O meio ambiente sob o comando do governo de Jair Bolsonaro tem inviabilizado os processos de controle pela sociedade brasileira. A postura do governo favorece apenas o poder econômico, especialmente segmentos mais retrógrados do agronegócio, alijando setores mais isentos, como movimentos sociais, organizações não governamentais e especialistas dos debates sobre os rumos da preservação ambiental no país.
Quanto maior é a influência do poder econômico em um cenário de fragilidade democrática, menor se tornam as possibilidades de concretização de uma democracia ambiental de caráter substantivo.
A democracia substantiva se caracteriza por possibilitar à sociedade civil plena participação social, formulando e acompanhando políticas públicas, com acesso total às informações governamentais e com capacidade de interferir proativamente no orçamento público, dando concretude aos direitos sociais e econômicos. É a democracia plena, indissociável do exercício efetivo do controle social.
O pleno controle social deve ser exigente, pois considera a indisponibilidade do interesse público e assim pugna, de forma permanente, pela conformidade das instâncias governamentais e legislativas.
Isso nos leva a refletir sobre o modelo democrático vigente no Brasil. Não houve possibilidade de controle social efetivo para impedir o que a ministra Carmem Lúcia, do STF, por exemplo, classificou recentemente como um estado de coisas inconstitucional.
Isso se deve à dois fatores: o primeiro, porque o Brasil não havia atingido um patamar de democracia plena, substantiva, uma prerrogativa de sociedades democráticas avançadas, caminho que o Brasil precisa construir. O segundo, porque as instituições que funcionam como freios e contrapesos, assim como as instâncias destinadas a manter a regularidade dos poderes constituídos, foram neutralizadas por uma conjuntura nociva de interesses econômicos e ideológicos personalistas, distantes da regularidade imposta pela Constituição Federal.
As salvaguardas que o povo brasileiro construiu sofreram um dumping, uma espécie de burla institucional que inviabilizou os mecanismos de controle social.
Basta olharmos para o poder instituído sob a ótica do sistema de freios e contrapesos preconizado por Montesquieu. O poder deveria controlar o poder, por meio de uma tripartição virtuosa entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. No caso brasileiro, tomando-se como exemplo a atual política ambiental, é evidente a captura do Executivo e do Legislativo, subjugados pela influência direta de um modelo de agronegócio atrasado e em desacordo com os princípios da proteção ambiental – e da própria modernidade exigida pelo regramento internacional do setor agrário.
Do outro lado da Esplanada, o terceiro poder, o Judiciário, vê-se em parte limitado por acolher representantes indicados recentemente pelo Executivo, que podem obstruir votações por meios regimentais.
John Locke, filósofo que influenciou os princípios das revoluções francesa e norte-americana, consolidou com Montesquieu os princípios para as democracias liberais. Alimentou, mesmo que de forma indireta, o formato do moderno Estado democrático de direito, na tese de que o dever de obter o bem do povo atribuído aos governos e legisladores não deveria ultrapassar seus limites – e que os conflitos deveriam ser solucionados por um Judiciário imparcial.
Nota-se ainda que houve incapacidade de correção, mesmo que em parte, das distorções institucionais por meio das instâncias recursais guardiãs da regularidade administrativa, como o Tribunal de Contas e a Procuradoria Geral da República. Nesse cenário, a área ambiental estatal, subjugada há três anos, continua em ritmo de desconstrução, com sua direção entregue à representantes oriundos do agronegócio.
O que dizer então das perdas na participação social, ou desta lamentável interrupção da consolidação de um modelo de democracia ambiental substantiva? Por menor que fosse essa efetividade nos anos anteriores a 2019, a lacuna que se abriu agora é abissal.
A primeira conferência das partes sobre o Acordo de Escazú (COP1), ocorrida em abril deste ano no Chile, demonstrou a paralisia ambiental do Brasil e seu isolamento no cenário internacional. O acordo foi protagonizado pelo Brasil em sua formulação e traz elementos vitais para o controle social, acesso à informação, participação social e justiça ambiental. Sem ratificá-lo, o Brasil sequer tem direito à voto.
O tempo urge no cenário global. Para enfrentar a conjuntura desafiadora deste início de Antropoceno o Brasil deveria estar estimulando correções no rumo de seu desenvolvimento. Envolver a força motriz da participação social direta, seja de cidadãos e/ou de organizações não governamentais com atuação na defesa prioritária dos interesses difusos, seria a melhor forma de potencializar as transformações desejáveis dos setores econômicos em direção aos princípios ESG (Environmental, Social and Governance).
O controle social é a bússola e o combustível das políticas públicas permanentes voltadas à sustentabilidade. Mantém ligações estreitas com a inovação e a pesquisa científica, com abertura para avançar para além das limitadas gestões políticas pontuais. Permite ainda lançar luzes sobre o “greenwashing”, evitando as burlas comuns dos faz de conta do mercado.
Vivemos tempos obscuros. Os instrumentos de gestão participativa encontram-se sob o controle do Executivo. Foram subvertidos os interesses legítimos da participação social e, em seu lugar, há um simulacro que produz efeitos perversos. Deu-se a neutralização, a desfiguração e a manipulação dos espaços públicos que deveriam estar destinados, democrática e constitucionalmente, ao controle social.
Os fatos demonstram que o Brasil enfrenta uma tempestade perfeita em sua democracia ambiental, uma vez que os bens indisponíveis e os direitos fundamentais tutelados pela Constituição Federal estão evidentemente vulneráveis diante de uma ascendência ao poder de interesses não republicanos.
Nada a ver com a Lei de Murphy. Seja nos atos ou omissões do Executivo, seja em iniciativas legislativas, não há episódios fortuitos. Há uma intencionalidade clara e onipresente de se fazer valer interesses setoriais que permeiam os bastidores do poder.
A democracia ambiental brasileira foi encurralada por um governo antidemocrático permeado por interesses que implodiram meios regulatórios, administrativos e operacionais da proteção ambiental. Isso vem gerando efeitos que demonstram um nível de desconformidade jamais visto nos ecossistemas essenciais do Brasil, como a Floresta Amazônica, cuja proteção se abriga na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) e na Constituição Federal.
Diante disso, é dever de todo cidadão, titular do direito e responsabilidade comum da proteção ambiental, demandar esforços para a correção dos rumos da destruição institucional, normativa e ambiental. Especialmente nesses momentos se aplica a observação de Edmund Burke: “Ninguém comete erro maior do que não fazer nada porque só pode fazer um pouco”.
As salvaguardas à disposição da sociedade para a manutenção da governança e da democracia ambiental revelaram lacunas que demandam reflexão para seu fortalecimento. Uma das lacunas é a forma de indicação do Procurador Geral da República, o fiscal da Lei, que deve ser realizada pela própria instituição, no sufrágio do voto de seus membros, que certamente saberão reconhecer entre seus pares os mais vocacionados para o exercício da função.
Outra lacuna é a falta de uma observação independente, contínua e qualificada sobre a integridade e o aprimoramento do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama). É imprescindível a criação de um mecanismo de controle social de caráter isonômico, independente, permanente e participativo.
É preciso reavaliar o sistema ambiental à luz da legislação nacional e internacional. Quais são os seus objetivos? O que determinam os tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil? Como deve ser, na atualidade, a normativa infralegal gerada pelo setor ambiental?
Para atender esses componentes obrigatórios, é preciso estabelecer a melhor conformação possível para os instrumentos de gestão do Sisnama, visando atender ao princípio da eficiência, o que inclui prover o sistema com a eficácia de meios operacionais.
Objetivos, indicadores, metas e prazos são parte imprescindível da boa política pública. As agendas temáticas setoriais devem ser obrigatoriamente contempladas pelo Sisnama. Há exemplos estruturados, consignados nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. No amplo pacto dos ODS, do qual o Brasil é signatário, estrutura-se uma espécie de bússola contemporânea para a sustentabilidade social e ambiental, com 17 temas desdobrados em 169 metas acordadas por 193 estados-membros da ONU.
Há ainda a necessidade de eleger prioridades. É preciso avaliar as perdas decorrentes da neutralização continuada das políticas públicas ligadas à proteção da saúde, da vida e dos ecossistemas essenciais. Destaco aqui os riscos associados à presença de agrotóxicos em alimentos e nas águas para abastecimento público, além da grande lacuna sobre adaptação e mitigação das mudanças climáticas, cujos efeitos passarão a assolar cada vez mais nossa realidade, representando sérios riscos especialmente para as comunidades mais vulneráveis.
Há de se priorizar o investimento em pesquisa e inovação, elementos essenciais para fortalecer a resiliência ambiental e econômica do Brasil, que vem sendo reduzido, de forma proposital, à condição primária e colonial de uma república das bananas.
Em suma, é preciso diagnosticar e aprimorar os meios de gestão e as agendas setoriais, integrando-os a um sistema de governança ambiental que contemple efetiva participação social. Só por meio da democracia substantiva o Brasil poderá, de forma permanente, gerar segurança social e ambiental, na plena realização de seu Estado democrático de direito.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).