Novos poderes se afirmam
Foi durante o curso da expansão econômica e territorial coercitiva do Ocidente que nasceram as hierarquias internacionais, fraturando o mundo entre centros dominantes e periferias dependentes. Há, portanto, uma dimensão histórica no reequilíbrio das grandes regiões “emergentes”, Ásia e América do Sul
“A ascensão da China é muito semelhante à dos Estados Unidos há um século (1870-1913). Em ambos, notamos uma taxa de crescimento relevante e uma contribuição elevada para o aumento do PIB mundial. Como no caso americano, essa ascensão transformará não somente a China, mas redesenhará o mundo como um todo”, escreveu o professor Angang Hu, da Universidade Tsinghua, em Pequim.
A expansão econômica e territorial dos Estados Unidos na primeira metade do século XIX e a industrialização intensa depois da Guerra de Secessão (1860-1865) foram substancialmente favorecidas pela ampliação das infra-estruturas de transporte, pela colonização, pelo desenvolvimento dos territórios e pela criação de um mercado continental integrado, assim como pelo fluxo de investimentos internacionais, que, em ondas sucessivas, tiveram um papel muito importante na formação do capital. Sem esses fluxos transnacionais – essencialmente, mas não exclusivamente, de origem britânica – o desenvolvimento dos Estados Unidos teria sido mais lento e menos significativo.
O capitalismo tende, por natureza, a ir em direção à globalização. Suas lógicas transcendem a divisão do mundo em Estados-nações. Ao mesmo tempo, investindo prioritariamente em certos territórios, acaba por construir potências nacionais e às vezes hegemonias.
A integração gradual das regiões emergentes na economia mundial no fim do século XX difere fundamentalmente da forma coercitiva com que se criou a grande desigualdade norte-sul, assim como sua permanência e aprofundamento no sistema moderno.
Hoje, a inserção das regiões emergentes no capitalismo globalizado permite a mobilização de fatores de crescimento endógenos. Ainda que países como a China, a Índia e o Brasil estejam em situação de co-dependência econômica em relação às nações da Tríade – Estados Unidos, Europa e Japão –, isso não impede que se tornem progressivamente autônomos.
O comércio intra-regional na Ásia Oriental cresceu de 40% em 1980 para 50% em 1995, e chega a 60% nos dias de hoje. Essa regionalização de trocas deixa evidente que a forte dependência em relação ao mercado americano está diminuindo há mais de 20 anos.
Os equívocos do etnocentrismo
“A história do mundo viaja de leste a oeste porque a Europa é, sem dúvida, o fim da história, e a Ásia, o início.” A afirmação, feita por Hegel (1770-1831) em sua obra Lições sobre a filosofia da história, resume o sistema de representações teleológicas predominante depois do século XIX.
A “modernidade” ocidental é freqüentemente conhecida como o resultado e o apogeu de um movimento histórico crescente. As ciências sociais postulam uma “singularidade única do Ocidente”, que teria permitido seu progresso, ascensão, expansão e dominação. Vista do Ocidente, a “imobilidade” da Ásia e do resto do mundo extra-europeu do século XIX se explicava tanto por um confinamento dentro de certo universo religioso encantado, impermeável à racionalidade instrumental da “modernidade”, como por seus modos de produção pré-capitalistas primitivos – o “modo de produção asiático”.
Essas representações estavam totalmente equivocadas. Sabemos hoje que em 1820 o nível de vida, o conhecimento, as instituições de mercado e os modos de atividade econômica tinham mais semelhanças do que diferenças em partes orientais e ocidentais da Eurásia.
Por seu peso demográfico, as economias mundiais não-européias eram as mais importantes. China e Índia – assim como o Império Otomano – estavam no coração de densas redes de trocas regionais.
Foi durante o curso da expansão econômica e territorial coercitiva do Ocidente que nasceram as hierarquias internacionais, as quais fraturaram permanentemente o mundo entre centros dominantes e periferias dependentes.
Há uma dimensão histórica no reequilíbrio das grandes regiões “emergentes” – Ásia Oriental, América Latina e Ásia do Sul. Anteriormente confinadas às margens, essas áreas tornaram-se, ou estão em vias de se tornar, o que François Perroux chama de unidades econômicas ativas. Isso significa que serão “unidades cujo programa não é simplesmente adaptado ao seu ambiente, mas que adaptam o ambiente ao seu programa”.
Essa transformação, a mais importante desde a Revolução Industrial européia no início do século XIX, mexe com as hierarquias nascidas da expansão econômica e territorial do Ocidente e marca um retorno, em condições históricas novas, da configuração internacional policêntrica que prevaleceu antes de 1820.
Um dos elementos mais importantes dessas transformações é a regularidade do crescimento do poder asiático. No rastro do Japão, considerado precursor, os novos países industrializados (NPI) do nordeste e sudeste asiáticos conseguiram sair do “Terceiro Mundo” em duas gerações.
A China e a Índia conheceram uma dinâmica de expansão extraordinária. Entre 1980 e 2006, o Produto Interno Bruto calculado em paridade com o poder de compra (PIB/PPA) por habitante foi multiplicado por 16 na China e por 5 na Índia. No mesmo período, participação chinesa no PIB mundial passou de 3,2% a 13,9% e a indiana, de 3,3% para 6,17%. Estima-se que a Ásia como um todo deva chegar perto de 45% em 2020, contra os 34% atuais.
O crescimento das regiões emergentes provoca efeitos diretos no funcionamento da economia mundial: reestruturação da divisão internacional do trabalho; deflação de preços de produtos manufaturados sobre uma gama cada vez mais ampla de bens; inflação das matérias-primas; e, por fim, uma redistribuição do lucro de certas regiões que acumularam imensos excedentes.
As reservas econômicas dessas novas potências estão estimadas em mais de US$ 3 trilhões, contra US$ 800 bilhões em 2000. Hoje elas representam 70% das reservas mundiais.
O poder financeiro se dissemina fora dos Estados Unidos, coração econômico do mundo desde 1919. E o modelo americano entra em crise. Tanto que as grandes sociedades de Wall Street (Citigroup, Morgan Stanley etc.), de Londres (Barclays) e da Suíça (USB) tiveram de atrair os fundos soberanos da China, de Cingapura e dos países do Golfo para assegurar sua sobrevivência1.
As mudanças estruturais são muito raras na história. E não é certo que aconteçam sem choques em razão da amplitude e da multiplicidade dos desafios internos e externos suscitados pelo desenvolvimento e pela modernização excepcionalmente rápidos das regiões mais populosas do globo.
As descentralizações sistêmicas precedentes tornaram-se sinônimos de crises internacionais: as guerras napoleônicas abriram o caminho para a Pax Britannica e ocorreram dois conflitos mundiais para que os Estados Unidos se tornassem o novo centro da economia global. Mas é preciso acreditar que os grandes atores saberão, desta vez, preservar a paz. Ao contrário do que aconteceu em 1815 ou 1914, o poder não está mudando de um centro para outro: ele se descentraliza em uma multiplicidade de pólos.
Num mundo interdependente confrontado com questões globais de difícil solução, espera-se que o caminho seja o de cooperações reforçadas. É o mínimo que se pode querer no plano normativo.
O fato de o Estado chinês ter escolhido Wall Street para intermediar seus fundos soberanos tem um significado político: Pequim procura tecer os laços da interdependência e o Ocidente, habituado a ser o centro, terá de se acomodar com um mundo novo, de agora em diante plural.
*Philip S. Golub é professor associado do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Paris 8.