O caldeirão das disputas políticas
Em um país no qual o guia religioso detém o controle absoluto sobre as instancias de poder, a eleição para a presidência é um respiro de democracia, em que o voto universal direto ganha força. Dessa vez, o processo não transcorreu exatamente como os líderes planejaram e terminou explicitando o conflito pelo poder
“Não se trata de pessoas no fim do mandato que tem apenas alguns meses pela frente. Se preparem para mais cinco anos de exercício.” Foi assim que, nove meses antes da eleição geral de 12 de junho de 2009, o aiatolá Ali Khamenei explicitou para vários membros do governo a sua preferência pelo prolongamento do mandato de seu protegido, Mahmoud Ahmadinejad. Khamenei cumpria a sua responsabilidade de Guia na crise atual: decidiu reforçar sua autoridade e se livrar de todos os adversários, mesmo no seio do poder.
A eleição presidencial de 2005 tinha aberto essa possibilidade. Depois de dois mandatos do presidente Mohammed Khatami, a desilusão do povo era grande: os reformistas tinham aumentado o campo das liberdades, mas se mostravam incapazes de resolver os problemas econômicos e sociais do país.1 Oito candidatos foram autorizados a concorrer no pleito e, apesar de uma participação relativamente importante dos eleitores – 62,8% –, nenhum deles conseguiu maioria. Pela primeira vez, o Irã teve um segundo turno. Ahmadinejad, o prefeito de Teerã, conseguiu apenas 5,7 milhões de votos sobre o total de 29,4 milhões. Mas diante das divisões dos candidatos do campo reformista e da impopularidade de outro pretendente, Ali Akbar Rafsandjani, Ahmadinejad passou para a etapa seguinte do pleito. Sempre beneficiado pelo apoio de órgãos militares, de segurança e de propaganda, além de lucrativas fundações de caridade que dependem do Guia, ele se apresentou como o homem da ruptura. Ahmadinejad tinha construído um discurso populista em torno da palavra “justiça”.
Quatro anos mais tarde, Ahmadinejad cumpriu bem sua missão: bloquear o caminho da reforma e marginalizar Rafsandjani, antigo aliado do Guia e que se tornara inoportuno. Contudo, sua retórica diplomática belicista e sua gestão econômica catastrófica deram origem a uma ampla coligação – do topo do poder até à base da sociedade –, hostil à renovação de seu mandato. Mesmo o grupo fundamentalista Ossoul Garayan, que tinha apoiado Ahmadinejad no segundo turno de 2005, expressou suas reservas à reeleição. Todavia, as pretensões de dois dos homens mais próximo de Khamenei – Ali Larijani, presidente do Parlamento, e Mohammad Ghalibaf, prefeito de Teerã – de se apresentar às eleições presidenciais de 2009, se chocaram diretamente com as intenções do Guia.
Nessas condições, a candidatura de Khatami provocou grande entusiasmo, que ilustra sua curta campanha no mês de março de 2009 nas províncias do sul. Ele recebeu então violentos ataques da imprensa governamental. O jornal Keyhan, sob vigilância do seu diretor – representante pessoal do Guia, diga-se de passagem – não hesitou em predestinar para Khatami o destino de Benazir Bhutto, a candidata paquistanesa assassinada antes mesmo do dia das eleições. Sucessivamente a essas ameaças e diante da negação do Guia em condenar a mídia estatal, Khatami decidiu se retirar da competição, evitando assim uma colisão frontal com o regime.
Foi quando Mir Hossein Moussavi, o último primeiro-ministro do Irã, entre 1981 e 1989, resolveu se apresentar como o candidato do compromisso, como “o reformador que se apoia sobre os fundamentos da revolução islâmica”. Ele quis juntar não somente os reformistas, mas também uma parte do Ossoul Garayan, que se recusava a afiançar um segundo mandato de Ahmadinejad. Tendo dirigido o governo durante a longa guerra contra o Iraque e participado das principais decisões do novo poder após a revolução de 1979, Moussavi é tudo menos um “liberal ocidental”. Tanto que os Estados Unidos já o acusaram de ter patrocinado o atentado contra o quartel-geral da Marinha americana em Beirute, em 2003, que deixou mais de 240 mortos. Todavia, ele parece ter ressurgido mais maduro e, como vários atores da revolução, pensa que o regime deve se adaptar. O Guia, porém, não compartilha esse mesmo pensamento.
Manipulação dos prazos
Ao saber do intuito de Moussavi, o Conselho de Guardiões da Constituição, encarregado de selecionar os candidatos “aceitáveis” para a presidência, e cujos oito membros sobre dez proclamaram sua preferência por Ahmadinejad, procurou ganhar tempo. Todos os prazos foram prolongados, numa tentativa de manter a incerteza e limitar ao máximo o tempo de campanha dos pretendentes. Enquanto isso, o presidente corria todo o país, com o apoio de órgãos de imprensa e de organizações ligadas ao Guia, além dos recursos do Estado. Foi apenas no último dia de prazo legal que o Conselho validou quatro candidatos.
Os arquitetos desse esquema creem ter previsto tudo. Eles deixaram para a competição dois candidatos reformistas, Moussavi e Mehdi Karroubi, ex-presidente do Parlamento, que deveriam adotar posições mais neutras. Além deles, foi escolhido um conservador, Mohsen Rezai, antigo chefe dos Guardiões da Revolução, que se apresentaria como postulante independente.
Assim, com todas as cartas supostamente marcadas, o Irã entrou em uma curta campanha eleitoral de 22 dias. Porém, a corrida pela presidência logo começou a mexer com os planos dos seus organizadores e provocou um abalo sísmico no interior do regime. Antes da abertura oficial da campanha, a rádio e as emissoras de televisão não tinham acordado ceder qualquer tempo no ar aos candidatos reformistas. O que não as impedia de julgá-los diariamente, relatando suas desavenças internas, verdadeiras ou imaginárias, e sem jamais lhes conceder direito de resposta. Esperando dar conta rapidamente da demanda por uma discussão mais aprofundada, a rede de TV nacional marcou uma série de debates ao vivo entre os competidores. Por acaso do sorteio proposto pelos produtores do programa para atribuir uma cor aos logos televisivos de cada candidato, o verde foi atribuído a Moussavi. Ele se tornaria, em seguida, aquele da “revolução verde”.
No curso dessas emissões, o plano inicial começou a se esfacelar. Desde os primeiros debates, Ahmadinejad escolheu o ataque como forma de defesa. A vivacidade sem precedentes das polêmicas quebrou a estreiteza política da República islâmica. Para acompanhar as discussões, dezenas de milhões de telespectadores ficaram acordados até tarde da noite. No ar, as autoridades mais eminentes foram acusadas de corrupção e o presidente acabou taxado de mentiroso. Por outro lado, Rafsandjani foi publicamente criticado por Ahmadinejad, ao ponto de escrever, depois, uma carta pública de protesto ao Guia.
Os debates revelaram o desejo de liberdade dos iranianos. Tudo se passava como se a sociedade operasse subitamente sua mutação democrática. Os temas bélicos e os dogmas habituais do discurso oficial, de repente, soavam falsos. Forçado a sair dessa retórica, Ahmadinejad usou números e indicadores econômicos rapidamente denunciados como manipulados pelos adversários, que conseguiram ainda levantar o problema da inflação e do desemprego, fazendo um balanço catastrófico da economia.
Com o ardor da disputa, crescia a sensação de que a participação eleitoral seria forte. Isso não colocaria somente em perigo o plano do Guia, mas também explicitaria uma contradição fundamental do regime islâmico: a sua dupla legitimidade. A situação foi bem ilustrada em um desenho publicado pelo Internacional Herald Tribune de 24 de junho, mostrando o aiatolá Khamenei diante de dois eleitores com a seguinte legenda: “A teocracia explicada, Você vota e Deus decide”. Com efeito, o anteprojeto submetido à primeira Assembleia Constituinte, em 1979, tinha previsto a implantação de um poder presidencial saído da soberania popular (artigo 6). Mas, em nome da soberania divina, os representantes ali presentes, em sua maioria ligados à religião, tinham imposto uma tutela religiosa (artigo 5) ao Estado. O essencial dos atributos concretos do presidente da República estava, assim, confiscado por um Guia dotado de controle absoluto sobre os três poderes (artigo 57).
É o Guia quem define o quadro geral dos políticos da República (ler box acima). Ele é o comandante-em-chefe das Forças Armadas; declara a guerra e a paz; decreta as mobilizações gerais; decide a organização dos referendos; nomeia os membros religiosos do Conselho de Guardiões da Constituição; é responsável pelo Poder Judiciário; o diretor que detém o monopólio do rádio e da televisão; o comandante dos Guardas da Revolução e das forças de segurança. É ele que coordena os três poderes constituídos e que arbitra seus conflitos. Em certas condições, ele pode até mesmo ultrapassar as regras da Constituição ou da xariá.2 Representante do imame oculto3 sob a Terra, o Guia dispõe de poderes quase ilimitados.
Isto posto, o presidente da República, segundo personagem na hierarquia do Estado, é encarregado da intendência, da administração dos negócios correntes nos domínios econômicos e sociais. Claro, tudo sob a tutela asfixiante do Guia e dos órgãos não eleitos, cujo líder religioso domina sem qualquer controle popular.
No entanto, o voto universal direto dá ao presidente legitimidade democrática. Assim, sua escolha ultrapassa o objetivo inicial e se torna, uma vez a cada quatro anos, o momento de expressão da vontade do povo, mesmo que envergonhada e enquadrada. O conflito de legitimidade entre o eleito pelo voto universal e as instituições político-religiosas do Estado constitui a dinâmica principal do mecanismo que funciona no topo do poder.
Em fevereiro de 1979, no dia seguinte à Revolução, Abolhassan Bani-Sadr foi eleito como primeiro presidente da República. Existiam então 95 candidatos. Um conflito com Khomeini resultou na sua destituição, em junho de 1981, em circunstâncias que lembra a que vive atualmente o Irã. Seguiram-se dois mandatos presidenciais do atual Guia. Ali Khamenei, no poder de 1981 a 1989, momento da guerra entre o Irã e o Iraque, teve uma gestão marcada pelo aumento da tensão no regime. Com efeito, Khomeini tinha imposto Moussavi como primeiro-ministro e confinou Khamenei na presidência.
Depois da morte, em 1989, de Khomeini, cuja autoridade religiosa era incontestável, a designação de um novo Guia trouxe problemas para o país. Ali Khamenei, o substituto, era um simples hodjatoleslam, promovido de um dia para outro a grande aiatolá. Muitos acreditam que Khamenei deve sua promoção a Rafsandjani que assumiu, então, as funções de presidente em seu lugar.
Os dois mandatos de Rafsandjani na presidência (1989-1997) não escaparam aos conflitos de legitimidade, mas sem levar a crises graves. A restrição do número de candidatos autorizados a se apresentar e sua postura de meros figurantes nos pleitos, levaram a uma baixa da participação eleitoral.
Em 1997, a participação popular voltou a subir e chegou a 79,9%. Na ocasião, Mohammad Khatami se impôs como o homem da reforma e ganhou do candidato apoiado pelo Guia. Essa vitória, impensável na maioria dos outros países do Oriente Médio, onde só o candidato oficial pode ganhar, revelou o conflito entre as duas legitimidades. Em ambos os mandatos de Khatami, suas tentativas de reforma são marcadas por um bloqueio constante do Guia, o qual percebia no presidente uma potencial ameaça ao seu poder. Em 2005, Khamenei finalmente conseguiu impor seu candidato: Ahmadinejad. Agora, depois de quatro anos de gestão e contra os alertas de vários dos seus próximos, Khamenei decidiu apoiá-lo de novo, sem se importar com o preço a ser pago.
Em 12 de junho de 2009, a população se apresentou diante das zonas eleitorais. Tudo se passou de maneira tranquila. Mas às 17h, antes mesmo do fechamento do escrutínio, o comandante das forças de segurança de Teerã anunciou na televisão que iria colocar seus homens nas ruas para acompanhar de perto o fim da votação em cada zona eleitoral. Os protestos dos três candidatos opositores contra a participação das forças de segurança não significaram nada. Um silêncio absoluto recaiu sobre a sede do Ministério do Interior, onde deveriam ser proclamados os resultados, enquanto as agências de imprensa partidárias de Ahmadinejad, como a Fars ou o site Rajanews, começam a publicar números estapafúrdios. A estupefação é ainda maior quando, nas horas seguintes, o Ministério do Interior confirma essas indicações e as considera definitivas. Os números são publicados, a princípio, a cada 2 milhões, sem nenhuma referência às zonas eleitorais ou localização dos votos. Seguiram-se ainda algumas horas de calmaria. Na manhã de 13 de junho, os números começaram a ser anunciados por blocos de 5 milhões de votos, nas mesmas condições.
Enquanto a taxa de participação progride até chegar a 85%, a porcentagem atribuída a cada candidato permanece igual durante toda a noite seguinte, como se, em todas as cidades e regiões, e independentemente das condições locais, os eleitores tivessem votado nas mesmas proporções nos mesmos candidatos. Foi necessário esperar dez dias para dispor dos resultados por província. Segundo dados oficiais, Ahmadinejad foi legitimado no poder por 62% dos eleitores, ou seja, 24.527.516 de pessoas. Assim, depois de quatro anos de desgaste e um balanço econômico pouco otimista, ele teria conseguido a façanha de multiplicar por cinco os 5.751 milhões de votos obtidos no primeiro turno da eleição de 2005. Na oposição, com somente 333.635 apoiadores, Karroubi, um de seus opositores, teria um resultado quinze vezes menor que em 2005.
Toda essa diferença aumenta a desconfiança de uma fraude maciça. Até mesmo o Conselho de Guardiões da Constituição declarou acreditar ter havido irregularidades, mas concernentes a apenas 3 milhões de votos. Segundo um estudo da Chatham House de Londres.4, em duas províncias seria preciso haver mais de 100% de eleitores para alcançar o resultado atribuído. E Ahmadinejad teria que conquistar não somente o coração dos conservadores e centristas, mas quase a metade dos votos reformistas em um terço das províncias. O estudo da Chatham House mostra ainda que, no interior, os conservadores historicamente têm os piores números – como provaram as eleições de 1997, 2001 e 2005 –, uma vez que nessas regiões vivem minorias nacionais mais rebeldes ao poder central. Então por qual milagre Ahmadinejad conseguiu obter, justamente nesses lugares, maioria em 2009? E como se explica sua preferência entre as camadas populares, em particular a classe trabalhadora, primeira vítima de uma política econômica marcada por uma inflação superior a 20% e um desemprego em massa que toca, em primeiro lugar, os jovens?
No dia seguinte ao da “festa da vitória”, Ahmadinejad foi parabenizado pelo Guia, ao mesmo tempo que milhões de manifestantes em Teerã e na província mostraram sua indignação frente ao que eles consideram deturpação dos seus votos. Essa mobilização, que é limitada às classes médias, teria sido, sem dúvida, mais problemática se a administração George W. Bush, com seu discurso de guerra e seu apoio incondicional ao aliado israelense, continuasse no poder. A vontade de diálogo do presidente Barack Obama liberou, em parte, os iranianos do medo dos Estados Unidos e das ingerências estrangeiras. Contrariamente aos seus homólogos europeus, o presidente americano conseguiu, de fato, balancear a recusa da intervenção nos assuntos interiores de um país soberano com a condenação da repressão.
As lutas e confrontos no Irã não dependem somente do futuro da República islâmica, que atravessa a mais grave crise da sua história. Uma radicalização no interior do país poderia também se traduzir por mais um desgaste com o Ocidente, deixando mais difícil o diálogo entre Washington e Teerã.
*Ahmad Salamatian é ex-deputado iraniano.