Por que o bolsonarismo é um resíduo ideológico da ditadura militar?
O ressurgimento do pensamento autoritário no Brasil não é fruto apenas de uma personalidade autoritária, mas produto residual de nossa recente história
À primeira vista, democracia e autoritarismo são termos irreconciliáveis ou incompatíveis. Entretanto, nossa história parece reconciliar e abrigar esta contradictio in terminis sem que notemos que a verdadeira liberdade política pressupõe a igualdade econômica (ou de poder) dos cidadãos. Transformado em arremedo de democracia, nosso regime político, entretanto, não pode deixar de nos dar a impressão de que o povo brasileiro participa politicamente dos processos decisórios e da condução de nosso destino. Porém, por democracia devemos entender soberania popular. Ora, a igualdade formal (abstrata) preconizada pela democracia liberal, é a própria negação da ideia de democracia. Ao trocar a participação direta e o poder de decisão dos cidadãos pelo voto, assim como ao substituir a discussão e o argumento de base racional pela negociação, a democracia liberal (parlamentar/representativa) usurpou e falsificou o conceito de democracia. Nossos políticos representam na maior parte das vezes, o poder econômico das elites locais e regionais – que determinam as regras do jogo político. Por isso, não há democracia sem independência do poder político em face do poder econômico. Contudo, sabemos, que na sociedade capitalista (no neoliberalismo político) a verdadeira democracia resulta impossível, de modo que a falsa democracia é defendida como se fosse verdadeira.
Diferentemente da memória individual, a memória histórica é sempre coletiva, por isso, não desaparece com a morte dos indivíduos. Recentemente, a ascensão de pensamento autoritário e reacionário (de extrema-direita) pode representar uma ruptura institucional. A maior parte da história política do Brasil é perpassada por longos períodos de autoritarismo político, inclusive no período republicano. A grande lição da história é que não se pode pretender entender o tempo presente sem compreender o passado. O ressurgimento do pensamento autoritário no Brasil não é fruto apenas de uma personalidade autoritária, mas produto residual de nossa recente história; é um legado ou uma herança política da ditadura militar que se caracterizou, sobretudo, pela ação violenta (repressão aos oponentes, manipulação do poder judiciário e das instituições, censura, cassação de direitos políticos, exílio, desaparecimento, tortura e morte de muitos brasileiros) pela força policial como mecanismo de controle social. Porém, não é difícil perceber que em sua formação histórica, a sociedade brasileira é fruto de uma estrutura violenta e autoritária. Exemplos disso, são a escravidão que perdurou por mais de três séculos e a absurda concentração fundiária e de riqueza nas mãos de poucos, mas que é legitimada e assegurada pela lei civil brasileira. Neste sentido, a lei da propriedade privada dos meios de produção é assegurada mesmo contra os direitos civis e as garantias individuais dos cidadãos.
Note-se que o caráter liberal e representativo da frágil e incipiente democracia brasileira é expressão das contradições sociais e históricas não resolvidas – do abismo social que separa pobres e ricos, brancos e negros. Por isso, o racismo que vigora entre nós, assim como toda espécie de discriminação racial e social só são inteligíveis à luz da perversa e excludente estrutura econômica do Brasil. Diferentemente do que sucedeu na maior parte dos países europeus, a burguesia brasileira nunca empreendeu nenhuma revolução para conquistar e assegurar seus interesses econômicos (ou privilégios de classe). Ao contrário, sempre viveu da exploração da classe trabalhadora e da expropriação predatória de nossos recursos naturais, o que retrata sua profunda aversão ao desenvolvimento econômico e social do próprio país. Porém, diante do atual estágio de desenvolvimento do capitalismo (de sua crise estrutural) a elite brasileira percebeu que Bolsonaro poderia catalisar e vocalizar em torno de sua figura de bufão, os seus próprios interesses econômicos e ideológicos.
Paradoxalmente, o bolsonarismo tem sua origem histórica e política anterior a Bolsonaro, porque é expressão do sentimento de ódio que estava latente e difuso na sociedade brasileira. A burguesia neoliberal percebeu que a desindustrialização do país, a desnacionalização (privatização de nossas empresas estatais) e a desregulamentação das leis trabalhistas poderiam representar o seu ingresso no novo estágio do capitalismo financista ou rentista. Ora, somente um candidato populista e com um discurso moralista (de combate à corrupção política e de defesa dos valores cristãos), nacionalista e patriota poderia seduzir e iludir o eleitorado e derrotar os seus adversários. Ou seja, o bolsonarismo atua como um think-tanks reacionário, retrato fiel da ideologia política que sustenta historicamente a perversa e violenta estrutura da sociedade brasileira, mas que se manifesta por meio do sentimento de ódio ou de hostilidade aos mais pobres e à militância política progressista (partidos políticos, movimentos sociais e sindicatos), assim como aos intelectuais sob a forma de misologia.
O ódio aos pobres decorre do fato de que são o produto da injustiça e da desigualdade econômica causada pelas elites. O ódio à militância de esquerda resulta do fato de que suas ações põem em risco a sobrevivência política do bolsonarismo (e os privilégios das elites). Já o ódio aos intelectuais (o anti-intelectualismo) decorre do fato de que representam a resistência crítica contra o pensamento autoritário e opressor. Assim como nos regimes de exceção, o bolsonarismo se utiliza de velhas táticas fascistas para se sustentar e se autopromover, como, p.ex., a mentira (a propaganda ou a falsa narrativa disseminada pela Internet em forma de fake news), o medo e a ação violenta da força policial.
Porém, como é possível entender que uma parcela expressiva da classe trabalhadora (pobres e negros) se deixou cooptar e passou a apoiar a fanfarronice de Bolsonaro? Ora, que os mais ricos – latifundiários, megaempresários, banqueiros e industriais queiram a todo custo impor seus interesses econômicos sobre os pobres e trabalhadores, parece de fácil entendimento, embora de impossível concordância. Contudo, os mais ricos são a parcela menor da sociedade brasileira, mas o bolsonarismo integra de forma contraditória ricos e pobres – pessoas carentes do ponto de vista social e econômico, i.e., desempregados ou subempregados e excluídos da economia formal pela precarização do trabalho, sem garantia trabalhista e previdenciária. Como sabemos, a manipulação da opinião pública e a instrumentalização política da religião sempre foram uma constante na história do Brasil.
Por ingenuidade ou por ignorância contumaz, muitos trabalhadores depositaram suas esperanças políticas nas promessas de um suposto herói nacional, mas que se revelou uma fraude política. Ora, tais pessoas não agem como cidadãos ou como sujeitos políticos, ao contrário, se deixam levar por promessas absurdas, pelo oportunismo e por interesses escusos. Fazem da política uma barganha ou um negócio pessoal. Não conhecem a história do país nem as teorias políticas que nos permitem compreender o que aconteceu e acontece na cena política brasileira. Não percebem em razão da estreiteza intelectual (ou por deficiência moral) o intrincado e perverso jogo político que se joga neste país. São manipulados como fantoches pelos políticos de profissão que representam os interesses dos mais abastados e afortunados. Marx denomina esta parcela dos trabalhadores desprovida de consciência política e de classe e que está sempre disposta a servir aos interesses da burguesia de lumpemproletariado (de escória, dejeto ou refugo da sociedade).
O bolsonarismo é uma facção política e ideológica que por meio do falso patriotismo, do fundamentalismo religioso e do militarismo pretende ocultar e preservar a dominação de classe e assegurar o rentismo financeiro das elites. Daí que o obscurantismo não é apenas um subproduto da falta de esclarecimento do povo, mas uma arma política de governos autoritários que por meio do negacionismo (da negação das conquistas da ciência) pretende se sustentar no poder. Assim, a fim de se manter no poder e manter seus compromissos com as elites econômicas, o bolsonarismo põe em risco a própria liberdade de expressão concedida pela democracia burguesa. Portanto, o que há de mais atrasado e arcaico na sociedade brasileira é o mandonismo e o parasitismo político das elites econômicas.
A história nos ensina que a burguesia quando se vê ameaçada em seus privilégios lança fora a democracia liberal e se utiliza do autoritarismo político com o pretexto de reinstaurar a ordem social. Como sabemos, a pobreza não é defeito de caráter nem uma indignidade para o ser humano, ao contrário, é resultado da profunda injustiça social e econômica. Porém, o autoritarismo político (o fascismo) das elites se nutre mais facilmente do analfabetismo político das massas e passa a funcionar como um atestado de garantia de que os seus interesses serão preservados ou assegurados com o consentimento dos mais pobres – que são desprovidos de cultura letrada ou intelectual. Donde se conclui que o subdesenvolvimento econômico de nosso país anda pari passu com o nosso subdesenvolvimento intelectual. Por isso, se quisermos vencer o bolsonarismo será preciso combater não apenas o parasitismo político das elites econômicas (o patrimonialismo e o clientelismo), mas o analfabetismo (político e das letras) que está impregnado na sociedade brasileira. Assim, mesmo que Bolsonaro nas próximas eleições seja derrotado, o bolsonarismo sobreviverá como resíduo político daquilo que há de mais repugnante e vil na sociedade brasileira.
Claudinei Luiz Chitolina é doutor em Filosofia pela Unicamp e professor de Filosofia da Unespar – PR.