O coral em nossas cabeças
No documentário político La Rabbia, agora disponível em DVD, Pasolini reproduz, por meio das vozes de dois narradores, o efeito do choregus grego: despertar nossas lembranças e expor o presente que nos dilacera, para tentar frear o eticídio e resgatar o direito ao sonhoJohn Berger
Quando digo que ele se parecia com um anjo, não consigo imaginar uma idéia mais idiota a seu respeito. Um anjo nascido do pincel de Cosimo Tura? Não. Este artista, nascido e morto em Ferrare, na Itália, no século 15 (1430-1495), pintou um São Jorge que é seu retrato vivo! No entanto, ele odiava os santos oficiais e os anjos beatos. Então, por que dizê-lo? Porque a imensa tristeza que jamais o abandonava não o impedia de brincar, e porque a expressão em seu rosto aflito distribuía o riso, adivinhando exatamente aquele que tinha mais necessidade. E quanto mais seu toque era íntimo, mais ele era lúcido! Ele conseguia falar às pessoas de modo extremamente gentil sobre aquilo que lhes acontecia de mais terrível, e isso atenuava, um pouco, de alguma forma, seu sofrimento, “pois não nos desesperemos jamais sem guardar um pouco de esperança” (“Nulla disperazione senza un po’ di speranza”). Ele chamava-se Pier Paolo Pasolini [1] (1922-1975).
Penso que ele duvidava de si próprio em vários aspectos, mas jamais de seu dom de profecia. Talvez a única coisa de que gostaria de duvidar. Entretanto, por ter sido profético, ele vem em nossa ajuda naquilo que vivemos hoje. Acabo de assistir um filme, La Rabbia (A Raiva), que ele dirigiu em 1963 [2].
Nessa época, muitas pessoas seguiam os acontecimentos mundiais olhando não as informações televionadas, mas as atualidades semanais no cinema. Em 1962, o produtor de atualidades cinematográficas Gastone Ferranti teve a brilhante idéia de oferecer ao cineasta Pier Paolo Pasolini, já famoso, acesso aos arquivos de suas bobinas de atualidades de 1945 a 1962, a fim de responder à pergunta: por que esse medo de uma guerra em todos os lugares do mundo? O diretor poderia montar qualquer material de sua escolha e deveria redigir um comentário que seria lido em off. Gastone Ferranti esperava que o filme de uma hora, assim realizado, elevasse o prestígio de sua empresa. A questão colocada era «ardente», pois, nessa época, o medo de uma nova guerra mundial era, realmente, difundido. A crise dos mísseis nucleares entre Cuba, os Estados Unidos e a União Soviética havia acontecido em outubro de 1962.
Um sentido feroz de resistência
Pier Paolo Pasolini já tinha dirigido Accattone (1961), Mamma Roma (1962) e La Ricotta (1963). Aceitou fazer um puro documentário de montagem por suas próprias razões: amava a história e estava em guerra com ela. Dirigiu o filme e o chamou de La Rabbia ( A Raiva). Quando os produtores o viram, ficaram assustados e exigiram que um segundo cineasta, um jornalista de extrema direita, tristemente célebre, chamado Giovanni Guareschi (1908-1968), autor do famoso Don Camillo (1948), dirigisse uma segunda parte e que os dois documentários fossem apresentados como se fosse um único. Resultado: nenhum dos dois foi exibido.
La Rabbia de Pasolini é um filme inspirado, eu diria, não por uma cólera enraivecida, mas por um sentido feroz de resistência. Pasolini observa o que se passa no mundo com uma lucidez infalível (Rembrandt desenhou anjos que possuem esse mesmo olhar). Porque a realidade é tudo que temos a amar. Não há nada além disso. Sua rejeição à hipocrisia, às meias-verdades e às falsas aparências, aos gananciosos e aos poderosos é total, pois essas dissimulações criam e alimentam a ignorância, o que é uma forma de cegueira frente à realidade. E também porque elas atrapalham a memória, incluindo a da própria língua, nossa herança primeira.
Contudo, não era simples endossar essa realidade que ele amava, pois, na época, ela era uma decepção. Muitas esperanças, florescidas e desabrochadas em 1945 após a derrota do fascismo, haviam sido traídas. A URSS havia invadido a Hungria em 1956. A França havia começado, em 1954, sua guerra covarde contra a Argélia (que buscava, corajosamente, sua liberação). A acessão à independência das antigas colônias africanas era somente uma macabra farsa. Patrice Lumumba tinha sido liquidado no Congo, em 1961, por assassinos a mando da CIA. O neocapitalismo já se aprontava para dominar o mundo.
Apesar de tudo, as esperanças permaneciam. Aquilo que havia sido legado era muito precioso e muito consistente para que se renunciasse a ele. Dito de outra forma, era impossível ignorar as exigências da realidade, revoltantes e onipresentes. Que se manifestava no rosto de um jovem. No modo que uma mulher cobria seu rosto. Em uma rua onde as pessoas se apressavam para reclamar por menos injustiça. Nos risos suscitados por suas esperanças e na despreocupação de suas brincadeiras. É daí que vem sua raiva de resistência. A resposta de Pasolini à questão original foi simples. A luta das classes explica a guerra. O filme termina com um monólogo imaginário de Yuri Gagarin, que nota, após ter visto nosso planeta do espaço que, observados daquela distância, todos os seres humanos são irmãos que deveriam renunciar às práticas sangrentas da Terra.
Mas, em sua essência, este filme trata de experiências que a questão e a resposta deixam de lado. O frio do inverno para os sem-teto. O calor da lembrança dos heróis revolucionários. A malícia de camponês nos olhos do Papa João 23, que sorriam como os de uma tartaruga. Os erros de Stálin que são também os nossos. A tentação consoladora de acreditar que a luta terminou. A morte de Marilyn Monroe, como se a beleza fosse tudo que restasse das besteiras do passado e da selvageria por vir. Como Natureza e Riqueza se confundem aos olhos das classes dominadoras. Nossas mães e suas lágrimas como herança. As crianças e as crianças de suas crianças. E o ligeiro pânico nos olhos de Sofia Loren, quando ela olha as mãos de um pescador estripar uma enguia….
A voz da informação e a da lembrança
Duas vozes anônimas em off comentam este filme em preto e branco. São as vozes de dois amigos do cineasta, o pintor Renato Guttuso e o escritor Giorgio Bassani. Uma delas é a de um comentarista cativado, a outra, a de alguém que é meio historiador, meio poeta, uma voz de adivinho. Entre outros acontecimentos maiores, o filme aborda a insurreição húngara, o segundo mandato presidencial pretendido, nos Estados Unidos, por Dwight Eisenhower, a coroação da rainha Elizabeth II da Inglaterra, a vitória da insurreição argelina e o sucesso, em 1959, de Fidel Castro em Cuba.
A primeira voz nos informa, a segunda desperta nossas lembranças. De quê? Não exatamente daquilo que foi esquecido (ela é mais maligna que isso), mas sobretudo daquilo que escolhemos apagar, e essas escolhas começam, freqüentemente, na infância. Pasolini não esqueceu nada de sua infância ? eis de onde vem essa coexistência constante do sofrimento e do riso naquilo que ele busca. Esta segunda voz suscita em nós a vergonha de ter esquecido. As duas vozes funcionam como um coral grego. Elas não podem pesar na saída daquilo que nos é mostrado. Elas não interpretam. Elas fazem perguntas, escutam, observam e articulam em seguida o que o espectador pode ressentir. E se elas atingem seus objetivos, é porque elas têm consciência que a linguagem que falam os atores, coral e espectador é o entreposto de uma experiência comum muito antiga. A linguagem, por ela própria, é cúmplice de nossas reações. Não se pode enganá-la. Essas vozes se erguem, não para exagerar um argumento, mas porque seria vergonhoso, tendo em vista a duração da experiência e do sofrimento humanos, que aquilo que elas têm a dizer não seja dito. Se elas guardassem o silêncio, nossa aptidão em ser humanos seria reduzida.
Na Grécia antiga, o coral era composto, não por atores, mas por cidadãos masculinos, escolhidos todos os anos pelo choregus, o mestre do coral. Esses cidadãos representavam a cidade, vinham do agora, do forum. Mas, enquanto coral, eles tornavam-se as vozes de várias gerações. Quando eles evocavam aquilo que o público reconhecia, eles eram os ancestrais. Quando articulavam o que o público ressentia, mas não podia expressar, eles eram as gerações futuras. Pasolini chega a esse resultado utilizando somente duas vozes, fazendo os cem passos, furioso, entre o mundo antigo que vai desaparecer com o último camponês e o mundo futuro do cálculo feroz. Várias vezes, La Rabbia nos lembra os limites da justificativa racional e a freqüente vulgaridade de certos termos como otimismo e pessimismo.
O massacre das espécies e o da ética
Os maiores espíritos da Europa e dos Estados Unidos, anuncia ele, nos explicam o que significa, em teoria, morrer em Cuba (combatendo ao lado de Fidel Castro e de Che Guevara). Mas é somente através da piedade, à luz de um canto, à luz de lágrimas, que podemos explicar o que morrer em Cuba ? ou em Nápoles ou em Gaza, ao lado daqueles que sofrem ? significa realmente. Em um determinado momento, La Rabbia de Pasolini nos lembra que todos nós temos o direito de sonhar em ser como alguns de nossos ancestrais! E ele acrescenta: somente a revolução pode salvar o passado. La Rabbia é um filme de amor. Isto dito, sua lucidez é comparável àquela do aforismo de Franz Kafka: Num certo sentido, o Bem não traz nenhum conforto. É por esse motivo que eu digo que Pasolini parecia um anjo.
La Rabbia dura somente uma hora, uma hora preparada, medida, editada há quarenta anos. E esse filme contrasta tanto com os comentários sobre as atualidades e as informações que vemos hoje que, quando essa hora se termina, dizemos que não são… não somente espécies animais e vegetais que destruímos ou que forçamos a fazer desaparecer atualmente, mas também nossas prioridades humanas, uma após outra. Estas são sistematicamente pulverizadas, não por intermédio de pesticidas, mas com eticídios ? agentes que matam a ética e, por conseqüência, qualquer noção de história e de justiça. As prioridades visadas são as que emanam da necessidade humana de compartilhar, de doar, de consolar, de fazer seu luto, de esperar. E as mídias da informação de massa pulverizam, nos bombardeiam, hoje, de eticídios dia e noite.
Os eticídios são, talvez, menos eficazes, menos rápidos que esperavam os especialistas em comunicação, mas conseguiram enterrar e cobrir o espaço da imaginação que qualquer fórum público tradicional representa e necessita (nossos fóruns estão por todo lado, mas permanecem marginais, por enquanto). E no terreno vago onde os fóruns se esconderam (quem se recorda daquele, próximo a Roma, onde Pasolini foi assassinado pelos fascistas), o escritor-diretor nos estreita com sua Rabb
John Berger, romancista inglês, é também poeta, pintor e crítico de arte. Seu último livro lançado no Brasil é Aqui nos encontramos (Ed. Rocco, 2008).