Entre o autoritarismo furtivo e o fim do debate público racional
Pouco a pouco, passo a passo, sem grandes rupturas e sem tanques nas ruas, o autoritarismo furtivo ou sub-reptício de Bolsonaro destrói a democracia liberal constitucional
Em 28 outubro de 2018, 58 milhões de brasileiros levaram Jair Bolsonaro à presidência do país. O resultado foi definido no segundo turno, disputado com Fernando Haddad. O candidato do Partido dos Trabalhadores admitiu a derrota e desejou boa sorte ao adversário.
Apesar de ter amealhado, em 07 de outubro daquele ano, a maior quantidade de votos do primeiro turno, Bolsonaro afirmou que a eleição havia sido fraudada: “Se tivéssemos confiança no voto eletrônico, já teríamos o nome do futuro presidente da República decidido no dia de hoje”, disse. Em março de 2020, já no Palácio do Planalto, ele declarou que “provaria em breve” a fraude – coisa que ainda não ocorreu.
Adam Przeworski tem um conceito minimalista de democracia: “um sistema no qual ocupantes do governo perdem eleições e vão embora quando perdem”[1]. Bolsonaro venceu a corrida de 2018. Ainda assim, pôs em xeque seu resultado. Antes mesmo de assumir o posto de presidente, ele já trabalhava contra o regime democrático.
E sua escalada autoritária continuou em marcha. No dia 11 de dezembro de 2020, as manchetes davam conta de que a Agência Brasileira de Inteligência teria ajudado o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos), sobre o qual recaem suspeitas de se apossar ilegalmente dos salários de alguns de seus assessores de outrora. O órgão teria produzido e repassado ao filho do presidente e a seus advogados ao menos dois relatórios. Um deles estampa seu objetivo: “Defender FB no caso Alerj demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”.
Bolsonaro já havia manifestado seu desejo de aparelhar órgãos de Estado em uma reunião ministerial ocorrida em 22 de abril de 2020. Com os olhos direcionados para Sergio Moro, então Ministro da Justiça, o presidente disparou: “Eu não vou esperar f**** a minha família toda ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa”. E emendou: “Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro!”.
Na mesma reunião, Bolsonaro espinafrou a Polícia Federal: “Pô, eu tenho a PF que não me dá informações”. Pouco depois, valendo-se do poder que lhe é conferido pelo artigo 2º-C da lei 9.266, o chefe do Executivo levou à diretoria-geral da Polícia Federal um amigo dele, Alexandre Ramagem. A nomeação foi parar no Supremo Tribunal Federal, que, a pedido do Partido Democrático Trabalhista, suspendeu-a liminarmente por “inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”. Dias mais tarde, Bolsonaro voltou atrás e indicou para o cargo o delegado Rolando Alexandre de Souza.
A filmagem do encontro de 22 de abril entre Bolsonaro e seus ministros também registrou uma outra fala que diz muito a respeito das táticas de seu governo. Ricardo Salles, titular da pasta do Meio Ambiente, exortou os colegas a realizarem um esforço: “Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de Covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento, e simplificando normas”.
A simplificação das normas a que se refere Salles pode se dar por meio de decretos – como o 9.875 que, editado em meados de 2019, flexibilizou a posse e o porte de armas de fogo. Por entender que a norma modificava o Estatuto do Desarmamento, o Senado a sustou – afinal, destinados a regulamentá-las, decretos não podem alterar leis. O decreto-legislativo aprovado pelos senadores seguiria para a Câmara. Antes disso, Bolsonaro postou no Twitter: “Esperamos que a Câmara não siga o Senado, mantendo a validade do nosso decreto, respeitando o Referendo de 2005 e o legítimo direito à defesa”. Prevendo uma derrota entre os deputados, o presidente revogou o decreto 9.875, mas o substituiu por outros três, muito parecidos com o anterior.
Sem rupturas
Pouco a pouco, passo a passo, sem grandes rupturas e sem tanques nas ruas, o autoritarismo furtivo ou sub-reptício de Bolsonaro destrói a democracia liberal constitucional. Essa sub-repção constitui um processo paulatino de corrosão do regime democrático por meio de medidas que, em um primeiro momento, não parecem manifestamente inconstitucionais ou antidemocráticas[2]. “A linha que separa democracias de não democracias nem sempre é clara”, afirma Adam Przeworski[3].
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O atual presidente brasileiro tem pinta de louco ou de burro, sustentam muitos – sem se darem conta, no entanto, da racionalidade oculta sob a sua suposta irracionalidade. A destruição da democracia, seu único projeto, depende do fim do debate público racional, diariamente eclipsado por fatos novos reiteradamente criados nas redes sociais ou em seu cercadinho no Alvorada. Essas cortinas de fumaça midiáticas não são fortuitas e despropositadas. Com elas, o presidente pauta boa parte da discussão política e produz as manchetes dos jornais.
Um louco ou um burro não seria tão metódico. Um louco ou um burro não seria eleito sete vezes consecutivas para o cargo de Deputado Federal. Um louco ou um burro não chegaria à presidência da República com dezoito segundos diários de televisão durante a propaganda eleitoral. Chamá-lo de louco ou de burro não ajuda, definitivamente, a compreender o atual momento político brasileiro.
De qualquer modo – louco ou não, burro ou não –, Bolsonaro representa uma ameaça concreta à democracia brasileira. Disso ninguém pode duvidar. Isso é possível dar de barato.
Marcel Mangili Laurindo, mestre em Sociologia Política e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
[1] Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 29.
[2] Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 211.
[3] Crises da Democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 51.