E venceram às custas de uma discussão médica a respeito de desigualdades sociais. É basicamente isso o que Christopher Hamlin nos diz quando afirma que os higienistas e os sanitaristas do século XIX enfiaram nossos narizes no mau cheiro das imundícies urbanas para nos convencer de que aquilo era o principal problema de saúde pública a ser combatido. Mas, ora, um sistema eficaz de encanamento que garante água limpa e retirada de esgoto dos centros urbanos não melhora a saúde pública? Evidente que sim. Contudo, naquela época, poucos médicos concordariam que essa deveria ser a principal preocupação. Para a medicina mais legítima do começo daquele século, o grande embaraço para a promoção da saúde era social: a pobreza. Que poderia atender por alguns nomes: destituição, fome, condições de trabalho ou simplesmente pobreza mesmo.
E por que, a partir do século XX até os dias de hoje, “higiene” e a ideia que temos de saúde pública se refere basicamente a hábitos que garantem a limpeza de uma pessoa ou de um lugar? Exatamente porque, segundo Hamlin, essa história, contada de maneira ascética pelos vencedores, não confessa seus aspectos políticos: as estratégias, os interesses, a ideologia e o poder. Ela se apresentou como um conhecimento tido como neutro e técnico a respeito da melhoria das condições de saúde que se vinculava a um modelo que é basicamente de engenharia urbana. Afinal, qual é a saída mais conveniente para o Estado? Ou, formulando a pergunta de outra maneira: a quem se deve ouvir? Aqueles que dizem que o melhoramento da saúde pública depende de justiça social – forçando a uma reflexão que é necessariamente política, econômica, social e ética – ou aqueles que reivindicam um complexo (porém socialmente inofensivo) sistema de distribuição de água e retirada de esgoto? Os custos das duas interpretações podem ser altos, mas os custos políticos da primeira são maiores. Pois então, melhor é limpar tudo – mantendo as estruturas de poder ainda que custe a vida da classe trabalhadora.
O primeiro higienista moderno foi Luigi Cornaro, na virada do século XV para o XVI. Pode soar extremamente estranho ao leitor, mas ele era considerado um higienista porque instruía sobre os limites da alimentação diária. Segundo ele, uma pessoa deveria comer pouco, a fim de não sobrecarregar o estômago e garantir maior longevidade. Isso era higiene; esse era o cuidado de si para viver mais. Dessa forma, a primeira concepção moderna de higiene dizia respeito a um tipo de conhecimento que, hoje, poderíamos aproximar daquilo que entendemos como nutrição: o que comer e quanto.
No século XIX, a preocupação com a higiene, ou seja, os cuidados voltados à manutenção da saúde, passa do âmbito privado para o social. Passam a ser cogitados métodos para garantir uma vida melhor não apenas para um corpo individual, mas para um corpo social, ou seja, uma população. Começa-se a falar em “saúde pública” ou “higiene pública” como termos intercambiáveis, que dizem respeito, basicamente, à mesma coisa. Os primeiros higienistas de renome do século XIX são franceses. Louis René Villermé e Alexandre Parent-Duchâtelet influenciaram não apenas a política francesa, mas também a de outros países da Europa e dos Estados Unidos. E o que eles identificaram como o maior fator de morbilidade e mortalidade? A partir de estudos estatísticos — os mais avançados para a época —, dividiram Paris em distritos para testar todas as variáveis possíveis. Qual foi a única correspondência que encontraram para explicar a doença e a morte? A pobreza. Só ela. Nada mais.
O que significa que a reflexão da ciência médica mais legítima da época apontava um fator social como o mais importante a ser considerado pela saúde pública. Pensar os problemas causados pela sociedade industrial, com os seus baixos salários, as condições insalubres de trabalho, o trabalho infantil era a principal tarefa de um médico do início do século XIX. A epidemiologia era uma ciência social: um pensamento que obrigatoriamente precisava levar a sociedade em consideração para um diagnóstico efetivo.
No Reino Unido, a situação é um pouco mais complexa na teoria, mas seguia os mesmos passos da epidemiologia como teoria social. Era mais complexa pelo fenômeno do malthusianismo. Thomas Malthus foi um economista que entendia que a natureza não aguentaria o crescimento populacional que seria, segundo ele, muito maior do que a produção de alimentos. A conclusão obscura à qual chega é que doenças e epidemias seriam uma maneira natural de equilibrar as coisas. Dessa forma, se na França se cogitavam maneiras de impedir a morte prematura dos mais pobres, na Inglaterra, um teórico poderia até se perguntar se isso era desejável. Afinal, segundo o malthusianismo, a morte em grande escala seria a única maneira de compensar uma natalidade entendida como irresponsável.
Entretanto, mesmo nas ilhas britânicas, havia a compreensão de que os fatores sociais deletérios eram aqueles que o médico tinha o dever de remediar. William Pulteney Alison foi um médico escocês que explicou o que foi deliberada e vigorosamente atenuado da história da saúde pública: que o adoecimento, as condições de vida, os problemas vividos pelos mais pobres não são falhas individuais deles, mas um problema social. Em outras palavras: um pobre não é pobre porque quer, mas porque as condições sociais o impelem a ser.
O pensamento econômico da região naquele momento entendia que a pobreza era a consequência de uma espécie de dificuldade de gerenciar a vida privada. Em português claro: os pobres são pobres porque não sabem cuidar da própria vida. Médico que era, Alison resolveu procurar as causas que faziam com que algumas pessoas não trabalhassem. Segundo ele, não se tratava de preguiça, mas de “debilidade”. Debilidade era o estado individual causado pelo pauperismo, ou seja, pela pobreza geral, que unia fatores objetivos (densidade populacional, qualidade de ar e água, limpeza, nutrição, temperatura) a estados subjetivos da mente que disparavam mágoa, ansiedade, medo, desespero. É essa condição o que paralisa o indivíduo. Como se pode trabalhar morando em um cômodo amontoado, com água podre, sujeira por todos os lados, sem poder comer direito, sem perspectivas sociais de mudança, com a possibilidade de morrer de fome ou de frio no dia seguinte? E de que serviria intervir especificamente para eliminar um possível foco de contágio e não as condições sociais? O burocrata poderia retirar as pessoas da moradia inadequada, esterilizá-la e, em seguida, fazer voltarem todas as inúmeras pessoas para viver naquele lugar nas mesmas condições. Não se trataria de resolver o problema, seria, na verdade, uma maneira de manter o problema e multiplicar as necessidades de intervenção.

Nessas condições, o indivíduo não é “livre” – palavrinha muito importante para a economia política. Para Alison, “liberdade” não é um conceito abstrato, juridicamente garantido pela subjetividade das leis. Para ele, “liberdade” é uma condição biológica resultante da provisão daquilo que cada um necessita (as tais “necessidades da vida”). Se essas necessidades são satisfeitas, a pessoa é livre; se não são, ela não é. Nem para trabalhar. Dessa forma, são as condições biológicas necessárias, observadas pelo médico, que garantem o direito à liberdade. Justiça social é, portanto, um imperativo médico que assegura o direito de ser livre.
É um pouco antes de meados do século XIX que entra em cena Edwin Chadwick. Chadwick, advogado, tinha sido nos anos 1830 responsável pela lei que cuidava dos pobres. Na década seguinte, estava na comissão que analisaria as condições sanitárias da classe trabalhadora no Reino Unido. Caso reconhecesse que a pobreza era uma causa de doença, estaria reconhecendo a própria incompetência na comissão anterior que cuidava da Lei dos Pobres. E o relatório de 1842, que tratava das tais condições, reiterava (com uma frequência que pode parecer estranho ao leitor de hoje que não conhece o que estava em jogo) que o que causava determinada doença não era a pobreza, mas a sujeira. Que o que prejudicava o corpo em determinado aspecto não era a pobreza, mas a sujeira. Que o que precisaria ser corrigido pela rainha não dizia respeito à pobreza, mas à sujeira.
Efetivamente o relatório foi tomado como o roteiro no Reino Unido. Com a Lei de Saúde Pública inglesa de 1848, tornou-se paradigma dominante acabar com fossas e criar um sistema de encanamento que provia água potável e que fazia com que dejetos sumissem magicamente de limpas e bonitas privadas de porcelana. Até porque a água, antes recolhida do chafariz para uso doméstico, se tornaria uma mercadoria a ser comprada. Também a retirada do esgoto. Ou seja, o mercado chegava no mundo das necessidades biológicas. Além de que, a partir de então, o problema de saúde pública não diria mais respeito à necessidade de justiça, mas de tecnocracia urbanística. O que existia de mais importante de reflexão social era soterrado junto com as antiquadas fossas que não correspondiam às necessidades do novo sistema de moradia – ainda insalubre e inadequado – e de exploração.
E quem ficou como os louros da glória? O pai da saúde pública é Villermé? Duchâtelet? Alison? Não. A história reservou esse título a Chadwick, o jurista que calou a categoria médica para consolidar a sua “teoria da sujeira”. Curiosamente, o momento considerado o ponto mais alto da saúde pública europeia é exatamente aquele em que houve a maior desmedicalização do campo. Apenas os burocratas observavam, analisavam e decidiam. O conhecimento médico, bastante crítico à manutenção da sociedade industrial de exploração brutal do trabalho como se via, foi sistematicamente calado, afinal, ele se chocava frontalmente com as receitas da economia política.
Pois bem. Dado esse brevíssimo histórico de disputas, ideologias, acordos que firmaram um tipo de conhecimento que costumamos entender como óbvio e evidente, mas que exerceu uma série de silenciamentos, podemos então nos perguntar se abdicar da higiene não seria também permitir que os sanitaristas vencedores permaneçam nos puxando pelo nariz para sentir o cheiro da vitória da sua perspectiva reducionista. Eles requereram o epíteto de higienistas para eles; nós os acusamos de higienistas. Uns se legitimam por meio da ideia de higiene; outros repelem a ideia legítima. Não estaríamos cedendo à versão deles quando, ainda que chamando a atenção para o processo social de saúde e doença – o que deveria ser uma obviedade para todo mundo, mas infelizmente permanece como um ponto de disputa – acusamos políticos e gestores do espaço público de “higienistas”? Nós os chamamos dessa maneira quando fazem esse tipo de limpeza à Chadwick: quando estão preocupados em eliminar a sujeira, as impurezas e, simbolicamente, a ralé, a escória do espaço público que, segundo eles, deveria ser usufruto apenas das classes médias e altas. Entretanto, essa é uma ideia de higiene, não a higiene. Se os advertimos com o insulto de higienistas, estamos abrimos a autobiografia dos vitoriosos e corroboramos a amplitude e virulência da sua conquista que eliminou a outra versão.
Entretanto, não se trata aqui de uma sugestão de que nós, que pensamos os processos de adoecimento e morte como fenômenos sociais, deveríamos requerer o título de “higienistas” ou de “verdadeiros higienistas”. Mas de compreendermos que estamos fazendo a diferenciação ideológica que eles fizeram: de um lado, haveria a ciência prescritiva e, de outro, a atenção com o social. É como se renunciássemos ao pensamento integrativo, que não fatia os seres humanos em pedaços que não têm como ser dissociados. Como se um conhecimento ou profissional lidasse com a saúde; outro, com os problemas previdenciários; outro, com as dificuldades trazidas pelo regime de trabalho, baixos salários, condições precárias. Entendemos hoje ideologicamente que a higiene lida com o conhecimento sobre saúde e doença e os demais com os problemas de justiça social, como se fossem âmbitos separados da vida de um indivíduo. Essa divisão quem fez foi Chadwick. E nós a repetimos. Segmentamos a vida como as especializações modernas demandam, que é o modelo que venceu não pela sua maior proximidade com a natureza das coisas, mas – como já mencionado – por interesses políticos e ideológicos.
O intuito deste texto, na verdade, é compartilhar um incômodo: simplesmente chamar a atenção para como temos fracassado fragorosamente na nossa principal tarefa, a de conseguir demonstrar que o verdadeiro cuidado público diz respeito ao imperativo de pensarmo-nos como sociedade responsável pelas misérias e infortúnios individuais, além de que higiene pública e saúde pública dizem respeito à capacidade de garantir as necessidades da vida. Não atentar a isso, é mais do que eticamente condenável, é medicamente estúpido. É como supor que se combate um incêndio florestal com garrafinhas de água mineral, mas isso só poderia ser um conforto para consciências com determinado grau de hipocrisia. Contudo, as novas formas reducionistas de entender o cuidado nos convenceram de que só dispomos de garrafinhas, nada mais. Mas esse entendimento vem das fábricas de água mineral, enquanto a compreensão das razões do incêndio é cada vez mais restrita ao campo da ideologia. Entretanto, ao contrário do que se supõe, a ideologia está engarrafada. Se no passado o que definiu o que adoecia foi uma disputa entre visões mais ou menos integralistas, a manutenção dessa definição é feita pelo poder econômico: indústria farmacêutica, planos de saúde, lobbies de toda espécie. O cuidado, hoje, é ideologicamente visto como individual, destituído das estruturas que produzem doenças, como pobreza, racismo, violência, desumanização. É esperado que o indivíduo mantenha os exercícios físicos em dia, beba suco verde, mas não que suponha que a sua situação está relacionada a condições de moradia, de trabalho precarizado, à escala 6 por 1, aos baixos salários.
Portanto, essa disputa sobre o que adoece — se é o esgoto ou a desigualdade — permanece viva até hoje. Contudo, hoje, temos o malthusianismo traduzido por uma necropolítica aplaudida. Hoje, o sanitário de porcelana do século XIX são os tratamentos VIP, a exuberância dos centros diagnósticos, as pílulas mágicas que resolvem problemas de concentração, depressão e ansiedade gerados pelas rotinas sociais modernas. A pergunta “o que adoece?” precisa de um forte contraponto ao que está consolidado na medicina atual como dado objetivo. Há sintomas visíveis, mas há processos históricos que criam certas vulnerabilidades e mantêm populações inteiras em estado de risco permanente. Nossos problemas são mais do que uma má relação entre células, nervos, gorduras e processos fisiológicos; eles são resultado do que fizemos de nós mesmos como sociedade.
Rafael Mantovani é professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autor do livro Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840) (Fiocruz). É coordenador do Pindorama – Núcleo de Estudos sobre Pensamento Social e Político Brasileiro da UFSC.
Agradeço ao Nicolás Gonçalves pelas correções e à Lia Vainer Schucman pelas valiosas sugestões.