Nova Operação Condor, agora contra os mapuches
O ensaio de articulação repressiva entre os dois governos tem como base o combate às “novas ameaças” regionais. O perigo apresentado pelo relato oficial chileno é o da Coordenadora Arauco-Malleco (CAM) e o argentino é o da Resistência Ancestral Mapuche (RAM). Se a primeira tem presença na organização comunitária no centro sul de Chile, a segunda é uma sigla de escassa e fantasmagórica aparição
As ditaduras do Cone Sul precisaram justificar as políticas repressivas pela invenção de um inimigo interno. Para coordenar a repressão na região, organizaram a Operação Condor. Os governos civis de Chile e Argentina também querem justificar a militarização apresentando um novo inimigo: os mapuches. A escalada repressiva é hoje uma providência para desarticular preventivamente a resistência à integração da nossa região às cadeias produtivo-extrativas, que pretendem controlar o uso da terra. No caso do território do Wallmapu, a terra ancestral a ambos lados da cordilheira dos Andes, as grandes operadoras do setor florestal e da mineração encontram nos mapuches uma barreira material e ideológica para a utilização dos recursos.
Por outro lado, a militarização da região é laboratório e funciona também como ameaça para os argentinos e chilenos que por ventura se oponham ao novo marco regulatório ambiental e das relações de trabalho. As grandes cadeias do agronegócio e da mineração precisam dessas reformas para operar com velocidade, fluidez e sem riscos. Esse é o marco da articulação entre os Estados chileno e argentino.
Uma “mudança de doutrina” repressiva é defendida de maneira espetaculosa pelo governo argentino, liberando as forças de segurança dos limites da lei. Duas semanas atrás, o presidente Mauricio Macri recebeu no palácio de governo um policial que está sendo investigado por ter matado pelas costas um ladrão em fuga. Os policiais vêm sendo oficialmente encorajados a essas práticas. Dos 1.064 repressores da ditadura condenados por delitos de lesa humanidade, 533 foram beneficiados com prisão domiciliar. Pelo ablandamento das penas, sinaliza-se aos repressores de hoje que o Estado não esquece “os serviços prestados” à defesa da ordem para além da lei. Por esses gestos, o Estado argentino vem se aproximando às políticas repressivas do Estado chileno, modelo a ser seguido para se adequar às “novas exigências” mundiais.
O ensaio de articulação repressiva entre os dois governos tem como base o combate às “novas ameaças” regionais. O perigo apresentado pelo relato oficial chileno é o da Coordenadora Arauco-Malleco (CAM) e o argentino é o da Resistência Ancestral Mapuche (RAM). Se a primeira tem presença na organização comunitária no centro sul de Chile, a segunda é uma sigla de escassa e fantasmagórica aparição. Desde a década de 1990, as comunidades mapuche ao oeste da cordilheira dos Andes têm resistido ao avanço das grandes transnacionais da cadeia da celulose, da mineração e do setor salmoneiro, assim como às obras de infraestrutura que destroem o território para atender aos interesses dessas empresas. Eles têm retomado terras, defendendo seus biomas nativos e praticando uma economia reprodutiva da abundância. Na Patagônia argentina, os mapuche vêm resistindo ao avanço do extrativismo petroleiro, mineral e florestal.
As sucessivas prisões do jovem longko[1] Facundo Jones Huala têm sido ocasião para a coordenação entre os Estados chileno e argentino. Membro do Pu Lof[2] de Resistência Cushamen[3], Jones Huala havia sido imputado no Chile, em 2013, junto a outras cinco lideranças mapuche que combatiam a construção de uma hidrelétrica, sob a lei anti-terrorista. Ele passou em 2014 para Argentina e não chegou a ser julgado junto aos outros cinco, dos quais quatro foram absolvidos e uma jovem machi[4] foi condenada apenas a 61 dias de prisão. O Estado chileno emitiu um pedido de extradição de Jones Huala para o Estado argentino. Ele foi detido em maio de 2016 e o julgamento foi declarado nulo, por ter se valido de procedimentos ilegais.
Porém, em 27 de junho de 2017, e imediatamente depois de um encontro diplomático entre o presidente Mauricio Macri e a presidenta chilena Michelle Bachelet, mais uma vez o longko foi preso. As acusações apresentadas contra ele eram as mesmas pelas quais ele já havia sido julgado e absolvido no ano anterior.
Em agosto de 2017, e após uma manifestação junto ao Pu Lof de Resistência Cushamen pela liberdade de Jones Huala, a Gendarmeria fez uma batida na área da comunidade, sem ordem judicial. Testaram a figura legal do “flagrante”, cujo mentor é o chefe de gabinete do Ministério da Segurança Pablo Noceti, presente na região e seguramente supervisionando o teste. O delito “flagrado” consistia numa dezena de pessoas se defendendo com paus e estilingues. O ingresso e perseguição dentro do território resultou no desaparecimento do jovem Santiago Maldonado, encurralado pelos gendarmes nas pouco profundas águas do Rio Chubut. Após 77 dias, o cadáver de Maldonado foi achado a 500 metros desse lugar, onde já tinha sido procurado.
O outro pivô da articulação dos dois Estados foi a “Operação Furacão”, uma batida simultânea em vários municípios para prender oito lideranças mapuche, entre as quais o porta-voz da CAM Héctor Llaitul. A investigação a cargo dos Carabineros apresentou um relatório com mensagens de celulares que comprometiam os oito mapuche na preparação de queima de caminhões das empresas florestais, com financiamento estrangeiro e recebimento de armas provenientes da Argentina. A detenção e incautação dos celulares aconteceu em setembro de 2017 e, supostamente, a captura prévia das mensagens se deu pelo sofware “Antorcha”,[5] criado por Alex Smith, um engenheiro florestal que trabalha para os Carabineros como assessor em informática. Imediatamente, o subsecretário do Interior do Chile reuniu-se com a ministra de Segurança da Argentina para coordenar o combate à violência mapuche. Por sua parte, a ministra argentina convocou os governadores das províncias da Patagônia para articular uma ação repressiva conjunta contra a RAM.
Só que em dezembro, em meio a acusações mútuas entre a Promotoria e Carabineros, a primeira colocou sob suspeita as provas apresentadas pelos segundos. Após três perícias, descobriu-se que as mensagens foram implantadas nos celulares e toda a operação foi uma montagem. As conversas entre os mapuche, todas em espanhol, seguiam a dramaturgia traçada pelos Carabineros. A gira do papa, que pretendia a “reconciliação”, passou longe de denunciar esses desmandos. Os mapuche, já inocentados, iniciaram um processo judicial contra sete funcionários Carabineros por obstruir a investigação, falsificar instrumentos públicos e por delitos informáticos. Héctor Llaitul aponta que a “Operação Furacão” foi programada pelo subsecretário do Interior Mahmud Aleuy e a Agência Nacional de Inteligência.
As montagens teatrais do “inimigo mapuche” se sucedem, com ajuda das mídias engajadas no esforço dramatúrgico. O que importa é a produção de capítulos de alta intensidade dramática, com a queda da máscara ao final de cada episódio.
*Silvia Beatriz Adoue é professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes.
[1] Autoridade comunitária.
[2] Comunidade.
[3] A comunidade retomou 1.200 hectares dos 183.000 hectares em poder da fazenda Leleque, em Cushamen, província de Chubut, na Patagônia Argentina. A fazenda Leleque é da transnacional Benetton, dedicada à pecuária, à exploração florestal e à mineração. A empresa Benetton possui na Argentina 844.200 hectares, em flagrante violação à legislação fundiária do país, que não permite a estrangeiros a propriedade de tal extensão.
[4] Autoridade espiritual.
[5] Tocha.