O bolsonarismo não cabe nos números
Entendê-lo mais como um fenômeno social que contamina a vida social do que como uma expressão estatística é um passo importante na sua compreensão
Em uma das últimas pesquisas estatísticas de intenção de voto para as eleições presidenciais chilenas — que acontecerão no fim de novembro — o candidato mais à direita do espectro, José Antonio Kast, somou 6,3% das intenções de votos. Levando em conta a população de quase 19 milhões de habitantes, a taxa corresponde a cerca de 1,19 milhão de pessoas que querem transformar um homem que disse que certamente seria votado pelo ditador Augusto Pinochet para governar o país e que as mulheres são totalmente culpadas pelos estupros de que são vítimas em presidente do Chile. Na eleição anterior seu desempenho nas urnas foi parecido: pouco mais de 7% dos votos. Kast, além de símbolo do chamado neopinochetismo, também é chamado constantemente de “Bolsonaro chileno’, também por sua narrativa condescendente com a ditadura militar (1973-1990).
Esse fenômeno tão particular, que diz respeito à história e ao presente do Chile, não cabe totalmente em nenhum desses números – que tentam traduzir em um sistema compreensível essas relações sociais marcadas pelo desejo da violência e percepções cruas sobre a vida, com suas consequentes ações sobre o mundo, que vão dando legitimidade a figuras como Kast. Os números servem para dar, a essas narrativas, um aspecto legível, mas que facilmente se confunde com o entendimento pleno.
No Brasil acontece o mesmo com esse fenômeno complexo e difuso batizado de “bolsonarismo”, na falta de outro nome possível. A busca por entendê-lo tem sido feita principalmente por meio de pesquisas estatísticas de institutos e meios de imprensa. A última, do Datafolha, por exemplo, argumenta que cerca de 11% dos brasileiros se vêm irrepreensivelmente na imagem de Jair Bolsonaro — ou porque encontraram nele a figura que expressa suas compreensões do mundo ou porque o usaram para manifestar abertamente suas posições.
Sob a ótica dos dados, assim — essa vitória tão significativa da ciência política —, o neopinochetismo chileno e o bolsonarismo brasileiro são fenômenos de minorias sociais relativas que estão ou nas margens da disputa político-institucional ou nas vésperas de serem expulsas de um horizonte histórico ao qual nunca imaginamos que elas poderiam chegar, como é o caso do bolsonarismo. Quando vemos pesquisas como essas, a primeira reação é nos assustarmos — da mesma forma que reagimos quando descobrimos que 10% dos alemães apoiaram o Alternative für Deutschland (AfD), partido de extrema-direita que flerta com o neonazismo, nas eleições dessa semana, ou quando vemos que centenas de células neofascistas na Itália representarem 1% dos votos para o parlamento italiano. É quando entramos em um dilema, próprio da democracia, em aceitar de alguma forma a existência dessas percepções de mundo, ainda que as condenando às margens da representação política, ao mesmo tempo, na necessidade civilizatória de rechaçá-las, pela ameaça inevitável que elas promovem à própria vida (individual e coletiva).
Então, embora os estudos estatísticos exerçam certo papel amenizador, traduzindo todos esses fenômenos em termos quantitativos, mensurando-os a partir do tamanho dos seus grupos e, então, condenando-os à irrelevância social e histórica, eles escondem, por outro lado, o fato fundamental de que a simples existência dessas pessoas – que fosse de uma única pessoa – é um fracasso definitivo da democracia.
O triunfo da análise política em termos numéricos, que se transfigura nas pesquisas estatísticas, se por um lado são importantes na compreensão do que somos coletivamente, por outro também acabam jogando todas as luzes para esses jogos particulares dos governos, expressando os termos das “ameaças democráticas” sempre em porcentagens, taxas, gráficos, variações temporais, critérios de relações institucionais, conjunções históricas, etc. É próprio da ciência política, tanto porque estes são seus objetos quanto porque, como qualquer ciência, sua base é o passado. Logo, a democracia fica em perigo no Brasil, por este ponto de vista, apenas quando há a possibilidade concreta de Bolsonaro coordenar uma marcha de apoiadores em direção ao Supremo Tribunal Federal, enquanto é só quando um partido de tons nazistas irrompe entre as disputas republicanas pelo poder na Alemanha que a sua vida democrática se vê em risco.
Nisso, deixa-se de notar que a democracia, essa utopia tão material, tão definitivamente presente nas nossas vidas, cai enferma com a qualquer existência mínima dessas formas de entender o mundo — independentemente de mensurações estatísticas. E isso não porque se tratam de percepções essencialmente antidemocráticas, já que negam o suprassumo da ideia de que todos são iguais perante um sistema de relações sociais, mas porque elas são também essencialmente anticivilizatórias. Elas negam, sobretudo, a complexidade do humano, a potência dos contratos sociais, a outra utopia tão material, de alguma liberdade, e o fazem com um único recurso: a promessa crua da violência.
Como jeitos de agir, como perspectivas de vida, como maneiras de entender o que somos, essas pessoas não cabem nos números. Em outras palavras, o neopinochetismo não está nos seus 6% de intenções de voto em José Antonio Kast, assim como o bolsonarismo não fica inteiro nos 11% do seu “núcleo duro”, porque a simples existência de fenômenos como esses contaminam, antes, o próprio sentido da democracia enquanto sistema cotidiano em que as pessoas agem, de antemão, respeitando os outros como idênticos. Tampouco Kast ou Bolsonaro são a representação definitiva dessas posturas (em parte até as moderam), porque não são suas traduções literais e definitivas, mas suas manifestações contextuais, suas conjunções entre o que representam e o que se deixaram representar.
Para superar a crise complexa em que estamos metidos, é preciso compreendê-la – e para além dos números.
Vinícius Mendes é jornalista e sociólogo.