Novo romance de Deborah Levy, Agosto azul investiga os encontros possíveis com o “eu”
Autora sul-africana compõe um romance musical, estruturado por repetições que focalizam a protagonista, uma pianista em crise
Na Grécia paradisíaca, uma mulher acredita ter encontrado o seu duplo. Um par de cavalos mecânicos, cobiçado pela protagonista em um mercado de pulgas ateniense, está no centro da relação estabelecida entre as duas em Agosto azul, novo romance de Deborah Levy. Quem narra a história é Elsa M. Anderson. A exímia pianista está em crise desde que abandonou o palco em Viena – quando arruinou um concerto em que tocaria peças do compositor russo Rachmaninov.

Antes, Elsa foi Ann. Sem conhecer nada de sua mãe biológica, ela foi adotada por um casal que lhe deu amor. Não era suficiente. Aos seis anos, o maestro Arthur Goldstein propõe uma nova adoção, de modo que poderia ensinar à jovem prodígio do piano em tempo integral. Assim, ela torna-se Elsa. A relação com Arthur é conturbada. Ela o ama muito, mas não sabe se o que teve foi um pai ou um professor.
A literatura de Deborah Levy tem sido bem recebida no Brasil. No início do ano passado, a Autêntica Contemporânea (editora que traz agora Agosto azul, com tradução de Adriana Lisboa), publicou a Trilogia Autobiografia Viva, na qual Levy faz um balanço sobre o que é ser uma mulher escritora.
Em meio a um volume excessivo de autoficção – grande parte, dispensável –, a trilogia de Levy é um bálsamo. Não só por uma escrita franca e límpida, mas também porque nos interessamos pela história que ela se propõe a contar. A trajetória de Levy perpassa a África do Sul, os subúrbios londrinos, um festival literário indiano e uma residência artística em Paris.
Agosto azul, mais recente empreitada ficcional da autora, também se arrasta por diferentes países: Grécia, Londres, França e a Itália (mais especificamente, Sardenha, uma das maiores ilhas do Mar Mediterrâneo). Nesses diferentes territórios, ela ensaia diálogos com o seu duplo. A reflexão sobre quem somos é inescapável – é o que essas conversas dizem ao leitor. A obsessão pelos cavalos mecânicos vem de uma cena do passado, quando o novo piano de Ann, ainda criança, veio a galope.
As referências musicais permeiam o romance, bem como outras mais sutis, como a filmografia da cineasta francesa Agnès Varda – entusiasta das praias, cenário comum da narrativa de Levy. O azul do título, contudo, não se refere apenas às águas. Trata-se de um sentimento melancólico (blue, no original) – e dos cabelos tingidos da protagonista.
Elsa foge de si mesma, ao mesmo tempo em que busca se encontrar. Está aí o motif contraditório do romance. Na literatura, o duplo é um mote recorrente, que já marcou presença na obra de escritores como Fiodor Dostoievski, José Saramago, Robert Louis Stevenson e Edgar Allan Poe – Levy adiciona novas gradações nessa tradição, questionando o significado de um duplo feminino.
Além desse duplo, Elsa encontra diferentes tipos de repetições. Ela própria costuma repetir pensamentos, como um refrão ou leitmotiv. Repetição e variação são as duas estruturas mais básicas de composições musicais – e literárias –, vale lembrar.
De fenômeno dos palcos, Elsa encontra refúgio no ofício de Arthur, a docência. Dois alunos a marcam: Marcus, jovem não-binário em conflito com os pais, e Aimée, considerada histérica pela mãe. Podemos notar, assim, uma aproximação sutil com o contraponto musical na narrativa. Diferentes personagens são variações de um mesmo tema, a família. A crise de Elsa é acentuada quando sabe que Arthur tem uma doença terminal – um luto que precisa aprender a enfrentar.
Deborah Levy compõe uma obra delicada e musical. As vozes de Elsa e de seu duplo repetem diferentes temas, harmonizam e criam dissonâncias. Nessa sinfonia às avessas, quem ganha é o leitor atento. Há sempre um significado oculto por trás das imagens do romance. Agosto azul mostra que procurar a (e fugir de) si mesmo é uma tarefa interminável, afinal, “levaria uma vida inteira para aprender a tocar Bach”.
Giovana Proença é pesquisadora na área de Teoria Literária e Literatura Comparada na FFLCH-USP e autora do livro Os tempos da fuga, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Melhor Romance de Estreia.