O calcanhar de Aquiles das democracias autoritárias
A prisão de Julian Assange é uma resposta institucional de blindagem de um status quo marcado pelo agudo conflito entre segredo incondicional e revelação escandalosa. O WikiLeaks – fundado por Assange – vazou centenas de documentos que comprovam a morte de civis por soldados norte-americanos em diferentes guerras, entre outros documentos considerados secretos pelo governo dos EUA
A comunidade internacional escolheu o último 25 de fevereiro para unificar esforços em favor de Julian Assange. O ciberativista australiano, fundador do WikiLeaks, é um preso político desde 2010. Após viver asilado na Embaixada do Equador em Londres durante sete anos, o mais famoso e perseguido programador de computador deste século foi, após autorização da Embaixada, retirado do imóvel pela Polícia Metropolitana, em 11 de abril de 2019, e conduzido a um estabelecimento policial no centro da cidade. Desde então, o jornalista, natural de Townsville, permanece sob custódia da Scotland Yard, na prisão masculina de segurança máxima de Belmarsh, em Thamesmead, sudeste de Londres. O desenvolvedor de software livre, nascido em 3 de julho de 1971, aguarda o julgamento definitivo sobre a apelação dos Estados Unidos para que ele seja extraditado para o país.
A condição de asilado, interrompido pelo governo do Equador sob a alegação de que Assange infringiu convenções diplomáticas e determinações legais do país, não deixou de ser uma espécie de “prisão domiciliar”. Assange não podia sair das dependências da Embaixada: o trânsito para os logradouros britânicos daria à Polícia Metropolitana londrina a prerrogativa jurídica de prendê-lo imediatamente, a pedido dos Estados Unidos e da justiça britânica (neste caso, por ele ter descumprido termos de sua liberdade provisória no país). Em fevereiro de 2016, a Organização das Nações Unidas (ONU) se pronunciou a respeito, defendendo o direito de ir e vir do refugiado sem ameaça à sua liberdade.
Desde então, diversas manifestações e protestos em prol da vida de Assange foram observados no Brasil e em várias metrópoles no mundo inteiro. A indignação generalizada atou o absurdo internacional da situação ao arruinamento da liberdade de imprensa e de expressão. Organizações jornalísticas e de defesa de direitos humanos e civis, como a Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a Anistia Internacional (AI-USA), a Human Rights Watch (HRW) e a Electronic Frontier Foundation, entre mais de 20 outras, bem como advogados, jornalistas e escritores exigiram à Presidência e ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos a suspensão das acusações, a fim de que o processo judicial seja encerrado. Documento endereçado ao segundo órgão, em 08 de fevereiro de 2021, argumentou, com acerto, que a incriminação de Assange feria completamente a atividade de imprensa em âmbito global.
Cerca de dois anos antes, Kristinn Hrafnsson, editor-chefe do WikiLeaks, havia afirmado à Agência Pública que a permanência da acusação contra Assange significava que “nenhum publisher, nenhum editor, nenhum jornalista está a salvo em lugar nenhum do mundo.”2 Acima de tudo, a força do WikiLeaks depende da garantia de proteção à fonte, preceito de anonimato há muito internacionalmente reconhecido, em regimes democráticos, como base sine qua non do trabalho da imprensa. Por óbvio, essa necessidade essencial independe de o WikiLeaks ter sido política e judicialmente acusado de falhar no gerenciamento do anonimato de seus informantes, colocando vidas em risco.
Em dezembro de 2020, a ONU, através de relatoria independente para direitos humanos, enviou carta aberta à Presidência dos Estados Unidos pedindo que o ciberativista australiano fosse perdoado.
Incriminação
O WikiLeaks é uma organização mediática multinacional, sem fins lucrativos, interessada em revelar materiais secretos ou restritos, especialmente abrangendo guerra, espionagem e corrupção. Criado em 2006 por Assange, com apoio de outros ativistas, o WikiLeaks mantém relações formais com mais de 100 órgãos de mídia em diferentes países.
Em 2010, a organização vazou centenas de milhares de arquivos considerados confidenciais e secretos pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. O lote incluiu informações sobre as guerras contra o Afeganistão (2001-2021) e contra o Iraque (2003-2011). Os volumosos leaks [vazamentos] contaram com a colaboração do whistleblower Chelsea Manning, ex-soldado e ex-analista de inteligência do Exército estadunidense.
A visibilidade pública do material foi considerada crime de violação da Espionage Act [Lei de Espionagem] e da Computer Fraud and Abuse Act (CFAA) [Lei de Fraude e Abuso de Computadores] do país. Ao todo, 18 acusações criminais, entre elas de conspiração, podem condenar Assange a 175 anos de prisão.
O conjunto de documentos vazados sobre as duas guerras patenteiam que há crimes, o material incluiu informações sobre centenas de milhares de civis mortos e feridos, sobre tortura de detentos pelo aparato repressivo do Iraque e sobre a eliminação de inimigos rendidos, em claro descumprimento ao direito internacional; e um registro em vídeo do disparo de metralhadora no helicóptero estadunidense contra civis e jornalistas no subúrbio de Bagdá.
Entre muitas outras publicações, o WikiLeaks, em sua trajetória, vazou documentos referentes a torturas e outras formas de coerção contra presos na Baía de Guantánamo, de 2002 a 2008.

Prisioneiro de transparência
A condição de Assange como preso político tem características específicas. O criador do WikiLeaks é um prisioneiro de transparência. Do ponto de vista político, o conceito de prisioneiro de transparência – ou encarcerado por atos de desvelamento de informações ocultas – se subordina ao (ou mantém afinidade com o) de prisioneiro de consciência. Ambos, por sua vez, se enquadram no de preso político.
O encarcerado por transparência é um preso político típico da cibercultura, a civilização cujo desenvolvimento social depende da utilização de tecnologias digitais e redes interativas em todos os setores.
A perseguição contra Assange e seu aprisionamento são respostas institucionais de blindagem peculiar de um status quo marcado pelo agudo conflito entre segredo incondicional e revelação escandalosa. Essa repressão judicial e policial tem como alvo principal atos dedicados a revelações online velozes de conteúdos oclusos e importantes para a sociedade – atos não previamente interceptados e/ou neutralizados por mecanismos de velocidade iguais ou equivalentes. O produto do leaking, esboroando a linha do interdito, desemboca na mão de bilhões de pessoas, via smartphones e tablets, antes da imprensa televisiva, radiofônica e impressa.
Prisioneiros de consciência são pessoas encarceradas ou forçadas a situações constritivas similares em razão exclusivamente de sua origem étnica, cor de pele, gênero, idioma, convicções, inclinação religiosa e/ou orientação sexual. O advérbio em itálico evita dubiedades: a repressão recai sobre a condição existencial da vítima, bem como sobre sua vida espiritual e seus cultivos simbólicos sem exercitação de (ou apoio a) violência conexa (física ou imaterial). Em geral, a manifestação pública ou privada dessas convicções e crenças é tomada como confronto com os regimes políticos dos países onde os presos vivem ou viveram. Como elas têm força de ethos (isto é, um modo de ser e estar no mundo), basta, em muitos casos, que apenas existam para ceder invariavelmente pretextos esperados pelos sistemas institucionais, judiciários e policiais desses regimes. O sofrimento corporal e psíquico do prisioneiro de consciência se enquadra no conceito internacional de tortura e/ou de tratamento cruel ou desumano.
A expressão prisoners of conscience foi cunhada por Peter Benenson. Em maio de 1961, o advogado inglês publicou um artigo na primeira página do The Observer Weekend Review, intitulado The forgotten prisoners [Os prisioneiros esquecidos]. Benenson elencou casos de violação de direitos básicos de vítimas pacíficas em vários países; e desencadeou o “Appeal for Amnesty, 1961” [Apelo à Anistia 1961], em nome de um grupo de advogados, escritores e editores londrinos.
Seis meses antes da publicação do artigo, dois estudantes foram encarcerados e condenados a sete anos de prisão em Portugal. O “crime” cometido: brindar à liberdade, com taças, num restaurante em Lisboa, à sombra das masmorras salazaristas. O absurdo autoritário inspirou um grandioso projeto de contradito: a campanha pacifista de Benenson culminou na fundação, na Inglaterra, da Amnesty International. A AI, Nobel da Paz em 1977 e hoje presente em mais de 150 países, é uma organização não-governamental e sem fins lucrativos dedicada à assistência a prisioneiros com o perfil e na condição mencionados, bem como à promoção e defesa transfronteira dos direitos humanos.
Atualmente, há milhares de prisioneiros de consciência no mundo. Guardados os traços contextuais e característicos anteriores, o encarcerado por transparência é, enfatize-se, um tipo específico de prisioneiro de consciência. Encarcerados por transparência são pessoas submetidas à privação de liberdade a mando de governos ou Estados por trazerem à tona, sem violência física, o que confronta interesses hegemônicos e/ou legislações (como a de segurança nacional) e que, ao mesmo tempo, interessa a determinada sociedade, à opinião pública de um conjunto de países ou ao mundo. Presos por atos de transparência são cidadãos perseguidos por lançarem luz ao que, de outra forma, ficaria vedado ao olho público e a amplo acesso, fora da história (temporária ou vitaliciamente); numa palavra, por darem legitimamente visibilidade ao “proibido”, isto é, a segredos que conveniências institucionais tornaram sensíveis, colocando-os no centro da mesa de discussão, como pauta principal, e permitindo que os meios de comunicação e a opinião pública tomem posição a respeito. No caso do WikiLeaks, contam-se, entre esses segredos, crimes de guerra, práticas de corrupção e violações aos direitos humanos.
Esses profissionais efetivam, com intrepidez, o preceito da democracia relativamente a uma prática tão trivial quanto livre de controvérsia em tempos de mobilidade digital e interativa: o de fazer circular representações sobre fatos por meio de disponibilização e/ou irradiação online, como forma de liberdade de expressão. A coragem envolvida no exercício dessa liberdade, no entanto, realiza mais: a contribuição política à veracidade factual articula o estouro do inédito à alforria do acorrentado. Com notável militância, os prisioneiros de transparência cumprem-no sob a égide e em prol de direitos humanos, políticos e civis.
Segundo a regra repressiva da ordem, o incômodo político e social causado é tão vultuoso que a inteligência estratégica e o conhecimento pragmático do acusado precisam ser calados com isolamento físico da sociedade. Nesse litígio, o protofascismo de governo ou Estado recai sobre a cabeça, sobre a boca e sobre a atuação da vítima, visando atingir não somente sua operação e circulação, como também sua imagem, sua honra e sua vida (tanto a presente e futura, quanto a passada). Do ponto de vista do exercício (profissional ou não) da liberdade de expressão, a covardia das instituições (políticas, judiciais e policiais) põe à mostra, na verdade, não seu poder de domesticação, mas uma mescla veemente de temor e fragilidade sistêmicos.
A missão sociopolítica do prisioneiro de consciência aproxima-o da missão do jornalismo. O encarcerado pertence à história dos trabalhadores dessa área internacional de conhecimento e atividade, desempenhando o mesmo combate democrático a todas as formas de autoritarismo e cerceamento de liberdades civis. A diferença básica, entre outras, é que a atividade noticiosa soma, invariavelmente e, não raro, por dias ou meses, recursos informativos e/ou explicativos ao conteúdo divulgado. O prisioneiro por transparência, ao contrário, retira dados da escuridão informática (por vezes, imoral), com a ajuda de whistleblowers (informantes-denunciantes e repassadores desses dados), e os entrega à luz pública online, em bloco único ou em série, com uma apresentação ou descrição do material, a título de contextualização, acompanhada ou não de análises e artigos de opinião.
Há, porém, algo mais peculiar. A condenação prévia imposta a Assange e, por extensão, ao WikiLeaks liga-se umbilicalmente a um pomo exponencial e pouco priorizado: a velocidade.
O WikiLeaks é um órgão de comunicação com reverberações estrepitosas mão a mão, cabeça a cabeça, ali onde o imaginário político, a infraestrutura tecnológica e o know-how acumulado dos governos, Estados e companhias privadas não alcançam. Numa metáfora a tintas calcadas, o leak é altamente radiativo: revelando vísceras supostamente indevassáveis, tem efeito similar, no plano simbólico, ao de um descuido nuclear. Instantânea, a transparência típica do leaking escandaliza consequências a longo prazo.
O fundador do WikiLeaks é um prisioneiro de velocidade; e só o é porque, antes, amarga cárcere como militante da transparência digital e interativa. Precisa, assim, ser o quanto antes exorcizado – com cela, dizem interesses contrariados do status quo – o fantasma da espiral veloz, desencadeada por quem detém a chave operacional dos bunkers, porões e gavetas do establishment – de novo, ali onde as forças de inteligência e de repressão não conseguem interceptar, nem impedir por antecipação. Assange é o “bode expiatório” internacionalmente construído para sinalizar que o WikiLeaks e seus milhões de seguidores e simpatizantes ao redor do mundo animam perigo público central – o perigo da velocidade solta, indomável. Neutralizá-lo, sob todos os álibis legais e morais, é tão prioritário quanto debelar o terrorismo. O vexame da previsão seletiva dessa cobaia expiatória perde origens na antiguidade remota: visa impor, pela ameaça local e pelo medo espalhado aos quatro cantos, a imagem do que pode ocorrer com quem ousar fazer o mesmo.
O calcanhar de Aquiles das democracias informatizadas
Sob a sanha autoritária de Estados democráticos ocidentais, a paranoia em relação ao leak e à hiperfragilidade do status quo informatizado vitima duramente militantes da visibilidade irradiada na época da cibercultura.
Assange é o prisioneiro de transparência e de velocidade internacionalmente mais conhecido. Sua trajetória torna improvável que outros libertários digitais não estejam por vir e sejam encarcerados. O WikiLeaks é a primeira máquina global de desvelamento digital eficiente contra ações de Estados, governos e empresas que confrontam, com oclusão de informações, o princípio do interesse público.
A condição do jornalista australiano é o calcanhar de Aquiles das democracias ciberculturalmente mal resolvidas. Ela demonstra a taxa permanente de tolerância institucional zero para com a divulgação de fatos verazes e absolutamente chocantes.
A acusação contra Assange, além de peça jurídica de valor ultraconservador e extemporâneo, é eticamente reprovável, senão institucionalmente cínica. Os fatos justapostos no tópico II acima afastam dúvidas. O programador de computador foi incriminado por violação a leis nos Estados Unidos e no Reino Unido, jamais por ter divulgado documentos mentirosos, empenhado falso testemunho, omitido seu nome no vazamento ou afrontado e injuriado autoridades de governo e de Estado que pretendiam deixar fatos inadmissíveis na escuridão para o resto da história. Salvo melhor constatação em contrário, em nenhum momento foi negada a veracidade do material publicado pelo WikiLeaks.
Legislação que veta acesso a material de valor histórico-social ou coletivo deveria ser indexada como delito inaceitável do Estado democrático. Em via reversa, a denúncia dessa incongruência presta sempre serviço à história da liberdade de contradito.
O chamado “caso Assange” indicia negativamente o grau de qualidade e maturidade dos regimes políticos implicados. Em democracias maduras em matéria jurídico-política de respeito à liberdade de imprensa e de expressão, Assange jamais seria refugiado ou preso político. Continuaria a suceder com ele o que a equipe do WikiLeaks obteve de 2008 a 2015: 17 prêmios e reconhecimentos, uma nomeação ao Prêmio Nelson Mandela da ONU e seis indicações ao Prêmio Nobel da Paz (de 2010 a 2015).
Igualmente, o destino de Assange emparelha o destino não somente do modelo estabelecido de regimes democráticos informatizados, como também da ideia de democracia como valor universal. Esse vínculo essencial ilumina o presente: Estados de Direito que coagem, perseguem e/ou encarceram profissionais por atos de transparência tendem a premiar quem “anda na linha” e bajula o status quo – e, ainda assim, desde que não vacile, para não sofrer decapitação simbólica, atrás das grades.
Tal nível institucional depreciado escancara-se pelo conjunto de tentativas de morte física e simbólica sofridas pelo editor australiano. Em 2017, o serviço secreto dos Estados Unidos o ameaçou de morte por envenenamento. Ainda durante sua estada na Embaixada do Equador em Londres, o acusado de espionagem pelos Estados Unidos foi espionado 24h por dia por microcâmeras instaladas em seu aposento. A tentativa de incriminá-lo por estupro e molestamento sexual na Suécia, a partir da denúncia de duas mulheres do país em 2010, mostrou-se, ao fim e ao cabo, sem efeito. Após cinco anos de investigação, o processo foi arquivado pela Procuradoria da Suécia.
Acima de tudo, o sofrimento pessoal de Assange, com saúde vitimada por isolamento contínuo, espelha o drama da liberdade de imprensa e de expressão em tempos irreversíveis de redes interativas. O criador do WikiLeaks paga no próprio corpo, no reduto de uma vida individual permanentemente ameaçada, pelo antagonismo agudo que, no caso, evadiu-se do terreno convencional do conflito de classes para se embeber das oscilações cruéis entre segredo e revelação via ciberespaço.
Eugênio Trivinho é professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).