O corpo é campo de batalha: a greve de fome de um líder mapuche
Tanta e tamanha obsessão do Estado chileno por este povo deve-se ao fato dos Mapuche serem uma barreira material e espiritual para a integração otimizada dessa região à cadeia produtiva da pasta de celulose. As recuperações territoriais que vêm acontecendo a partir da década de 1990 apontam para uma prática econômica que não pode ser integrada à dinâmica do capital
Ontem completaram 100 dias de greve de fome da autoridade espiritual mapuche, Machi (xamã) Celestino Córdova. Sua saúde está se deteriorando minuto a minuto. Ele já perdeu 31 kg e foi transferido para o Hospital Intercultural de Nueva Imperial, na cidade de Temuco, Chile.
Machi foi condenado a 18 anos de prisão pela morte do empresário Werner Luchsinger, de 75 anos, e de sua esposa Vivianne Mackay, de 69 anos, em 2013, na região de La Araucanía. O empresário enfrentou um assalto a mão armada na sua casa, com um revólver calibre 22, enquanto sua esposa chamava por telefone para os Carabineros. Finalmente, a casa foi incendiada e ambos morreram carbonizados.
A família Luchsinger chegou da Suíça para viver no Chile no ano de 1883, dois anos após a “Pacificação da Araucanía”, nome que o Estado chileno deu a expulsão das comunidades mapuche dos seus territórios. Os Luchsinger chegaram como colonos e o Estado concedeu-lhes terras. Foram aumentando suas propriedades e nos últimos tempos dedicam-se ao ramo florestal. Quando aconteceu o assalto, a família não duvidou em acusar as organizações mapuche. Mas nenhuma delas assumiu o que aconteceu com o casal. Porém, o fato reativou o “Comando Hernán Trizano”, grupo paramilitar anti-mapuche, que se dedica a provocar incêndios nas comunidades.
Celestino Córdova foi preso a uma distância de 1750 m da casa da família Luchsinger, com uma ferida de bala. Nunca foi provado que a bala tenha partido do revólver do empresário. Porém, o tribunal considerou que essa era uma prova conclusiva. Celestino nega sua participação no episódio. Hoje, ele é o único condenado, depois de um longo processo no qual foi aplicada a Lei Anti-terrorista e que teve onze imputados, incluindo uma outra machi: Francisca Linconao. As provas foram caindo uma a uma. Uma suposta “testemunha chave” acusou a promotoria de arrancar depoimentos seus com enganos.
Celestino Córdova pede que lhe deixem permanecer em seu rewe (o espaço de práticas religiosas em sua comunidade), por 48 horas, para cumprir com suas obrigações de machi. Não seria a primeira vez em que a justiça chilena concede uma saída como essa para autoridades espirituais mapuche. Os condenados por delitos de lesa humanidade durante a ditadura do general Augusto Pinochet também recebem esse benefício.
A semana passada, o ministro do Interior, Andrés Chandwick, reuniu-se com o Comitê de Seguridade Macrozona Sul, das regiões VIII, IX e XIV. O governo propõe a formação de uma força especial para combate ao crime e ao terrorismo, e pedirá apoio estrangeiro para isso.
Na primeira semana de abril, o governo Sebastián Piñera enviou ao Senado um projeto que modifica a Lei Anti-terrorista. As mudanças incluem agentes encobertos, testemunhas protegidas e entrega vigiada. Também ampliam o campo de aplicação da lei para “ações para desestabilizar a ordem institucional democrática”, sem especificar o que seriam tais ações desestabilizadoras. Mas o projeto se torna minucioso para descrever entre os delitos de terrorismo “se apossar ou atentar contra veículos de transporte ou de carga”.
Tanto a constituição dessa força policial especializada na região que coincide com o Gulumapu, território ancestral mapuche ao oeste da cordilheira dos Andes, como as especificações sobre a aplicação da Lei Anti-terrorista indicam qual é o alvo. Os Mapuche estão na mira.
No final do ano passado, ainda no governo de Michelle Bachelet, estourou um escândalo pela produção de provas falsas durante a assim denominada “Operação Furacão”[1], investigação realizada pela polícia chilena. Como resultado tinham sido imputados por queima de caminhões de empresas florestais oito líderes mapuche, e acusados de receber dinheiro e armas de Argentina. Cinco deles agora estão processando os funcionários da instituição “por obstrução da investigação, falsificação de instrumento público e possíveis delitos informáticos”. As “provas” assim obtidas, foram motivo para uma reunião de urgência do então subsecretário do Interior do Chile, Mahmud Aleuy, com a ministra de Segurança de Argentina, Patricia Bullrich, para coordenar o combate ao “terrorismo” mapuche.
Tanta e tamanha obsessão por este povo deve-se ao fato dos Mapuche serem uma barreira material e espiritual para a integração otimizada dessa região à cadeia produtiva da pasta de celulose. As recuperações territoriais que vêm acontecendo a partir da década de 1990 apontam para uma prática econômica que não pode ser integrada à dinâmica do capital. De onde vem, a gente se pergunta, a ousadia para enfrentar os interesses das grandes operadoras transnacionais e os elos locais dessa cadeia? De onde vem a disposição para confrontar o cipoal de uma legislação que parece ter sido elaborada ad hoc, para persegui-los, e a repressão brutal nas comunidades? Somente uma grande força espiritual e um profundo sentido comunitário permitem essa proeza. Mas essa força espiritual parece emanar da própria paisagem, da terra, da montanha, do vento, do rio, do mar, do bosque, do pássaro… Na noite em que o machi Celestino Córdova levou a bala que serviu ao tribunal para condená-lo, ele estava atravessando três brejos “para uma limpeza espiritual”. Essa explicação não foi ouvida. O tribunal não entende e não lhe interessa.
No corpo de Celestino Córdova livra-se um combate. Talvez a gente não o entenda. Re we lelay tati (as coisas não são o que parecem ser). O que está em jogo é muito mais que sua condição de preso ou mesmo a posse de uma área. Aí tem uma visão de mundo que se alimenta em contato com o rewe. O Estado não se importa com isso, ou talvez sinta temor.
Aqui, no Brasil, os povos pré-existentes teimam em permanecer sem ser esmagados e sem ser integrados. Vale a pena prestarmos atenção para a decisão de Celestino Córdova e seu povo, que resistiu a invasão espanhola numa guerra que se prolongou de 1536 a 1641. E obrigou a coroa espanhola a assinar um armistício que reconhecia seu território. Durante a guerra, antes de entrar em combate, o kona mapuche gritava seu nome precedido por “inche”, que pode ser traduzido por “eu sou”. A gente é, quando sua existência está em risco. O risco é o momento para ser.
*Silvia Beatriz Adoue é professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes