O amanhã no “chão da escola”: lidando com afetos
Uma reflexão sobre por que fazer antropologia importa – ao contrário do que afirmou o mais recente ministro exonerado do governo Bolsonaro
Começo com palavras que não são minhas e que assim foram ditas, quase sem pausa e em caixa alta: “MINHA MAIOR PREOCUPAÇÃO NÃO ESTÁ NA APRENDIZAGEM NESTE PERÍODO, E SIM COMO SERÁ A FORMA HUMANIZADA DE RECEBER ESSES ALUNOS QUE ASSIM COMO EU (OU PIOR) ESTÃO PASSANDO POR UM MOMENTO ESTRESSANTE”.
Tais palavras são da professora Samara da Rosa Costa, vivificadas por seus dezesseis anos dedicados à educação. O testemunho dessa docente constitui uma das variadas narrativas que vêm sendo reunidas desde abril pelo projeto Escola em quarentena: um registro antropológico de memórias educacionais.
Esse projeto se desenrola em um grupo criado em rede social virtual e conta com minha coadministração como antropóloga1. A iniciativa vincula-se a uma proposta mais ampla de divulgação científica em antropologia da educação, o blog Primavera nos dentes – Ensaios sobre a escola e a realidade brasileira, que lancei de modo independente no início deste 2020, pouco antes da chegada da Covid-19 ao Brasil.
Entre as medidas mais imediatas de prevenção ao novo coronavírus, esteve a suspensão de aulas das instituições de ensino. E, uma vez constatada a necessidade de isolamento social de maior prazo, não cessa de crescer na internet uma onda de relatos de educadores, estudantes e seus familiares sobre dilemas, adaptações e aspirações na tarefa de ensinar e aprender nesse momento que foge completamente ao ordinário.
São falas oriundas de realidades bastante diversificadas, de redes educacionais públicas e privadas, de diferentes regiões geográficas, que retratam um país plural, mas também muito desigual socialmente, perante a empreitada de lidar com o que vem se chamando de educação remota emergencial. Mesmo nesse dia a dia turbulento, os sujeitos das comunidades escolares têm conseguido encontrar tempo de ofertar minuciosas impressões, que merecem ser preservadas e potencializadas enquanto memória.
A ideia do projeto Escola em quarentena é justamente auxiliar o encontro dessas narrativas num mesmo lugar, para refletir sobre o passado, pensar o presente e, também, imaginar coletivamente um futuro pós-pandemia para a escola e a educação. Nessa perspectiva, o contundente depoimento da professora Samara, com o qual abri esse artigo, contém uma interpelação da maior importância. Ela se questiona sobre o cuidado com os afetos quando for possível a volta ao “chão da escola”, uma expressão que muitos educadores costumam usar e que, na boa síntese do antropólogo Alexandre Pereira, refere-se à “concretude das relações vividas” no cotidiano das instituições de ensino, em contraposição a uma imagem idealizada de escola2.
Quero refletir aqui exatamente sobre isso – o “chão da escola”, os afetos e o pós-pandemia – e para tanto lanço mão das pesquisas que venho conduzindo sobre marcadores sociais da diferença, bullying e eventos extremos de violência juvenil em espaços escolares. Meu foco, importa notar, não reside em sinalizar diretivas conteudistas para a educação no pós-pandemia, algo que, inclusive, foge ao escopo de minha formação. Como antropóloga, meu olhar se volta a pensar sobre as relações sociais que, sabemos, são abundantes na escola como lugar privilegiado de socialização para a vida.
Eventos extremos
Há um alerta vermelho a soar em torno dos processos de socialização que ganham forma nas escolas brasileiras na contemporaneidade. Nos últimos anos, episódios de violência juvenil extrema vêm ocorrendo em reprises fatais no interior de tais espaços. Houve o “Massacre de Realengo” na Escola Municipal Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, em 2011. Depois, o incêndio criminoso em uma creche municipal de Janaúba, Minas Gerais, em 2017. Nesse mesmo ano, o ataque armado ao Colégio Goyases, em Goiânia. Em 2018, igual espécie de atentado se repetiu no Colégio Estadual João Manoel Mondrone, em Medianeira, no Paraná. Em 2019, nova chacina, desta vez na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, São Paulo3.
Todos esses episódios podem ser entendidos, nos termos da antropóloga indiana Veena Das, como “eventos críticos”4. São, certamente, extraordinários, porém, não se encerram em si mesmos. Sem em nada menosprezar a responsabilidade de seus executores, não se mostra factível isolar esses episódios, ignorando assim a repetição deles enquanto acontecimentos e também em seus detalhes de forma. Conforme revelam as investigações dos casos, tais ocorrências surgem recorrentemente capitaneadas por jovens homens, que tinham a predileção por jovens mulheres como alvos e que, não raro, mantinham conexões com redes misóginas na Dark Web5.
São eventos extremados com mensagens sobre uma busca obstinada de virilidade, como se com isso alguma espécie negada de dignidade fosse passível de se alcançar. Logo, como nos ensina Veena Das, para compreender esses acontecimentos, é preciso voltar-se ao ordinário. É na socialidade cotidiana que tais eventos criam suas raízes, cujas ramificações após o trágico continuam a extravasar pela vida diária.
Sob essa luz, pode-se ver a atual pandemia também como um “evento crítico”, de longa duração, com causas pré-existentes e de largas consequências. Dentre os espaços institucionais modernos, os hospitais configuram aqueles a responder de modo mais imediato a essa emergência sanitária. Mas as dependências escolares não tardarão a ser mais intensamente convocadas, quando houver certo controle da doença e for possível reabri-las de modo amplo.
Em países da Ásia e da Europa, onde as curvas de transmissão do vírus mostram decrescimento, o processo de retomada de aulas já vem ganhando impulso e as notícias que nos chegam revelam severas transformações no dia a dia escolar. Máscaras, aferições de temperatura, desinfecções, distanciamento e até mesmo barreiras físicas entre carteiras, ventilação aumentada, rodízios de estudantes. Essa é a parte visível da mudança. Depoimentos dão conta da invisível: máscaras ocultam sorrisos e freiam a socialidade; o controle de movimentos silencia as tradicionais agitações de entrada, recreio e saída. Há luto de todos os tipos: pelas vidas ceifadas com a doença; por famílias desestruturadas emocional e economicamente; por um cotidiano destroçado. Reabrir instituições de ensino tem se colocado, portanto, como uma operação de saúde pública também complexa, a exemplo daquela em curso nos hospitais6.
A Covid-19 como um evento extremo impactante sobre a escola pressupõe, sem dúvida, medidas sanitárias que o singularizam em relação às ocorrências críticas de violência antes mencionadas. Todavia, tais episódios vividos no passado podem nos oferecer pistas para apreender algo do futuro pós-pandemia nos universos educativos, especialmente quanto ao que não é visível, mas plenamente sentido.
Eventos extremos costumam ser classificados, no senso comum, como “fatalidades”, quando, na verdade, não o são. O mundo moderno vem “cozinhando” pandemias, na forma altamente destrutiva com que o modo de produção capitalista se dispõe da natureza7. Nisso, o novo coronavírus não configura o primeiro problema e tampouco sinaliza ser o último.

Os ataques armados em escolas brasileiras nos anos recentes, semelhantemente, não se esgotam em vinganças individuais, levadas a cabo por estudantes vítimas de bullying sucessivo e, por conta disso, transformados em “assassinos frios”. O que de forma amena se nomeia como bullying, em verdade, é a fervura do caldeirão de desigualdades e opressões que constitui a sociedade brasileira, sejam elas baseadas em renda, raça, gênero, entre outras, não raro sobrepostas. Os eventos extremos de violência, por sua vez, configuram aquilo que transborda dessa mistura explosiva8.
Note-se que os perpetradores desses ataques não se voltam diretamente a colegas em específico que poderiam tê-los perseguido. Esses episódios se dão muitas vezes anos mais tarde e têm meninas por vítimas privilegiadas, como já se disse. Algo de importância expressiva a se ressaltar é que o acerto de contas deles se dirige à escola. É defronte à instituição escolar que esses jovens homicidas escancararam sua impossibilidade de, nos dizeres do grande pensador Norbert Elias, identificar caminhos para um “futuro pleno de significado”, num país em que, historicamente, subalternizar um outro que se julga inferior e lhe negar cidadania é tido como o estado natural das coisas9.
Elias escreve a respeito disso em sua clássica obra Os alemães, na qual destrincha as origens microscópicas, porém, não menos poderosas que deram materialidade ao regime nazista. Para o autor, imersas em coletividades sob crises econômicas, sociais e éticas agudas, juventudes sem perspectivas de que vale a pena viver são bombas-relógio de dor, para matar a si ou a outrem sem reservas. Tem-se aí um grave risco de se ver aspiração por dignidade suplantada por afirmação fatal de virilidade.
Esse aspecto é particularmente emblemático para pensar o Brasil nesse momento grave de pandemia, no qual nosso país se encontra sob jugo de um governo de enormes afinidades fascistas – e não por coincidência também misóginas –, que abandonou o povo à própria sorte diante de uma doença mortal. Um governo que encarna hoje, com toda propriedade, a vocação secular genocida do Estado brasileiro perante os estratos mais vulneráveis de sua população.
Diante disso, parece imprescindível problematizar o que os estudantes que sobreviverem à Covid-19 demandarão da escola no devir pós-pandemia. E como a escola, enquanto instituição tão fundamental, irá se antever ou responder a isso. Claramente, não se tratará apenas de dar conta do conteúdo atrasado. As escolas lidarão com as consequências bastante diretas desse evento extremo, com a delicada tarefa de impedir que, dos traumas gerados por ele, não decorram em suas dependências outros episódios críticos de violência, a exemplo daqueles nela sediados num passado recente.
Competências socioemocionais
Como advertiu o francês François Dubet, reconhecido sociólogo da educação, o futuro depois da pandemia, como de praxe no posteriori de uma crise drástica, deverá ser marcado por um sentimento inevitável e difuso de injustiça, bem como de busca por reparação. Segundo ele, será necessário encontrar expressões políticas concretas para isso ou, do contrário, algo preocupante emergirá – “será todos jogando contra todos”10. Do olho desse furacão, o universo escolar não escapará.
A contar de 2014, quando iniciei as pesquisas sobre eventos extremos de violência juvenil ocorridos em escolas, assisti ao avanço no cenário brasileiro de menções a iniciativas de educação socioemocional como uma possível ferramenta para pacificação nos ambientes educativos. Trata-se de um instrumento importado dos Estados Unidos, que aposta na evolução sistemática de um conjunto de competências – como autoconsciência, autocontrole e decisão responsável –, como capazes de auxiliar estudantes a gerenciar emoções, estabelecer relacionamentos positivos e a se tornarem prósperos profissional e socialmente11.
Nos últimos meses, com a instauração da Covid-19 entre nós, percebe-se um ganho de força desse enfoque, ao se dizer preparado para dar conta das mazelas emocionais deixadas pela pandemia, quando do reencontro presencial das comunidades escolares. Dessa forma, uma gama de organizações privadas ou não governamentais têm ofertado a famílias, instituições de ensino e governos uma variedade de produtos e serviços nessa linha, na forma de e-books, lives ou programas mais estruturados de intervenção.
A abordagem das competências socioemocionais, todavia, não se configura como uma unanimidade, embora assim seja apresentada pelas entidades que a mobilizam. Tais organizações, inclusive, já conseguiram com seu lobby inserir formalmente esse enfoque educacional na Reforma do Ensino Médio de 2016 e na Base Nacional Comum Curricular, durante o governo de questionada legitimidade de Michel Temer. Mas essas entidades não estão livres de interpelações de segmentos da comunidade científica e da sociedade civil, no Brasil e no exterior.
Os críticos mais enfáticos das competências socioemocionais assinalam seu foco excessivo sobre a psique, em detrimento da consideração dos contextos socioculturais em que os sujeitos de fato vivem, perpassados por um rol de desigualdades. Contestam também os parâmetros avaliativos de tais habilidades que, embora sejam apresentadas como universais e neutras, em verdade se mostram recheadas de valores presentes naqueles mesmos contextos12.
No quadro da pandemia, o tipo de remediação que a abordagem das competências socioemocionais almeja faz recordar a demarcação do Transtorno do Stress Pós-Traumático nos anos 80, no rastro de crimes contra a humanidade de duas grandes guerras e de uma série de governos ditatoriais que então sucumbiam. A antropóloga Cynthia Sarti lança luz aos dois gumes da delimitação de tal disfunção no Manual de Distúrbios Mentais, conhecido pela sigla “DSM”, em inglês. De um lado, a definição do transtorno auxiliou a identificar vítimas de violências extremas, impulsionando movimentos sociais, marcos jurídicos e políticas de saúde. De outro, entretanto, estabeleceu uma leitura médico-psiquiátrica individualizada do sofrimento, de modo que quem nela não se encaixa, não tem sua dor visibilizada.
O enfoque das competências socioemocionais parece seguir essa esteira, de moldes estandardizados para lidar com as consequências traumáticas de eventos extremos. Há uma grande dificuldade nessas padronizações, porque os sofrimentos são profundamente contextualizados. As dores se atravessam pelos marcadores sociais de iniquidades e vulnerabilidades que já estavam lá antes dos episódios críticos e que, com toda certeza, funcionaram como seus agravantes.
Como assevera Cynthia Sarti , “[s]er vítima não corresponde a um lugar fixo e, pelo caráter mutante da violência, seu lugar, assim como o do agressor, se desloca entre distintos sujeitos”13. A antropóloga indiana Veena Das, outrora citada, também advoga: O “modelo de trauma e de testemunho” abraçado pela comunidade judaica e tornado hegemônico em resposta ao Holocausto da Segunda Guerra, não é único e, por não abarcar todo e qualquer cenário sociocultural, não pode ser a norma.
Lembremo-nos, com o sociólogo austríaco Michael Pollak, que homossexuais, prostitutas, ciganos, entre outros outsiders, também duramente perseguidos pelo nazismo, não tiveram suas vozes abarcadas pela historiografia e, com isso, tampouco seus traumas reconhecidos 14.
Afetos
Como então frutificar na escola do pós-pandemia reparações não massificadas, capazes de se concretizarem, como sinalizou François Dubet, como verdadeiras expressões políticas, em favor de cidadãos plenos e não de indivíduos isolados? Mais que um olhar atento às emoções, argumento aqui por uma percepção apurada dos afetos.
As chamadas “Teorias do afeto” nos explicam que, enquanto emoções possuem nomes e convenções que as regem, os afetos parecem de algum modo precedê-las, posto que não são por completo nomináveis e representáveis. Ambos são sentidos, mas a atenção a certas ambiências afetivas pode nos fazer perceber elementos e ofertar insights de ação que, muitas vezes, não se revelam no nível pactuado das emoções15.
Mais que por denominações específicas, falamos de afetos como estados: dizemos “o ar está pesado” ou “há um clima de felicidade”. A potência não está assim no substantivo ou no adjetivo, mas no verbo: afeto é pura agência. Mas, como capturar algo que é material porque vivido e, ao mesmo tempo, imaterial porque não enquadrado em signos delimitados? E ainda: como fazer isso de modo a frear eventos críticos ou suas consequências drásticas dentro da escola?
Conto uma história. Ainda antes do resultado final das eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016, a organização da sociedade civil Southern Poverty Law Center divulgou um relatório com os resultados de uma pesquisa sobre o “Efeito Trump” no cotidiano escolar norte-americano16. A investigação realizou-se numa plataforma on-line entre educadores vinculados ao Teaching Tolerance, um dos projetos dessa instituição.
Esses docentes relataram o aumento da prática de bullying contra estudantes cujas etnias e religiões haviam sido depreciadas na campanha eleitoral de Trump. Uma constatação, porém, menos evidente à primeira vista foi a de que a retórica da disputa presidencial havia construído, segundo os professores, um “novo vocabulário de bullying”, por meio do qual os alunos passaram a utilizar os nomes dos candidatos como pejorativos para provocar uns aos outros.
Instigados por cientistas do social a pensar acerca do cotidiano e ao se darem conta do não óbvio – isto é, que o bullying não só havia aumentado, como tinha conquistado uma nova terminologia –, esses educadores corporificam um exemplo de como transitar das emoções aos afetos. O emprego dos nomes dos candidatos em disputa confere ao ato de depreciar uma camada metafórica adicional sofisticada. Esse uso informa sobre um clima afetivo que ali pairava, que impulsionava pessoas ao ultraje mútuo, mas não se prestava à catalogação tradicional das condutas desaprovadas na escola.
Como seria possível lapidar essa percepção na volta à educação presencial do pós-pandemia no Brasil? Receita pronta não há. Alguns acontecimentos em curso, entretanto, nos dão dicas valiosas sobre onde deter atenção e zelo. A enorme migração de estudantes de escolas particulares para as públicas, devido aos danos econômicos da Covid-19, por exemplo, pode desenhar dentro das instituições de ensino fortes atmosferas de ressentimento de classe17. Tal rancor, muitas vezes, não se manifesta numa emoção acabada e razoável, mas sim no afeto difuso e perigoso. Recordemo-nos de que fervura do ressentimento tanto de classes médias, quanto de estratos populares, perante uma sensível modificação na pirâmide de rendimentos brasileira na era petista, teve papel determinante para materializar o governo Bolsonaro18.
Outro aspecto digno de nota da perspectiva dos afetos reside não só no luto pelas vidas perdidas para a doença, mas, quero destacar, na negação do luto, diante de um clima de que ‘o Brasil não pode parar’. A política de saúde pública em vigor é de genocídio: vivemos quarentenas frouxas e, hoje, seguimos dia a dia tropeçando em cadáveres. Busco apoio nas palavras de Vladimir Safatle: “A gente tem uma estrutura necropolítica, que é uma gestão das mortes que vem de uma sociedade escravagista, onde uma parte dos sujeitos são considerados coisas, não pessoas, então, se eles morrem, não tem luto, não tem dor, não tem nada. Isso sempre esteve presente na sociedade brasileira, dependendo de quem morre é um número (…). Só que agora tem um dado diferente: o Estado, ele generaliza esse processo”19.
O luto negado não tem nome: ele interdita a emoção do pesar, é afeto puro. Então, abre-se a pergunta: como esse quadro de profundo sofrimento socializado, mas não tornado inteligível, se rebaterá no cotidiano escolar e em suas memórias de eventos críticos de violência juvenil dos últimos anos?
Ciências sociais importam
Cuidar dos afetos constitui tarefa árdua e seria injusto delegar isso exclusivamente aos professores. Todos, nas comunidades escolares, estarão se refazendo diante do desconcertante da pandemia. Mais que nunca, equipes multidisciplinares mostrarão sua necessidade. Na contramão da fala do mais recente ministro de Estado exonerado, reafirmo com isso a importância dos cientistas sociais e dos antropólogos em particular, sendo eu uma. Nosso modus operandi de trabalho – que é, sistematicamente, “olhar, ouvir, escrever”, como traçou Roberto Cardoso de Oliveira – oferece uma janela de acesso privilegiada aos afetos20.
O antropólogo britânico Daniel Miller defendeu, inclusive, que continuamos fazendo isso mesmo trabalhando apenas on-line nesse momento de isolamento social. Diz ele: “… a discussão sobre o confessional constitui, em certo sentido, o que nos torna antropólogos. (…) Porque as pessoas, em quase todas as circunstâncias, querem essa oportunidade de tentar, de certo modo, ouvir a si mesmas e entender a si mesmas; o que sentem a respeito de suas circunstâncias (…)”21. É o que estamos procurando colocar em curso com o projeto Escola em quarentena, citado de início: olhar, ouvir, escrever, captar afetos, afetar-se. Tentando, assim – para emprestar novamente um termo de Veena Das – “reabitar” um mundo, um país, nossas casas e instituições de ensino, bem como nossas próprias subjetividades.
Juliane Bazzo é antropóloga, professora e pesquisadora, atualmente vinculada ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná.
Notas
1 O projeto Escola em quarentena é ainda coordenado pela contadora de histórias Mana Lucena Suarez e pela professora da rede estadual de ensino do Ceará Kelli Schmiguel.
2 PEREIRA, Alexandre B. Do controverso “chão da escola” às controvérsias da etnografia: aproximações entre antropologia e educação. Horizontes Antropológicos, v. 23, n. 49, p. 149-176, set./dez. 2017.
3 BAZZO, Juliane. O que as ciências sociais têm a dizer sobre o ataque armado à escola em Suzano. Portal Instituto Humanitas Unisinos, 24 mar. 2019. Disponível em: <www.ihu.unisinos.br>.
4 DAS, Veena. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 2007.
5 ARONOVICH, Lola. Lute como uma garota. Relato a Márcio Padrão. Uol, 16 jul. 2019. Disponível em: <www.uol.com.br>.
6 CRANSTON, James. After coronavirus closures, reopening schools demands collaboration. The Conversation, 25 maio 2020. Disponível em: <https://theconversation.com>.
FOLHA NA SALA [Podcast]. Como será a escola agora? Fomos ver isso na França, Coreia do Sul e mais três países. Folha de S. Paulo, 26 maio 2020. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br>.
7 BARRUTI, Soledad. Nuggets e morcegos: como cozinhamos as pandemias. Efefante Editora, 07 maio 2020. Disponível em: <https://editoraelefante.com.br>.
8 BAZZO, Juliane. Da tortuosa elucidação do trágico: a agência da noção de bullying em meio a eventos extremos de violência juvenil. Iluminuras, v. 18, p. 38-73, 2017.
9 ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
10 DUBET, François. O coronavírus, ‘a vingança das pequenas desigualdades’. Entrevista a Jonathan Dupriez. Tradução de Juliane Bazzo e Camila Balsa. Antropológicas Epidêmicas, 02 maio 2020. Disponível em: <www.antropologicas-epidemicas.com.br>.
11 COELHO, V. A. et al. Programas de intervenção para o desenvolvimento de competências socioemocionais em idade escolar: uma revisão crítica dos enquadramentos SEL e SEAL. Análise Psicológica, v. 1, n. XXXIV, p. 61-72, 2016.
12 ANPED. Carta aberta sobre avaliação em larga escala de habilidades não cognitivas de crianças e jovens. 11 jul. 2014. Disponível em: <www.anped.org.br>.
13 SARTI, Cynthia. A vítima como figura contemporânea. Caderno CRH, v. 24, n. 61, p.51-61, 2011. A citação está na página 58 do artigo.
14 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
15 LOW, Setha. Emotion, affect and space. In: Spatializing culture: The ethnography of space and place. London; New York: Routledge, 2017. p.145-173.
16 COSTELLO, Maureen B. The Trump effect: the impact of the presidential campaign on our nation’s schools. Montgomery: Southern Poverty Law Center – SPLC, 2016.
17 BARAN, Katna. Crise econômica faz milhares de alunos migrarem da rede privada para a pública. Folha de S. Paulo, 03 jun. 2020. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br>.
18 PINHEIRO-MACHADO, Rosana; SCALCO, Lucia M. Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista. In: GALLEGO, Esther S. O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 53-59.
19 SAFATLE, Vladimir. “Bolsonaro se acha capaz de esconder os corpos”. Entrevista a Marina Amaral. Agência Pública, 06 abr. 2020. Disponível em: <https://apublica.org>.
20 OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. In: O trabalho do antropólogo. 2 ed. Brasília, São Paulo: Paralelo 15; Editora Unesp, 2000. p. 17-35.
21 MILLER, Daniel. Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social. Tradução de Camila Balsa e Juliane Bazzo. Blog do Sociofilo, 23 maio 2020. Disponível em: <https://blogdosociofilo.com>.