O buraco sem fundo do rolê
O impulso imediato dos jovens que organizaram ou participaram dos rolezinhos foi se apresentar, dizer quem são e para que vieram. Não no intuito de se defender, e sim de dizer que são capazes de contar sua própria históriaLeandro Hoehne
(Jovens participam de rolêzinho no Shopping Itaquera, em São Paulo)
Já houve tempo suficiente para que todas as opiniões possíveis sobre o encontro de jovens batizado de “rolezinho” fossem espalhadas pela internet. Aconteceram os “rolezaum”, os “rolezinhos protesto” e abordagens específicas sobre personagens dos fatos, como os “famosinhos” e as “rolezeiras”. Assistimos à determinação de identidades instantaneamente definidas pela opinião pública. Análises taxativas que, na busca por certezas e explicações, navegam na superfície da análise, enquanto o momento se dá por sobreposição de contradições na sociedade como um todo, ao contrário do que desejam com assertividade as opiniões.
Este texto não pretende explicar o fenômeno, tampouco oferecer subsídios para legitimar seu papo no boteco. Opiniões são formadas com a mesma velocidade com que são veiculadas as notícias, sem que haja espaço para dúvidas, quase num impulso de defesa ideologizada, como quem defende seu time de futebol. Mas o buraco do rolê é mais embaixo, e talvez seja sem fundo. O início ninguém sabe determinar ao certo. A teoria hoje da grande mídia é a de que os rolês começaram com encontros entre os “famosinhos” – adolescentes que colecionam seguidores no Facebook – e suas fãs. Mas acredito que essa é mais uma tentativa explicatória da mídia do que necessariamente um estudo aprofundado do caso. Os rolezinhos estão atrelados a um complexo cultural maior, que, numa abordagem mais radical, retoma os bailes funk cariocas que na década de 1980 já escandalizavam a alta classe local. Na ocasião, o motivo de comoção geral era a liberalização do corpo, que se tornou ainda maior nas décadas seguintes. O Fantástico apresentava o cotidiano distorcido dos bailes como o lugar onde “mulher sem calcinha não paga”, com danças “senta, senta, senta” que faziam meninas aparecer grávidas em casa. Paradoxalmente, a mesma mídia capitalizava essa nova e lucrativa estética musical. Foi a própria Rede Globo que disseminou nacionalmente o ritmo pelo país, lançando atrações de funk nos programas da Xuxa, Luciano Huck e Faustão. É o toma lá dá cá midiático que criminaliza de um lado, agradando à elite conservadora, e populariza de outro, mantendo a audiência popular. Lucra-se dos dois lados.
Desde então, o funk e seus desdobramentos culturais e comportamentais são eleitos à marginalidade por diversos setores da sociedade. Os anos se passaram e a internet, nas redes sociais e smartphones, assume o protagonismo com seu poder de criar espaços de realidade paralela. Nunca antes na história mundial tínhamos experimentado de forma tão potente a ideia de que o espaço virtual é um espaço real, como sugere Pierre Lévy, e que o mesmo se dá em suas próprias lógicas organizacionais que uma hora ou outra se interseccionam com o “espaço real” a que estamos habituados. Os bailes não são mais os mesmos, e a cultura funk ganha outras dimensões, muitas das quais inacessíveis sobretudo à grande mídia, cada vez mais segregada de espaços de fruição cultural independente. A internet, as redes sociais, as redes de produção criativa, os circuitos de bailes, festas e saraus apresentam outra dinâmica à periferia urbana, onde a mídia tradicional está fora. Se outrora os fenômenos culturais periféricos foram intencionalmente ignorados por jornais, telejornais, revistas e guias culturais, hoje são estes os ignorados pela cultura das bordas.
Se a cultura periférica em sua complexidade e seus sujeitos são desconhecidos da grande mídia, logo também ficam desconhecidos da maior parte da sociedade, pois, sendo outra a lógica de produção e difusão das linguagens marginais (e marginalizadas), não é possível que sejam acessadas pelos mesmos meios tradicionais de informação. Hoje não é mais necessário que a Xuxa protagonize o lançamento de um novo MC para que ele tenha sucesso, dinheiro e fama. Em minutos um novo videoclipe está em todos os celulares via WhatsApp, com comunicação simultânea dos fãs, famosinhos e rolezeiras.
Portanto, é necessário pensar o rolezinho como parte de um complexo processo cultural da juventude que se afirma não enquanto uma identidade definitiva, mas uma identidade em constante e veloz transformação. A única certeza é de que existem desejos, mesmo que estes sejam fabricados por um estado de coisas, a partir de valores de consumo e trandmarks. O impulso imediato dos jovens que organizaram ou participaram dos rolezinhos foi se apresentar, dizer quem são e para que vieram. Não no intuito de se defender, e sim de dizer que são capazes de contar sua própria história. Tanto o mercado midiático quanto a sociedade não estão preparados para isso, para essa autopoiésis. Quem se atreve a se criar? Os jovens do rolezinho, sem saber, colocam uma discussão crucial, que é a ocupação do espaço da cidade sem a cisão do que seria espaço público e espaço privado. Eu ocupo qualquer espaço coletivo, inclusive os templos privados do consumo, por que não? Talvez, mesmo que inconscientemente, eles tenham conseguido trazer à tona o que Milton Santos discute como sendo os espaços de convivência, uma vez que suas identidades determinadas por um Estado capitalizado para uma sociedade do consumo os colocam determinados a ser sujeitos consumidores e conviver exclusivamente em espaços do e para o consumo. Paradoxalmente, a sociedade e o Estado que educam esses jovens para cumprir seu papel consumidor também são aqueles que os incriminam quando ocupam o espaço para o qual foram estimulados – “como assim não podemos ir ao shopping?”. A resposta dada pela sociedade não são desdobramentos de questões, mas afirmações duvidosas cujo incômodo em não possuir ferramental para respostas eficientes gera reações conservadoras de manutenção da ordem para contenção do diferente.
Enquanto mais rolês são agendados diariamente no Facebook, expressão cultural, criminalidade, mercado, consumismo, luta de classes, desigualdade econômica, privatização do território, liberdade de expressão, moral etc. se misturam em opiniões que buscam acertar o centro do alvo, quando deveríamos procurar pelas questões alvejadas das periferias. É preciso que se estabeleçam outros paradigmas para olhar a questão, ou ficaremos reproduzindo discursos totalizantes que determinam para esses jovens, como bem observou o professor Alexandre Barbosa Pereira,1 apenas três perspectivas – bandido, vítima ou herói –, numa dramatização telenovelística da sociedade da pior qualidade. Ou podemos partir de outra premissa, como colocado por Gil Marçal2 – diretor da área de cidadania cultural da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo –, que sugere que o rolezinho é “mais simples do que parece” e atenta para “que o que os motiva são as ‘curtições’, ‘se divertir’, ‘pegar geral’, ‘beijar’”… Então devemos pensar se, mais uma vez, não estamos lidando com a juventude como um problema negativista, enquanto, numa inversão lógica, existem possibilidades de questionamento crítico no resto todo.
Vamos nos fazer perguntas?
Leandro Hoehne é artista do Grupo do Balaio e desenvolve trabalhos sobre juventude, cultura e política na periferia de São Paulo. É um dos articuladores-fundadores da Rede Livre Leste e colabora com outras redes e movimentos culturais de periferias brasileiras. Foi recentemente indicado ao Prêmio Cidadão Sustentável na categoria Intervenções Urbanas.