O Brasil debaixo de guarda-sóis
É na fotografia amadora de um recém-morto debaixo de mercadorias que vemos – tímido e espalhafatoso – o Brasil
A notícia é “velha” um homem sofreu um ataque cardíaco dentro de uma das lojas de uma grande varejista mundial e, uma vez morto, teve seu corpo escondido sob três guarda-sóis e entre uma pilha de seis andares de garrafas de cerveja, caixas de leite em pó e de alguns tapumes de papelão improvisados para que o fluxo de consumidores não fosse interrompido por algumas horas.
Tudo passaria despercebido para sempre se um entre as centenas que passaram por ali entre 7h e 11h não tivesse desconfiado e fotografado o disfarce para, então, publicar nas suas redes sociais. Mais do que isso, era necessária uma explicação, já que a imagem sequer supunha uma morte, mas apenas aquela paleta de cores típica das gôndolas dos supermercados, cartazes com preços em negrito dos produtos, outros tranquilos (e vivos) consumidores, uma outra caixa com o imperativo “Compre” e o rótulo inconfundível da marca de cerveja funcionando como lápide momentânea. Numa primeira mirada à foto, sem o recurso da palavra, o cadáver do homem não existe.
Perdido em meio ao caos de novidades e da tentativa da imprensa em dar conta delas, o acontecimento já foi esquecido, mas o frescor das suas inúmeras metáforas demorará a se acabar: é ali, naquela fotografia amadora de um recém-morto que não se vê debaixo de uma miríade de caixas e mercadorias de utilizações tão distintas dentro da propriedade de uma multinacional europeia bilionária, que vemos – tímido e espalhafatoso – o Brasil.
A começar pela atitude a priori, que não dá tempo a contrapontos de tão imediata que é, de preferir esconder um cadáver debaixo de guarda-sóis e caixas de estoque a fechar a loja por algumas horas e aguardar que os trâmites comuns a uma morte nos dias de hoje sejam realizados. Para além da imoralidade de uma varejista que inculca nos seus administradores a lógica de seguir operando mesmo diante de situações como essa está a imoralidade daqueles funcionários que, quando se viram de frente com um morto dentro da loja, tiveram como primeira reação tirá-lo das vistas do público – e não interrompê-lo momentaneamente.
O jornalista e professor Vinícius Prates lembrou bem da probabilidade de, agora, quando a notícia já é velha, que a rede de supermercados use a morte do homem como case de comunicação e “gestão”.
É a mesma atitude de um país que, em uma época em que mil pessoas morrem todos os dias por causa de um vírus desconhecido cuja transmissão é feita às cegas, prefere sublimá-los, esquecê-los ou até negá-los do que interromper seu cotidiano por um período de tempo para cumprir os protocolos como eles devem ser cumpridos. É a atitude a priori que existe nos indivíduos em uma necrossociedade.
Nela, é raro a morte ser uma interrupção, um acontecimento moral, uma suspensão da normalidade e do conforto, uma dor. Ao contrário, é um dos vários elementos do cotidiano, como ir ao supermercado e se deparar com um cadáver escondido debaixo de guarda-sóis ou ligar a televisão e ouvir que 415 pessoas morreram ontem de covid-19.
E esse é a segunda grande metáfora da imagem do homem morto dentro do supermercado: seu ataque cardíaco não pode competir em importância com o outro acontecimento que existe ali – a troca de mercadorias. Como é típico das metáforas, a imagem do cadáver escondido também possui dois outros seres humanos, estes vivos, conscientes, despercebidos de que ali, há alguns passos de distância, jaz um homem.
Da mesma forma, o coronavírus, a necessária quarentena, os seus mortos e doentes, não têm chance nenhuma diante do consumo como um pilar fundamental de sustentação econômica.
Qualquer discussão que teve a pretensão de igualar, em ordem de importância, a pandemia e a economia do consumo, existiu para fins que não eram, de fato, igualá-las (o governador de São Paulo comprou a briga por dois meses para se contrapor eleitoralmente ao seu atual desafeto político). Não à toa, não há mais discussão sobre isso: associações que representam bares e restaurantes já querem aumentar o número de mesas disponíveis a novos clientes enquanto fazem vistas grossas às aglomerações diárias nos estabelecimentos e, em paralelo, agências, empresas consultorias do setor de serviços comemoram o “contexto da pandemia” como ideal para “novas oportunidades de negócios.”
Mais do que uma crítica ao ato de consumir, é uma crítica ao edifício econômico que construímos ao longo dos últimos séculos, em que a ironia de chamar o mercado de “deus” ainda mantém tanto sentido. Agora, em uma pandemia que exige restrição de fluxos de pessoas – pelo óbvio motivo que elas podem estar infectadas e transmitirem o vírus para várias outras, muitas delas mais vulneráveis –, é fácil perceber, perdida nos pressupostos mais profundos das discussões dos especialistas sobre nosso futuro, a dificuldade em encontrar horizontes alternativos à sujeição ao mercado. É que se não colocarmos toda essa massa de gente para comprar mercadorias de todos os tipos para além de comida (de roupas a eletrodomésticos, de viagens a carros), não há massa de gente. Em outras palavras, sem o consumo de toda sorte de inutilidades, o que se enxerga é crise.
Então, vem justamente do mercado as investidas para que tudo volte ao (velho) “normal”. Nas capitais brasileiras, esse papel foi exercido principalmente pelos administradores de shoppings, mas também pela ânsia de um séquito de consumidores ansiosos por passar por cima dos mortos (como o homem do ataque cardíaco) e voltar às compras – sujeitos ao e do mercado.
A fotografia, porém, guarda muitas outras metáforas: os guarda-sóis – esses utensílios comuns a um país “tropical” –, as logomarcas das empresas a guardarem o túmulo clandestino, as cervejas, o homem absorto ao fundo, tudo se encaixando momentaneamente para nos colocar diante do espelho.
O desespero é que só a notícia é “velha”: o Brasil está morto debaixo de guarda-sóis.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social, mestrando do departamento de Sociologia da USP e professor do curso de Jornalismo da Universidade Paulista (UNIP).