Novas formas de emenda ao orçamento impactam na qualidade da democracia?
A insatisfação da elite do Congresso Nacional com a fatia reservada para a composição das emendas parlamentares no orçamento federal deveria estar acompanhada da oferta de dados sólidos à sociedade sobre a efetividade do gasto público
A postura acrítica do Congresso Nacional diante da crescente desconexão do orçamento público com o planejamento tem avançado sob o modelo de garantia de execução obrigatória das emendas parlamentares. A evidência desse fenômeno é verificada em duas dimensões.
A primeira é pelo salto das reservas para atender emendas (individuais e de bancada) no valor de R$ 19,4 bilhões em 2023 para R$ 37,7 bilhões no Projeto de Lei Orçamentário (PLOA) deste ano. A segunda dimensão é o apagão informacional provocado pelas emendas na modalidade de transferências especiais[1] e pela nova dinâmica das emendas de bancadas[2], estabelecida no artigo 30 da portaria interministerial Nº 1, de 3 de março de 2023.
As transferências especiais são marcadas pela ausência de etiquetagem contábil nos registros de receita e despesa nos entes beneficiários desde 2020, e a segunda resgata a lógica indesejada do orçamento secreto ao manter sigilo sobre o autor responsável pela indicação do repasse executado em nome da comissão (RP8). Estas novas formas de emendas afetam a integridade da contabilidade pública e informacional.
O desinteresse dos congressistas pela função fiscalizadora avança na mesma proporção da apropriação de atividades relacionadas à coordenação da execução de gastos públicos. No modelo impositivo em curso, observa-se um retrocesso na rastreabilidade dos gastos públicos, enquanto no orçamento autorizativo os mecanismos de controle estão vinculados a objetos de gastos identificáveis e com autoria definida, ligados a convênios e contratos.
Se a ‘hiperimpositividade’ do orçamento sequestra competências do poder Executivo em benefício do Legislativo, é necessário examinar detalhadamente o impacto desse processo na qualidade da democracia. Haja vista o empoderamento dos incumbentes a partir da lógica da apropriação de um bem público (orçamento) para fins privados (reeleição permanente) e o déficit de vigilância da governança orçamentária.
Na fala inaugural do ano legislativo em Brasília, foi destacado o ímpeto da elite parlamentar em fortalecer o movimento de superapropriação do orçamento federal, sem menções ao monitoramento dos recursos já alocados. A permissividade na elaboração de emendas ao orçamento público pelas casas legislativas têm aproximado nosso sistema constitucional das características de uma democracia sem direitos. O acesso privilegiado da elite política ao processo legislativo orçamentário fortalece os incumbentes, criando uma competição eleitoral desigual em relação aos desafiantes, não apenas nas eleições majoritárias, mas também para os aliados nas eleições proporcionais em curso neste ano.
A insatisfação da elite do Congresso Nacional com a fatia reservada para a composição das emendas parlamentares no orçamento federal deveria estar acompanhada da oferta de dados sólidos à sociedade sobre a efetividade do gasto público. De fato, é um desafio continental evidenciar e comunicar, de modo sistêmico, como os repasses dos parlamentares têm produzido bem-estar social, reduzindo assimetrias regionais na era da impositividade orçamentária.
Este esforço de deputados e senadores estaria em compasso com o esperado princípio da accountability e responsividade democrática de sociedades avançadas. Na contramão, o Parlamento tem buscado assumir funções de coordenação e administração das programações orçamentárias, mas sem a devida responsabilidade constitucional em caso de erros, omissões e acertos.
Novas formas de emendamento ao orçamento federal exigem um compromisso com o controle social. Há o desafio concomitante de oferecer condições para a coletividade identificar, compreender e medir como, quando e para quem as emendas parlamentares têm sido aplicadas. Enquanto não avançarmos nesse sentido, a reabilitação da atribuição constitucional do Poder Legislativo deve ser entendida como um valor a ser resgatado e não negligenciado.
Caso contrário, o acesso privilegiado ao orçamento público e o arranjo desse bem coletivo para fins pessoais podem interferir diretamente no processo eleitoral, impedindo condições justas de competição entre incumbentes e concorrentes. Eleições desiguais são características evidentes de democracias liberais. A vigilância sobre a qualidade de nossa democracia deve prosperar diante da metamorfose do patrimonialismo.
Paulo Corrêa é jornalista, com pós-graduação em Orçamento Público e mestrando em Poder Legislativo.
[1] As emendas individuais impositivas são classificadas em emendas com finalidade definida e sem finalidade definida. Emendas com finalidade definida estão vinculadas à programação estabelecida na emenda e aplicadas em áreas de competência constitucional da União. Nas transferências especiais, os recursos são repassados diretamente ao ente federado beneficiado para aplicação em programações finalísticas do respectivo Poder Executivo, com aplicação mínima de 70% em despesas de capital.
[2] Emenda coletiva de autoria das bancadas estaduais no Congresso Nacional relativa a matérias de interesse de cada Estado ou do Distrito Federal.
O que realmente impacta na democracia é o grau de desenvolvimento mental de um povo. O que acontece entre nós, onde o povo é mais inculto, é que o direito de escolher as autoridades (trunfo da democracia) é tão mal exercido que nossa política virou assunto de polícia e o povo vota sem saber que sua decisão custou cinco bilhões de reais para convencê-lo em quem votar.