Nova frente no Sahel
O golpe de Estado que derrubou o regime “modelo” do presidente do Mali, Amadu Tumani Turé, no dia 22 de março, contribuiu para a confusão regional. Chacoalhado pelas novas rebeliões de movimentos tuaregues, o Sahel-saariano também padece da impunidade de grupos armados do Magreb islâmico que se reivindicam da Al-QaedaPhilippe Leymarie
Incompetência… incapacidade de lutar contra a rebelião e os grupos terroristas do Norte”: os jovens oficiais de uniformes camuflados que tomaram o poder em Bamako, em 22 de março, não têm argumentos duros o suficiente contra o antigo chefe, o presidente e ex-general Amadu Tumani Turé, apresentado durante muito tempo como um “soldado da democracia”. Em março de 1991, Turé havia participado do golpe de Estado contra o general Mussa Traoré. Liderou o comitê de transição e, após uma conferência nacional e eleições, outorgou o poder aos civis. Em 2002, entrou para a política, tornou-se presidente e terminaria seu segundo mandato no dia 20 de abril, com a eleição de um sucessor.
O Comitê Nacional pela Reconstrução da Democracia e Restauração do Estado (CNRDRE) suspendeu as instituições e acabou com o processo eleitoral, afirmando que não deseja “confiscar a democracia”, mas simplesmente “restabelecer a unidade nacional e a integridade territorial”. Nada garante, contudo, que esse regime militar condenado unanimemente não usará a situação a seu proveito em relação ao norte em chamas, nos confins da Argélia e do Níger.
“Jamais imaginaria que uma revolta inspirada nos conflitos da década de 1990 na Argélia poderia transformar a zona do Sahel em Velho Oeste, assustar as populações locais e reduzi-las à miséria”, lamenta Maurice Freund, aterrorizado por “ver meninos de 15 anos, armados com metralhadoras Kalachnikovs, fazendo as leis de Gao”. Point Afrique, cooperativa de turismo que propunha viagens de exploração do Sahel, fundadaem 1996, teve de retirar-se da região após o assassinato de um turista francês na Mauritânia, em 2007, e após o sequestro de funcionários de Areva, no norte do Níger, em 2010.
Única atividade econômica das zonas mais desérticas do Sahel, o turismo está parado. O Maciço de Taoudeni, que ocupa parte da Argélia e do Mali, o Maciço de Air, nigeriano, e o Adrar mauritânio estão abandonados pelos visitantes estrangeiros. Ademais, nos dois últimos meses, o retorno de milhares de combatentes líbios – em sua maioria tuaregues –, a proliferação de armas e a explosão do tráfico de cocaína e de cigarro propagaram uma guerra latente no sul da Argélia, norte do Mali, norte do Níger e parte da Mauritânia.
A revolta dos “homens azuis” eclodiu no dia 17 de janeiro de 2012, em reação a um ataque sangrento a Menaka, no norte do Mali, seguido de várias semanas de ações vitoriosas contra tropas malinesas, entre elas a invasão e tomada da base de Tessalit, no dia 11 de março. O Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA), nascido em 2011, aliciaria pelo menos mil combatentes, dos quais quatrocentos seriam ex-soldados do ex-ditador líbio Muamar Kadafi. A partir de 2012, o MNLA passou a atuar em “parceria” com o movimento Ançar Dine (Defesa do Islã), ligado à Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI), que hoje pretende controlar a maior parte do nordeste do Mali.
Em associação com os rebeldes tuaregues de 1963, 1990 ou 2006, o MNLA reivindicou a independência de três regiões do norte (Tombuctu, Gao e Kidal, ou seja, mais de 800 mil quilômetros quadrados) e 65% do território malinês (uma vez e meia a superfície da França), que abriga apenas 10% da população do país, estimada em 14 milhões de pessoas repartidas em treze “círculos” (reagrupamentos de comunas).1
“Em 1957, os tuaregues explicavam aos franceses [os colonizadores] que eles não queriam integrar-se à república malinesa. E, após trinta anos, continuamos discutindo com o governo, assinamos acordos, mas sem qualquer resultado”,2 afirma Mahmoud Ag Aghaly, presidente do escritório político do MNLA. Os independentistas consideram que o norte do Mali está abandonado pelo Estado, fato reconhecido pelo próprio presidente, Amadu Tumani Turé: “[No norte do Mali] não há estradas, postos de saúde, escolas, enfim, não há estruturas básicas para a vida cotidiana. Na realidade, não há nada”.3
Mil soldados malineses, apoiados por quinhentos milicianos tuaregues e árabes aliados, apressaram-se em reforçar Gao, Kidal e Menaka. Mas essas tropas pouco motivadas – o índice de deserção elevado, até entre os oficiais superiores – e às vezes mais mal equipadas em relação aos rebeldes sofreram uma série de derrotas. Mesmo em tempos de paz, o pequeno Exército de Bamako não é capaz de controlar os 900 quilômetros de fronteira com a Mauritânia, ou os 1.200 quilômetros com a Argélia.
Consciente de que essa nova guerra ameaçava tumultuar o fim de seu último mandato e comprometer as eleições presidenciais previstas para o dia 20 de abril, Turé ainda assim se mantinha filosófico: “O problema do norte existe há cinquenta anos. Os mais velhos são responsáveis, nós somos responsáveis, e nossos filhos continuarão sendo responsáveis. Esse problema não terminará amanhã”.4 Segundo ele, a faixa do Sahel-saariano continuaria incontrolável porque os combatentes, militantes, traficantes e comerciantes se movimentam por uma região tão grande quanto a Europa, sem respeitar as fronteiras.
Criado em Tamanrasset em 2010, o Comitê Operacional Conjunto – apoiado pelo Comitê Central de Informação dos Países do Sahel Saariano – padece da ausência de consenso entre os habitantes do Saara. Em aliança estreita com os instrutores do Comando de Operações Especiais (COS) francês, a Mauritânia predica a “vigilância total”; e o Mali pleiteia um “desenvolvimento a longo prazo”, a única forma de secar as fontes de recrutamento dos movimentos tuaregues ou dos katibas da Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI).
Para Bamako, a Argélia é, ao mesmo tempo, a causa e o remédio da insegurança ligada ao terrorismo. O antigo Grupo Salafista pela Predicação do Combate (GSPC), rebatizado AQMI em 2007, de fato foi gestado pelos Grupos Islamitas Armados (GIA) argelinos, e apenas os serviços de informação e segurança desse país seriam capazes de convencê-lo a retroceder. Ademais, com os 16 bilhões de euros do orçamento de defesa (trinta vezes mais que o do Mali), a Argélia teria meios de impor sua lei nos confins saarianos. Segundo o presidente Turé, o extremo norte do Mali, onde estariam refugiados os sequestradores da AQMI, é uma excrescência argelina: “Gao, Tessalit e Kidal são, para mim, a última wilaya[prefeitura] de seu país. A história de seu país está ligada a essa região”.5
Risco de contágio
Enquanto o incêndio no norte do Mali ameaça toda a região, a tendência de misturar irredentismo com terrorismo ou criminalidade contribui para o mal-entendido sobre o conflito.6 Ademais, a eliminação do coronel Kadafi tirou um inimigo do caminho da AQMI e permitiu à organização islâmica reconstituir seus estoques de armamentos. Para o presidente do Níger, Mahamadu Issufu, a rebelião tuaregue seria, assim, um “desgaste colateral da crise líbia”.7 De seu lado, o MNLA – que parece ter rompido com Ançar Dine – se desvincula da AQMI: “Os atos da AQMI poluem nosso território e perduram por causa das autoridades de Bamako. Afirmamos à comunidade internacional: ‘nos deem a independência e vocês terão o fim da AQMI no Mali’”.8
A proposta tem certo eco na França, tradicional padrinho político da sub-região e que permanece como alvo da organização pelos mesmos motivos de dois anos atrás: presença militar no Afeganistão, diplomacia pró-israelense, proibição total do uso do véu em locais públicos na França, exploração do urânio nigeriano e ataques de comandos que tentam libertar os detidos no Níger e no Mali.
Em Bamako, os conselhos paternalistas dados pelo ministro francês de Relações Exteriores, Alain Juppé (discutir com todos os partidos, até mesmo o MNLA; aplicar antigos acordos; fazer um esforço de desenvolvimento no norte), são mal recebidos, pois partem de um Estado que contribuiu para a eclosão dos conflitos de 2011 na Líbia e incentiva as nações da região a “se organizarem melhor”. A prontidão em condenar o regime militar instituído no dia 22 de março, assim como o anúncio da suspensão da cooperação tampouco serão bem recebidos.
De seu lado, os Estados Unidos, que consideram o Saara uma das frentes da “guerra contra o terrorismo”, enviam suas forças especiais e “orelhudos”. Eles gostariam de eliminar os chefes da AQMI, mas estão limitados pela proibição de sobrevoos da CIA e das Forças Aéreas norte-americanas sobre o território argelino, e pela desconfiança do conjunto dos países do Saara, que teme que a presença dos Estados Unidos na região piore o cenário, como no caso do Afeganistão.
A região tornou-se um barril de pólvora. Para todos, o risco é a balcanização do Sahel; centenas de membros da seita islâmica Boko Haram se refugiariam no Níger e no Chade. Os milicianos islamitas shebab, na Somália, engajados com os exércitos queniano e etíope, perigam espalhar-se pelo Sahel. O movimento pela justiça e igualdade de Gibril Ibrahim está tentando retomar as armas em Darfur. No norte centro-africano, o “general” Baba Laddé, líder de uma frente popular pela retomada, pretende destituir o presidente chadiano Idris Deby Itno e convoca uma grande aliança entre tuaregues, AQMI, saarianos da Frente Polisário etc.
Nesse meio-tempo, Argélia, Níger, Mauritânia e Burkina Faso viram chegar a suas terras 200 mil refugiados dos combates do norte do Mali, enquanto o programa alimentar mundial estima que, no contexto atual de seca e fome, de 5 milhões a 7 milhões de habitantes do Sahel necessitariam de assistência imediata.
Philippe Leymarie é jornalista da Radio France Internacionale.