‘O caldeirão da Velha Chica e outras histórias brasileiras’: entre fomes e banquetes
Novo livro de Alexandre Staut coloca a comida como protagonista e apresenta histórias repletas de curiosidades, ritos, encontros e desencontros
Gosto dos livros de difícil definição. Desses que transitam entre diferentes gêneros e são, em algum sentido, subversivos. O caldeirão da Velha Chica e outras histórias brasileiras, da editora Folhas de Relva, a nova obra do escritor e editor, Alexandre Staut, é um ótimo exemplo disso. Por meio de crônicas, contos, textos jornalísticos e até mesmo uma novela, a obra coloca a comida como protagonista e apresenta histórias repletas de curiosidades, ritos, encontros e desencontros.

A divertida epígrafe escolhida – “Quem não sabe cozinhar, seja por instinto ou com a ajuda de um caderno de receitas, está condenado a lavar a louça” (Julian Barnes, em O pedante na cozinha) – já prenuncia que o humor terá espaço no livro. Ao mesmo tempo, as situações inusitadas e a capacidade do autor de descrever ambientes, cheiros e sabores transportam os leitores e leitoras para diversos lugares do planeta e permitem que eles e elas vivenciem experiências profundas e singulares.
Os encontros com os povos originários na primeira parte do livro demonstram isso muito bem. Mas não só. Ao longo de toda a obra, existem diálogos que introduzem novas perspectivas sobre o preparo de alimentos e hábitos como sentar-se à mesa. Nas histórias, chefes de cozinha, guias espirituais, personalidades do universo das artes (como o escritor Milton Hatoum) e pesquisadores transmitem conhecimentos de forma orgânica, longe de didatismos ou verdades absolutas.
Os relatos e diálogos – ambos elaborados a partir do uso perspicaz de elementos do jornalismo literário – são bem construídos, horizontalizados e autênticos. Abrem espaço para as receitas centenárias, mas também para a comida macrobiótica. Dão voz a quem tem tanto a dizer, não só sobre culinária, mas também sobre a condição humana.
Os textos funcionam como um retrospecto da vida do autor. Abordam sua relação com o jornalismo, a culinária, a literatura e, principalmente, a inquietude. Alexandre Staut vai de um ponto a outro, se perde, se reencontra, tem epifanias e percebe os aspectos mais subjetivos de cada prato que saboreia.
Como excelente ficcionista que é, ainda presenteia leitores e leitoras com A fome, uma novela de quase 100 páginas, descrita como uma distopia em forma de diário. O texto evidencia desigualdades, alerta para a escassez e chama a atenção para algo que o neoliberalismo insiste em ignorar: a natureza pede socorro.
Obra finalista do Prêmio de Não Ficção Latino-Americana Independente, O caldeirão da Velha Chica e outras histórias brasileiras não é um livro de receitas, nem um guia dos curiosos, mas sim um mergulho profundo em elementos únicos do universo culinário.
O autor reúne histórias relevantes e surpreendentes, que só poderiam ser contadas por um escritor sensível, atento e disposto a desvendar todas as nuances que um alimento pode trazer. Uma leitura leve e impactante, dessas capazes de mudar para sempre os pontos de vista de alguém sobre determinado tema.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá), Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e De repente nenhum som (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.
Se o texto de apresentação do Caldeirão é uma bela crônica, imagino os jantares e os sabores virtuais que virão do cardápio da velha Chica. Despertou o apetite.