Novas vozes no processo penal internacional
O atual desafio de um Direito Internacional Penal é de ordem técnica e político-financeira de complexa resolução, circunstância que se agrava em um contexto de crise pandêmica
Por volta do dia 11 de março de 2020, o pronunciamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) viria a impactar energicamente a comunidade internacional, ao declarar que a epidemia viral de origem zoonótica desencadeada pelo coronavírus (SARS-CoV-2) adquiria o nível de uma pandemia global, com alarmantes níveis de contágio e gravidade, ocasião em que teria apelado às nações para a adoção de medidas urgentes e agressivas na contenção da disseminação do vírus.
Com um saldo de mortes que já ultrapassa a marca de 593.087 mortos, segundo relatório oficial emitido em 19 de junho de 2020 pela OMS, a atual pandemia se aproxima cada vez mais, em termos numéricos, de eventos históricos beligerantes, cujos valores aproximados de perdas de vidas humanas oscilam entre 400 mil e 800 mil mortes, analogamente ao ocorrido durante a Guerra do Vietnã e a Guerra Civil da Etiópia, indicando a iminência de uma série de efeitos catastróficos a curto, médio e longo prazo, alcançando sensivelmente o mercado financeiro global, conforme anúncio realizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), ao afirmar que a pandemia do Covid-19 já demonstra indicativos de um novo episódio de recessão econômica mundial de proporções bem mais amplas que a sombria crise financeira de 2008.
Saúde e bem-estar social como base do Direito Internacional Penal
Diante de conjuntura marcada por perdas e restrições de proporções cada vez mais amplas, a tônica dos direitos humanos tem adquirido renovada roupagem, na medida em que se projeta em um contexto de dissonâncias e complexidades éticas, políticas, econômicas e socioambientais, exigindo dos atuais governos a adoção urgente e inadiável de medidas de assistência pública no enfretamento da pandemia, reforçando o caráter de fundamentalidade do direito humano à saúde.
Nesse aspecto, o reconhecimento das dificuldades e discrepâncias no acesso à saúde pública e assistência social tem viabilizado uma dinâmica e necessária contextualização fática do direito à saúde, ocasião em que se atesta a emergência de novas demandas com base em uma interpretação extensiva de direitos humanos, resultando em uma série de desdobramentos, a exemplo de recente decisão (Res. 35/20) da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ao prover medidas cautelares em favor de membros de povos indígenas Yanomami e Ye’kwana diretamente afetados em virtude de alta suscetibilidade à ágil propagação viral e problemas respiratórios, como também o relatório emitido em 06 de maio de 2010 por António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), ao reconhecer a urgência de respostas inclusivas à crise pandêmica, em virtude de uma série de dados sobrerepresentados que indicariam maior vulnerabilidade de pessoas idosas e com deficiências, a partir da constatação no aumento do número de óbitos em casas de repouso, oscilando entre 19 a 72%.

Novas vozes no processo penal internacional
É precisamente nesse cenário caótico que os processos de vitimização reaparecem com certa atualização, diferenciados não mais pela posição da vítima na relação processual ou com base em categorias jurídicas preconcebidas pela doutrina jurídico-penal, na proporção em que se espraiam mundialmente, alcançando homens, mulheres, crianças e idosos em diferentes graus de suscetibilidade e condições socioespaciais, situação que se agrava em um contexto de polarização política que influencia e determina ações políticas voltadas ao combate do corona vírus, inviabilizando uma gestão uníssona.
Se as vozes que ecoaram outrora reclamavam por igualdade em sua acepção material, como ilustrado por Tara Urs (2007)[1], ao coletar depoimentos de membros da sociedade civil, direta ou indiretamente afetados pelas atrocidades cometidas durante o regime dos “Khmer Vermelhos”, identificando certo clamor social favorável à responsabilização dos governantes do Kampuchea Democrático, as atuais vozes que conformam o Direito Internacional Penal (DIP) reivindicam para além da efetivação do princípio da responsabilidade do superior hierárquico, a realização de interferências de ordem internacional em assuntos de natureza política, motivadas pela violação sistemática de direitos humanos, o que atualmente se ilustra, por exemplo, através da constatação de 4 representações contra o presidente Jair Messias Bolsonaro perante o Tribunal Penal Internacional (TPI) e da abertura de investigação, em março de 2020, sobre crimes de guerra e contra a humanidade, praticados por soldados americanos que teriam atuado no Afeganistão por volta do ano de 2001, apesar de manifesta oposição do governo Trump.
A apreciação de certas demandas, no entanto, exige reiterado esforço da comunidade internacional no enfretamento de temas complexos, na tentativa de se esclarecer e delimitar mais precisamente os limites e alcance da tutela penal em um contexto de riscos globalmente compartilhados, embora se reconheça a limitada capacidade técnica e financeira das atuais Cortes Internacionais, ocasião em que ganha fôlego o assertivo e incisivo olhar de David Beetham (1999)[2], ao reconhecer a irresistível permeabilidade do Direito Internacional à evolução jurídico-normativa dos Direitos Humanos e das ordens internas.
Como pontua o autor, noções anteriores como a irretocabilidade da soberania nacional e a desconsideração do homem enquanto sujeito de direito internacional, tornam-se cada vez mais influenciadas pela eloquência de novas vozes, sujeitos e vítimas, geograficamente afastados, mas eticamente aproximados por valores universalmente consagrados.
Pode-se afirmar, enfim, que o atualíssimo desafio de um Direito Internacional Penal enriquecido por multivozes, depara-se com dificuldades de ordem técnica e político-financeira de complexa resolução, circunstância que se agrava em um contexto de crise pandêmica, consistindo em desafio urgente e inadiável, a propositura e instrumentalização de novas perspectivas capazes de ofertar aos sujeitos vitimados espaços suficientes ao desenvolvimento de suas memórias, capacidades e dignidade para além dos muros institucionais, momento convidativo à reflexão crítica e sistemática desta categoria através de uma revisitação de preceitos de Justiça Restaurativa e de Transição durante e pós Covid-19.
Amilson Albuquerque Limeira Filho é especialista em Direito Internacional (FMU/SP) e autor de obra recém lançada: A voz da vítima no processo penal internacional: uma análise jurídico-normativa do Tribunal Penal Internacional.
[1] URS, Tara. Vozes do Camboja: formas locais de responsabilização por atrocidades sistemáticas. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 58-99, 2007.
[2] BEETHAM, D. Democracy and Human Rights. Cambridge: Polity, 1999.