O Brasil dos contrastes extremos
De um lado, direito à vida não reconhecido, fome e falta de vacina; do outro, 11 brasileiros bilionários na lista da Forbes
O isolamento social é a única arma que temos para segurar a disseminação do coronavírus enquanto a vacina não está acessível para toda a população, isso é o que mostra a prática ao redor do mundo e é a recomendação da Organização Mundial de Saúde. Mas ela só é possível se for acompanhada pela proteção social e econômica de trabalhadores informais, autônomos e os mais pobres. Ao analisar dados importantes no Brasil atual, temos as seguintes informações que se destacam: o número de pessoas que passam fome no Brasil quase chega a 117 milhões, patamar visto somente em 2004; em plena pandemia, Brasil ganha 11 novos bilionários na lista da Forbes.
Afinal, quem tem direito à sobrevivência e à proteção no país das desigualdades? O que dizer do número de 350 mil mortes, que aumenta dia a dia, e de uma curva acelerada de contaminações? Não há perspectiva de melhora a curto prazo e o mês de abril ainda nos reservará muitas tristezas.
Num dos países mais desiguais do mundo, o sétimo para ser mais precisa, no qual parte importante da população depende do trabalho informal diário para alimentar suas famílias – portanto, não tem garantias trabalhistas nem previdenciárias –, é inadmissível que o auxílio emergencial tenha sido interrompido em dezembro de 2020.
E isso aconteceu justamente no auge da pandemia, quando as pessoas estavam sem renda e sendo empurradas para transitar nas ruas em busca de sobrevivência. Como resposta, depois de muita pressão, o governo retoma o auxílio emergencial com três faixas de valor irrisório (R$150, R$250 e R$375) para, no máximo, 45 milhões de pessoas.
A renda digna, garantida por lei no ano passado, foi reduzida e tratada pelo presidente como um “quebra-galho”, que não cobre ¼ de uma cesta básica. No entanto, mesmo sabendo de tudo isso, o governo mantém seu discurso escorado no debate do ajuste e da responsabilidade fiscal.
Ao mesmo tempo e também no país das diferenças gritantes, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) apresenta o triste dado de que a fome cresce e, pela primeira vez em quase duas décadas, temos mais da metade da população sem garantia de comida.
Do total de quase 117 milhões que vivem algum tipo de insegurança alimentar, 19 milhões vivem a realidade da fome – número que é quase o dobro de 2018. Não há casualidade nesses dados. O número de brasileiros que solicitou o auxílio emergencial no ano passado chegou a 125 milhões, sendo que somente 67 milhões foram considerados elegíveis.
Apesar da grave crise humanitária que vivemos, o país das desigualdades reveladas através de uma das principais mazelas, a fome, também tem agora 11 novos bilionários na lista da Revista Forbes. Portanto, já dispomos de 30 brasileiros no rol dos que possuem fortunas que ultrapassam a casa dos bilhões. Esses novatos do clube exclusivo dos muito ricos têm, juntos, US $ 29 bilhões, quase R$ 164 bilhões de reais.
Esse valor corresponde a quase quatro vezes o teto estabelecido para que o conjunto da população sobreviva com alimento, gás de cozinha, moradia, luz e água por quatro meses.
É neste país de realidades tão díspares que recai sobre o ombro dos pobres a responsabilidade de fazer a economia girar, não deixar o país quebrar ou mesmo burlar as medidas restritivas, mesmo que isso signifique a possibilidade de contágio.
Afinal, quanto vale a vida de um pobre? Ainda mais quando esses pobres são, na maioria, mulheres negras? Os relatos que tenho recebido de pessoas que dependiam única e exclusivamente do auxílio emergencial para sobreviver e o perderam ou têm acesso a esses valores reduzidos são assustadores.
Não é mais possível aceitar que pessoas passem fome e sejam salvas hoje ou amanhã por doações e campanhas de arrecadação de alimentos. Embora justas, necessárias e salvadoras, como têm sido desde o início da pandemia, não podemos aceitar que se transformem em algo “natural”, colocando nas costas da sociedade o papel de amparo e proteção social que cabe ao governo porque é seu dever e direito de cada brasileiro.
É essencial a união da sociedade, dos movimentos sociais organizados, no campo e na cidade, das empresas e até mesmo desses bilionários que, tenho certeza, não se furtarão ao seu dever. Mas é preciso ir mais fundo, construir políticas estruturantes de combate à fome, proporcionando segurança alimentar e nutricional, associada a uma ampla proteção de renda emergencial que se transforme em uma renda básica permanente no país.
Começa um novo tempo em que finalmente conseguimos popularizar o debate da renda básica – mesmo que eu ainda sonhe que essa renda pode ser universal e incondicional. Precisamos popularizar e aproximar a população do debate de uma tributação mais justa, do fim dos paraísos fiscais e da cobrança de tributos sobre dividendos no Brasil. E, claro, perder o medo de falar da taxação das grandes fortunas!
Quem sabe, assim, consigamos enxergar que as 358 mil mortes poderiam ter sido evitadas! Por enquanto, lutaremos com todas as forças para que a população tenha o direito de viver…
Paola Loureiro Carvalho é assistente social e diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica – uma das organizações que faz parte da campanha #auxilioateofimdapandemia