O avanço dos conservadores na Áustria
Morto há pouco menos de um ano, Jörg Haider, um dos líderes da extrema-direita austríaca, deixou uma herança preocupante: seu partido, que insiste em um discurso racista, já seduziu os demais com essas suas ideias. Tanto que os socialistas e os verdes avaliam a possibilidade de alianças eleitorais
Klagenfurt, Áustria, 18 de outubro de 2008. Na praça central da cidade, 25 mil pessoas vindas de todo o país esperam em silêncio a transferência dos restos mortais de Jörg Haider, dirigente da extrema-direita austríaca e governador da região de Caríntia, morto alguns dias antes em um acidente automobilístico1. Uma comoção impressionante toma a multidão. A televisão pública transmite ao vivo a cerimônia. O exército presta homenagens. O arcebispo pronuncia uma pregação.
Na primeira fileira do velório estão os principais políticos do país. Dentre eles, Heinz Fischer, presidente da República e membro do Partido Social-Democrata da Áustria (SPÖ), o chanceler Alfred Gusenbauer (também do SPÖ) e ministros de Estado, bem como dirigentes de todos os partidos. “É um funeral nacional”, admitiu Gusenbauer2.
E tudo isso por um homem que, durante um debate no Parlamento da Caríntia, em 13 de junho de 1991, exaltou “a política de emprego bem conduzida” pelo III Reich. Já em uma reunião em 30 de setembro de 1995, ele exprimiu sua admiração pelos veteranos das Waffen-SS, a tropa de elite nazista. “Esses homens íntegros, até hoje fiéis às suas convicções, apesar dos ventos contrários”, disse. Haider foi responsável ainda por introduzir a xenofobia nas campanhas políticas contemporâneas, com slogans como “Stop der Überfremdung!” (“Não às influências estrangeiras!”), sendo que a palavra Überfremdung remete diretamente ao vocabulário nazista. Isso sem esquecer as repetidas acusações feitas aos negros, vistos como traficantes de drogas ou pedófilos.
“É por causa desse homem que a Áustria inteira se pôs a chorar”, lamenta o cientista político Jean-Yves Camus, especializado na extrema-direita europeia. “E ainda que isso possa nos parecer espantoso, não o é para os austríacos. Naquele dia, a classe política do país prestou uma homenagem a um dos seus”, conclui.
Foi nas eleições legislativas de outubro de 1999 que o Partido Austríaco da Liberdade (FPÖ) de Jörg Haider atingiu inesperados 26,9% dos votos, ultrapassando os cristãos conservadores do Partido Popular Austríaco (ÖVP). Derrotado no pleito, o chefe do ÖVP Wolfgang Schüssel formou o governo selando um acordo com o FPÖ, o que despertou a inquietação dos outros 14 membros da União Europeia (UE). Conduzidos pelo então presidente francês Jacques Chirac, os países europeus esfriaram as relações bilaterais e se recusam a nomear austríacos para altos postos nas instituições internacionais.
Na época, o resto da Europa não se dava conta realmente de quão profunda, e antiga, era a participação do FPÖ na vida política do país. Entre 1983 e 1986, o governo do socialista Fred Sinowatz já havia formado um governo com essa agremiação especializada na reciclagem de antigos nazistas. E tanto no nível dos Länder (regiões administrativas) como nos municípios, todos os eleitos se conhecem e não veem qualquer escândalo em se aliar uns com os outros em busca do êxito eleitoral. “A aceitação social e moral do FPÖ não pode ser comparada com a sorte reservada às demais formações de extrema-direita europeias”, lembra Jean-Yves Camus. Ainda mais levando-se em conta que na Áustria, ao contrário do que acontece na Alemanha, a indulgência do FPÖ a respeito do nazismo nunca fez com que a rejeição ao partido aumentasse (veja box).
Diante dessa situação completamente inédita, os membros da UE se viram rapidamente em maus lençóis. Schüssel não só conseguiu provocar um verdadeiro movimento de união nacional em torno de si, como ameaçou bloquear o funcionamento da comunidade, começando pelo Tratado de Lisboa. Nesse teatro cuidadoso, o Parlamento Europeu enviou três emissários à Áustria. O relatório encaminhado por eles, de 8 de setembro de 2000, reconhece que o FPÖ, “partido populista de direita com características extremistas, utilizou e encorajou sentimentos de xenofobia no curso de suas campanhas, [criando] uma atmosfera na qual as menções públicas dirigidas contra os estrangeiros se tornaram aceitáveis, engendrando sentimentos de medo”. Contudo, o texto recomenda à UE o fim das sanções, o que é feito imediatamente.
Nostálgico do III Reich
E desde então? Nada. Todos os olhares se desviaram da Áustria e, pouco a pouco, os artífices desse “pacto da vergonha” foram reintegrados à vida política europeia. Benita Ferrero-Waldner, ministra das Relações Exteriores do governo Schüssel e integrante do ÖVP, declarava ao Libération, em 12 de fevereiro de 2000, que ela tinha “coisa melhor a fazer do que perder tempo” com o apoio dado pelo FPÖ aos nostálgicos do III Reich. Depois disso, Waldner obteve um cargo de prestígio como comissária de Relações Exteriores da União Europeia. Já Schüssel, recentemente coberto de elogios por Angela Merkel3, recebeu um cargo em Bruxelas.
A verdade é que, assim que as sanções deixaram de existir, quase todos os compromissos com a extrema-direita se tornaram possíveis. Nenhuma voz se levantou quando da entrada de três ministros integrantes da Liga do Norte no segundo governo Berlusconi4, em junho de 2001. Nem em maio de 2006, no momento da aliança entre o partido conservador polonês e duas formações xenófobas: o partido Autodefesa de Andrzej Lepper e a Liga das Famílias Polonesas (LPR) de Roman Giertych. Um mês depois, o líder da esquerda eslovaca Robert Fico formou um governo com o Partido Nacional Eslovaco do extremista Jan Stola.
Em um primeiro momento, era possível acreditar que toda essa movimentação decorresse da desmistificação do FPÖ, que passou pela prova de fogo do governo Schüssel. Porém, os ministros do partido comprovaram repetidas vezes sua incompetência. E como o FPÖ não integrou o Ministério do Interior, não pôde pôr em prática a promessa eleitoral de “fim imediato da imigração”. Além disso, Karl-Heinz Grasser, ministro da Economia, aplicou a política mais liberal da história do país, com aceleração das privatizações, diminuição dos encargos aos patrões, redução da tributação às empresas, vantagens fiscais conferidas às grandes fortunas e corte nas aposentadorias.
Resultado: nas eleições de 2002, os operários e demais trabalhadores que constituíram o grosso do eleitorado do FPÖ três anos antes, exprimiram sua decepção. O FPÖ degringolou e obteve somente 10%, enquanto o ÖVP saltou aos 42% e Schüssel comemorou. Três meses mais tarde, ele restabeleceria uma coalizão com o FPÖ e, em seguida, com a Aliança pelo Futuro da Áustria (BZÖ), o novo partido de Haider5, permitindo assim que a extrema-direita reinasse, no total, por sete anos.
Nas eleições de outubro de 2006, ela se revigorou. O FPÖ obteve 11% dos votos e o BZÖ, 4%. Dois anos depois, a extrema-direita atingiu no total 28,2% dos votos, ultrapassando a marca histórica de 1999!
Durante todos esses anos, não somente a extrema-direita não moderou seu discurso racista, como os outros partidos se deixaram levar por essas ideias. Os socialistas, que tanto denunciaram em fevereiro de 2000 o “pacto da vergonha” entre Schüssel e o FPÖ, encaram hoje a possibilidade de uma aliança entre SPÖ e FPÖ nas próximas eleições regionais, sem qualquer vacilo. “E os Verdes, até então poupados, já estão se rendendo”, sustenta o filósofo vienense Oliver Marchart, para quem “uma das consequências mais perceptíveis de fevereiro de 2000 é a infiltração lenta, mas inexorável, do racismo no discurso público”. Recentemente, em Linz, um dos eleitos verdes tomou para si a exigência da extrema-direita de “expulsar imediatamente e sem exceção todos os que tiveram asilo negado6”. E a direção do partido decidiu apoiar seu parlamentar.
“No que concerne aos estrangeiros, o FPÖ não precisa estar no poder”, aponta Georg Hohhman-Ostenhof, editora da revista Profil. “Suas ideias são aplicadas, tanto pelo ÖVP como pelo SPÖ”, diz. Com efeito, ainda que essa tendência fosse perceptível antes da entrada da extrema-direita no governo, os últimos nove anos marcaram um endurecimento da legislação, tornando a situação dos imigrantes cada vez mais difícil. Entre as medidas tomadas estão a diminuição drástica da cotas de imigração; as condições cada vez mais restritas para o reagrupamento familiar; a obrigatoriedade de frequentar cursos de alemão para os aspirantes a uma estadia de longa duração; a restrição das possibilidades de pedido de apelação para os asilos negados em primeira instância; e demais obstáculos suplementares para as naturalizações (mais anos de moradia na Áustria ou de casamento, maior nível de conhecimento da língua e dos “valores de base de um Estado democrático”, sem que esses sejam precisados em nenhum lugar). Além disso, foram dados poderes extraordinários à polícia, autorizada a manter em centros de retenção todos aqueles que pedirem asilo durante até dez meses, sem qualquer consulta ao poder judiciário.
Políticas duras para os imigrantes
Comparar a situação dos estrangeiros de um país e de outro representa um exercício difícil, por causa do número de variáveis relevantes para a análise. Mas é esse o objeto do Migrant Integration Policy Index (Mipex), elaborado em 2007, que leva em conta seis critérios: as possibilidades de acesso dos imigrantes ao mercado de trabalho, sua participação na vida política7, os obstáculos para o reagrupamento familiar, as condições de acesso à estadia de longa duração, as regras de naturalização e a discriminação. Em um quadro comparativo dos 25 membros da União (e de três não membros: o Canadá, a Noruega e a Suíça), a Áustria obteve o 26° pior resultado, logo atrás do Chipre e da Letônia8.
Entre os austríacos, o racismo se exprime mais pelos discursos e pelas leis que pela violência física. O que não o torna menos doloroso: os insultos, o serviço recusado nos cafés e os grafites nos muros são abundantes, afetando particularmente a comunidade negra. “Não se pode imaginar o que é ser negro na Áustria!”, lamenta o jornalista Simon Inou, diretor do jornal virtual Afrikanet.info. “Quando vou ao metrô, sei que três assentos em torno de mim ficarão vazios. Nas ruas, o olhar das pessoas é sempre negativo, inquieto, e até hostil”, declara. Adèle, professora nascida no Gabão, viveu muito tempo na França antes de se instalar em Viena: “O racismo está em toda parte, evidentemente. Na França, há pessoas profundamente antirracistas. Mas aqui não consigo nem criar um pequeno círculo de amigos com os quais eu posso estar totalmente segura a esse respeito”.
Há dez anos, após uma enorme campanha levada a cabo pelo jornal Kronen Zeitung9, com o apoio de Haider, os negros se tornaram sinônimo de traficantes de drogas e pedófilos no imaginário coletivo. Mais recentemente, surgiram duas outras categorias sobre as quais os medos se fixaram: os que pedem asilo e os muçulmanos. Dois dos principais slogans de campanha da grande estrela atual da extrema-direita, Heinz-Christian Strache, 39 anos, o novo líder do FPÖ, foram: “Asylbetrug heisst Heimatflug” (“Fraude no direito de asilo significa reenvio ao país de origem”) e “Daham statt Islam” (algo como “Nossa cultura ao invés do Islã”). Clichês racistas sobre esses dois grupos aparecem também todos os dias nas páginas do Kronen Zeitung, seja nos artigos ou nas inúmeras cartas de leitores.
O cientista político Patrick Moreau, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) da França, tenta explicar o sucesso persistente da extrema-direita: “Os austríacos estiveram sempre em um mundo pequeno, fechado em si mesmo, gozando de um verdadeiro bem-estar, com pouco desemprego, um nível de vida elevado, e uma poluição limitada… E, no fundo, um medo visceral de que esse paraíso desapareça. Ora, a Áustria não teve colônias, os primeiros imigrantes são muito recentes. E os austríacos focalizaram neles todos os medos, o que se tornou hoje um elemento constitutivo da cultura nacional, e sobre a qual Jörg Haider construiu seu sucesso”.
Nessas condições, “um futuro radiante está reservado à extrema-direita”, prediz Patrick Moreau. Com a morte de Haider, o BZÖ pode ainda esperar alguns bons resultados na Caríntia, antes de desaparecer rapidamente. “E O FPÖ, levado pelo talentoso Heinz-Christian Strache, poderá então juntar novamente todos os perdedores da globalização e todos aqueles que, sobre a questão da recusa aos imigrantes, preferem o original às cópias apresentadas pelos outros partidos”, completa.
*Pierre Daum é jornalista.