O amadurecimento dos games: o ponto de vista paterno
Com narrativas que destacam a relação pai e filho, a indústria dos games ajusta-se à faixa etária de gamers que envelheceu. No sucesso God of War 4, Kratos adota métodos da pedagogia montessoriana para dar educação espartana ao seu filho
A primeira geração dos gamers cresceu, amadureceu e adquiriu novas responsabilidades, o que levou uma transformação na estrutura dos games. Cada vez mais vemos jogos adotarem uma narrativa em comum: o ponto de vista paterno.
Grandes jogos dessa indústria passaram a colocar um pai como protagonista das histórias. Isso é claramente uma dimensão persuasiva do game, pois, sendo intencional, busca capturar os elementos que cercam os consumidores de tal mídia para atrai-los a desbravarem as maravilhas do ciberespaço.
A relação com o cotidiano
Podemos nos apoiar no que a professora Lucia Santaella destacou: “A razão mais significativa para o crescimento dessa economia deve vir, obviamente, do poder de apelo que os games exercem sobre seus usuários”.[1]
Vale lembrar que um dos youtubers gamer mais famosos do Brasil, o BRKsEDU, com milhões de seguidores, é pai e intercala vídeos de gameplays com atividades em que sua filha é a principal protagonista.
Sendo assim, a indústria dos games acompanhou seus consumidores e desenvolveu novas estratégias para despertar a principal sensação desenvolvida pelos jogos eletrônicos: a imersão. E é exatamente apoiando-se nos elementos do mundo social nos quais o jogador está submerso que o programador irá criar o mundo virtual.
Para Jane McGonial, os games proporcionam uma recompensa emocional paliativa. A ação voluntária em se dedicar a um mundo de regras desnecessárias traz uma satisfação no momento de conclusão da aventura. Essa satisfação é, no entanto, para compensar as diversas frustrações do mundo real. Ao realizarmos tarefas difíceis o cérebro libera substâncias que causam satisfação e orgulho.[2] Contudo, a geração atual dos gamers exige algo mais.
Para além do que o jornalista em tecnologia Clive Thompson batizou de “remorso do jogador”[3], a sensação de “quero mais” após o término da aventura, os games também buscam, após “zerar o jogo” a sensação de que algo foi comunicado, e que ajuda na reflexão do jogador sobre a realidade imediata que o circunda. O jogo não é algo “exterior à vida habitual”[4], como dizia Huizinga. E por mais que tenha uma natureza própria, ou nas palavras de Gadamer, “independente da consciência daqueles que jogam”[5], as “ações, as escolhas e a postura do indivíduo no jogo foram imaginadas a partir das referências, dos costumes e do conhecimento de seu contexto sociocultural”.[6] Ou seja, é do mundo real que se tira os elementos fictícios do jogo.
Desta maneira, os games funcionam como o espelho de Alice, pois como a menina da história de Lewis Carol, jogador mergulha em uma realidade imaginada e sai de lá com um conhecimento adquirido que pode ser útil para a vida.
O mesmo mercado consumidor com outra idade
Nos últimos anos, os jogos AAA, isto é, os jogos que mais movimentam a indústria dos games, são em grande parte para maiores de 16 anos. Mas para além dessa questão, três dos jogos mais importantes dessa indústria adotaram como enredo a relação do pai com o filho. Em The Evil Within 2, o nosso avatar sai a procura de sua filha em um mundo virtual aterrorizante. Em Assassin’s Creed Origns, que se passa no Egito governado pelo nefasto Ptolomeu II, conta a história de Bayek que, além de ajudar Cleópatra a assumir o trono, quer, também, vigar a morte do filho e cumprir algumas promessas feitas a este. E, por fim, temos God of War 4, exclusivo do console da Sony PS4 que narra a jornada de Kratos e seu filho para lançar as cinzas da esposa no monte mais alto de um universo inspirado na mitologia nórdica.
De todos os três, sem dúvida, o exclusivo da Sony é o que mais aborda a história do pai de família. Kratos, que já está em sua quinta aventura, é efetivamente pai em todo o game e desenvolve ao longo da jornada sua relação com o filho, atribulada no início.
É óbvio que o game aborda a perspectiva de um homem formado na educação espartana, onde as crianças eram treinadas para serem guerreiras. No entanto, um elemento moderno é introduzido: a escuta ativa. O conceito cunhado por Carl Rogers, é usualmente adotado na pedagogia montessoriana, consiste no ato de olhar nos olhos da criança para que ela entenda o que esta sendo dito. Kratos, toda vez que fala com o filho, Atreus, ajoelha-se e fala olho no olho para que este compreenda suas palavras.
O jogo aborda uma questão que hoje recebe impactos frequente em um mundo voltado para o solteiro (a). A família não é mais a principal forma para a manutenção das relações capitalista de produção, ou um aparelho ideológico do Estado. O solteiro (a) se tornou o consumidor ideal, o eterno insatisfeito que não tem compromisso algum.
O solteiro (a) não pode ser mais comparado a Odradek, o objeto de madeira que se aparenta com um carretel no conto “As tribulações de um pai de família” de Kafka. Roberto Schwarz interpreta Odradek como um contraponto ao pai de família, pois o objeto de vida autônoma não possui compromisso, tem a sua finalidade em si mesmo, vive em qualquer lugar, não precisa trabalhar para sustentar ninguém, enfim, “a construção lógica e estrita da negação da vida burguesa”.[7] Odradek é um pedaço de madeira livre que se tornou uma tentação para o pai de família.
Não, o solteiro (a) não é mais uma anomalia da ordem burguesa, nem mesmo uma negação, pelo contrário, ele se tornou fundamental, um consumidor em potencial que, em muitos casos, gasta bem mais que uma família nuclear.
Além disso, no caso brasileiro, “a taxa de 19% de lares sem filhos é um indício de um movimento”. Entre os jovens casais “a tendência parece ser ainda mais forte – 42,8% têm entre 25 e 34 anos”[8], não desejam ter filhos. Trata-se justamente da faixa etária da geração gamer que cresceu.
Portanto, não vejo a adoção do discurso familiar afetivo no mundo dos games como uma estratégia para alienar indivíduos, como era o discurso do american way of a life de tempos antanho. Mas sim como uma adaptação de uma linguagem (entendemos o game como tal) ao seu público amadurecido para continuar vendendo seus produtos, ampliando o alcance de sua narrativa.
O que acontece hoje com a indústria dos games é exatamente o que aconteceu com a indústria cinematográfica. Atualmente vemos cada vez mais filmes voltados para às relações sexuais da terceira idade, ou que se direcionam ao lucrativo mercado da cultura geek. Tanto a indústria dos games quanto a cinematográfica busca criar novas demandas aproveitando-se da dinâmica da sociedade que atuam.
Contudo é preciso lembrar que uma história sobre uma mulher mãe ainda não foi abordada nos games, mas acredito que não estamos muito distantes de vermos isso acontecer.
*Raphael Silva Fagundes é doutor do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí