O presente momento é marcado por uma crise global. A estagnação econômica, desde a crise de 2008, somada aos problemas sociais (pobreza, desigualdade de renda etc.) marca uma grave crise do capitalismo financeiro. As políticas neoliberais fracassaram patentemente e não foram capazes de ampliar o bem estar social. O foco no combate à inflação tolhe a política monetária. O “austericismo” fiscal engessa a política fiscal. A liberação financeira, restringe a regulação financeira. A política industrial e o planejamento econômico são demonizados pela crença na eficiência alocativa e distributiva do mercado desregulado.
Estamos diante de um desafio que clama por novas formas de pensar, teorizar e intervir no mundo. Realizamos aqui um exercício de elucubração fantasiosa, com o intuito de definir as linhas gerais de um banco central (BC) utópico. Trata-se de um esforço de pensar para além das amarras da teoria convencional e da própria realidade política e socioeconômica. Nos inspiramos na contribuição de Keynes e em elementos da Teoria Monetária Moderna, bem como na visão estruturalista da inflação, de Sunkel e de Rangel. Isso é relevante pois nos permite desenhar um BC ideal, abstraindo-se de qualquer restrição ou limitação que, eventualmente, poderia vir a surgir caso nossa proposta fosse concretizada. Assim, busca-se motivar um debate sobre as implicações e restrições práticas ao nosso ideal.
Trata-se de um banco central antitético ao previsto pelo regime de metas de inflação. Seu principal objetivo é manter os níveis de emprego e de renda. A estabilidade de preços torna-se secundária. A Selic deixa de ser o principal instrumento do BC. O objetivo último do banco requer uma coordenação com a políticas fiscal e cambial. A política econômica não deve ser compartimentalizada entre o BC e o tesouro nacional (TN). Trata-se de um banco que age discricionariamente, evitando recessões e o superaquecimento econômico.
O pleno emprego é seu objetivo prioritário. A estabilidade financeira continua sendo importante. Também compete ao BC estabilizar os preços, mas de forma coadjuvante e coordenada com outras esferas do Executivo. Também cabe ao banco central estabilizar o câmbio, por meio de intervenções no mercado cambial e adoção de controle de capitais.
O BC ideal não é independente. Antes pelo contrário, ele se relaciona de forma umbilical com o TN. Essa relação íntima se daria, notadamente, pelo financiamento dos gastos públicos, sempre que necessário, pelo BC. Entretanto, o artigo 164 da Constituição estabelece que a competência da União para emitir moeda é exercida exclusivamente pelo BC. Porém, é vedada ao banco conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao TN e a qualquer entidade não financeira. Essa é uma restrição autoimposta, que dificulta a coordenação entre as políticas fiscal e monetária.
A Constituição também proíbe, em seu art. 167, a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares com finalidade precisa, aprovados pelo Legislativo por maioria absoluta. É a versão brasileira da regra de ouro, segundo a qual determinada geração só pode emitir dívida a ser paga pelas gerações futuras para financiar investimentos que também beneficiem as gerações futuras. Assim, os gastos públicos em áreas como saúde, educação, ciência e tecnologia, necessários para a manutenção e o pleno aproveitamento dos investimentos passados, supostamente não beneficiariam as gerações futuras. Isso não faz sentido e essa regra encontra-se em desuso internacional.
Uma terceira restrição é a proibição de que os entes federados realizem despesas acima dos valores estabelecidos em metas de resultado primário, conforme o art. 4º, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Além disso, a Emenda Constitucional nº 95/2016 proibiu o aumento real das despesas primárias da União durante vinte anos.
O resultado dessas restrições, autoimpostas, é a impossibilidade de coordenação efetiva entre as políticas fiscal e monetária. Colocar em prática o nosso BC ideal exige, portanto, modificações normativas, a começar pela revogação dessas restrições.
A política econômica não deve ser compartimentalizada entre o BC e o TN. A distinção tradicional entre política fiscal e monetária é abandonada em prol de uma abordagem que combine ambas. Em suma, as políticas monetária e fiscal se entrelaçam e se completam.
Para perseguir o pleno emprego é necessário que o TN amplie seus gastos assegurando-se, assim, um elevado nível de renda. Nesse caso, as expectativas dos produtores seriam positivas e o investimento se elevaria. Por exemplo, a adoção de amplo programa de renda mínima ou de gastos públicos em setores estratégicos deve fazer parte desse arcabouço.
Nosso BC ideal parte do princípio de que a inflação é um fenômeno complexo, com múltiplas causas. A inflação de demanda agregada é apenas um dos tipos de inflação. É preciso focar nas pressões inflacionárias pelo lado dos custos, como: inflação de salários; de lucros; importada; e de gargalos setoriais de oferta.
O olhar macroeconômico da inflação é complementado por uma perspectiva setorial dos preços. É preciso uma estratégia de desenvolvimento (políticas industrial, creditícia, e de ciência e tecnologia) que permita um planejamento a fim de minimizar esses gargalos. Ainda assim, é necessário monitorar como se comporta a inflação em setores específicos. Assim, busca-se identificar e combater eventuais gargalos setoriais de oferta e as consequentes pressões inflacionárias estruturais.
Não há receita de bolo. A visão monetarista ortodoxa que fundamenta o regime de metas de inflação é radicalmente descartada. A inflação não é um fenômeno simples: não se trata de um fenômeno meramente monetário; nem resulta simplesmente do excesso de demanda, pressionada pelo gasto público. Essa concepção simplista preconiza uma estratégia igualmente simplista de combate à inflação, consubstanciada no regime de metas. Para combater a inflação bastaria aumentar a Selic. Essa visão é equivocada e deve ser rechaçada. Por exemplo, há um amplo conjunto de evidências empíricas que mostram que a Selic não é eficaz no controle inflacionário.
Inflações específicas devem ser combatidas com instrumentos específicos. O BC deve buscar alternativas, como: i) Política de rendas; evitando desequilíbrios setoriais no mercado de trabalho (esse instrumento também deve ser usado para controlar a inflação de lucros); ii) Política de defesa da concorrência; controlando a inflação de lucros; iii) Estoques reguladores de bens essenciais; para compensar choques negativos de oferta; e iv) Manejo dos juros de longo prazo.
A política cambial precisa ser usada ativamente para evitar a sobrevalorização da moeda doméstica. A taxa de câmbio também deve ser estável. Esses objetivos podem ser alcançados pelo uso de controles de capitais e de intervenções no mercado cambial, tanto à vista quanto futuro. A sobrevalorização é indesejada pois reduz a competitividade da produção doméstica estimulando, assim, as importações e desestimulando as exportações. Além de gerar um desequilíbrio no balanço de pagamentos, a valorização prejudica o investimento no setor industrial. Uma valorização persistente da moeda doméstica contribui para um processo de mudança estrutural perverso conhecido como desindustrialização – ou a redução da participação da indústria no PIB.
Em suma, nosso BC ideal se distingue radicalmente do previsto pelo regime de metas de inflação. Seu objetivo fundamental é promover o pleno emprego. A estabilidade de preços torna-se secundária. A gestão da Selic deixa de ser o principal instrumento de atuação da autoridade monetária. A política inflacionária torna-se secundária e umbilicalmente coordenada com a política fiscal.
Andre de Melo Modenesi é professor associado ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq.