O cuidado da casa comum caiçara
Decisão histórica do Tribunal de Justiça de São Paulo pode representar uma mudança nos marcos da justiça socioambiental ao reconhecer direitos de permanência de comunidades tradicionais caiçaras na Jureia (SP).
Aqui é a casinha do Martim, disse Karina Ferro, com as mãos sobre sua barriga e ao lado de seu marido, Edmilson do Prado. Dias depois, em 4 de julho de 2019, essa casinha estaria no centro de um conflito que envolve a violação reiterada dos direitos de caiçaras, povos e comunidades tradicionais no Brasil. De dentro da casinha de sua mãe, Martim viu que um forte aparato da Polícia Militar Ambiental, gestores da Fundação Florestal do Estado de São Paulo e guarda-parques armados com marretas, serrotes e pés de cabra, mas nenhuma ordem judicial, rodeavam o lado de fora da casa de seus pais para demoli-la.
A resistência da família Prado, que possui registros de posse de terra do ano de 1856 na comunidade do Rio Verde, localizada na Jureia, no litoral sul do Estado de São Paulo, foi seguida de medida judicial da Defensoria Pública de São Paulo que procurou impedir a continuidade da demolição. A ilegalidade das ações violentas começou a se descortinar quando o juiz da Comarca de Iguape (SP) decidiu liminarmente que a Fundação Florestal não poderia seguir com a expulsão. Essa decisão é agora ratificada pela 1a Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgou por unanimidade pela continuidade da família em sua casa e território ancestral.
A complexidade do tema requer uma leitura que compreenda que, além do avanço dos projetos de mineração, da monocultura transgênica, da pecuária ostensiva e das queimadas das florestas, há outras formas de violência contra povos e comunidades provocadas não só em nome do desenvolvimento, mas também em nome do discurso da preservação. Está em jogo a gestão de grandes áreas de floresta que, se por um lado correm o risco de se converterem em pastagens, por outro estão sendo viabilizadas pelos governos para exploração de recursos rotulados de “sustentáveis” e como rotas para o turismo empresarial. Nesse campo, uma cortina de fumaça verde gestada por órgãos ambientais e pelo marketing de grandes Ongs vale-se da legitimidade indiscutível das metas de conservação para promover a expulsão de comunidades tradicionais inteiras. Emergem levas de refugiados ambientais em todo mundo, constituídas de populações que se deslocaram compulsoriamente devido aos impactos de grandes empreendimentos de infraestrutura, catástrofes climáticas e políticas ambientais de espoliação territorial.
Vejamos como isso ocorre na Jureia. No mesmo dia da ofensiva sobre a casa de Karina e Edmilson, a Fundação Florestal destruiu duas casas de seus primos diretos, os casais caiçaras Heber do Prado Carneiro e Vanessa Muniz Honorato, e Marcos Venicius de Souza Prado e Daiane Neves Alves. Esses jovens foram alvos de repressão, o que para famílias tradicionais é matéria antiga. Um vasto acervo de pesquisas acadêmicas demonstra que a violência dos órgãos ambientais é realizada há mais de 30 anos mediante o entrave na obtenção de permissões para realização de atividades de roça e pesca, além do impedimento de reforma e construção de casas para jovens famílias caiçaras. A perversidade dessa violência está em inviabilizar, por meio de restrições de cunho administrativo, a permanência das famílias, levando-as ou a abandonarem as comunidades ou a lutarem forçosamente pela sobrevivência. No espaço público, os órgãos ambientais e Ongs ambientalistas veiculam notícias falsas que acusam os caiçaras de serem invasores de sua própria casa.
A família Prado já sofria ameaças de grileiros na década de 1940, conforme consta em Relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Os avós de Edmilson, Heber e Marcos, Senhor Onésio do Prado e Dona Nancy Prado, enfrentavam depois a especulação imobiliária na década de 1970. Em seguida, o governo militar ameaçou a comunidade com incursões no território tendo como objetivo a construção de usinas nucleares. Esses projetos, ao colocarem em risco parte do ecossistema da Mata Atlântica, alavancaram a mobilização do ambientalismo paulista na época. Após difundirem junto às comunidades e na imprensa a notícia de que um “santuário ecológico” garantiria sua proteção, esses ambientalistas participaram da criação de uma Estação Ecológica em 1986, uma das categorias de Unidades de Conservação mais restritivas para habitação humana, onde viviam inúmeras famílias caiçaras. Desde então, as restrições decorrentes das políticas ambientais contribuíram na expulsão por cansaço de, ao menos, 13 comunidades na Jureia.
Por isso, a decisão do Tribunal de Justiça é histórica, pois aponta, de forma inédita, para o reconhecimento, pela instância máxima do Poder Judiciário paulista, de direitos territoriais de comunidades caiçaras afetadas pela sobreposição de áreas de proteção integral e do importante papel que podem exercer para conservação da biodiversidade na região.
A resposta do Poder Judiciário, alinhada com a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), também encontra fundamento na própria Lei Estadual que regulamenta o Mosaico de Unidades de Conservação da Jureia-Itatins. Ela determina expressamente que o estado de São Paulo reconheça direito de permanência de famílias caiçaras tradicionais, inclusive as que se encontram na região do Rio Verde. Portanto, é a postura de proibir o direito à moradia de família caiçara no território onde possuem vínculo histórico que enseja ilegalidade e que deve ser coibida, não o contrário. Quem age fora da lei?
A decisão em primeira instância, aliás, já havia sido explícita ao censurar a conduta da Fundação Florestal que violou o devido processo legal. Não fosse a resistência direta ante o acossamento moral, as marretas e os pés de cabra, a família de Edmilson e Karina sofreria danos irreparáveis. Mas as casas que vieram ao chão no mesmo dia nos levam a refletir tanto sobre os caminhos tortuosos, mas ainda possíveis, da justiça, quanto sobre a relevância social e ecológica simbolizada pelas famílias caiçaras, como veremos.
Modo de vida caiçara
Essa questão remete diretamente à dimensão conservacionista das práticas e conhecimentos tradicionais dos caiçaras do Rio Verde. Suas casas estão incluídas num sistema agroflorestal chamado de tapera, consistindo em pequenas áreas da floresta ocupadas por antigas famílias caiçaras. Nas taperas são deixados os recursos cultivados por diferentes gerações, não sendo essas áreas totalmente abandonadas. Pelo contrário, embora não sejam habitadas, elas servem como subsídios para a segurança alimentar das famílias atuais. O manejo das taperas envolve seu cuidado permanente, já que ali são coletadas frutas e plantas medicinais. Pesquisas arqueológicas demonstraram que as taperas são locais de farta cultura material e imaterial, afastando qualquer ilação que considere o Rio Verde como área ambientalmente intocada. Pelo contrário, a biodiversidade e manutenção secular do território caiçara é, de fato, melhor caracterizado como um sistema socioecológico.
O cuidado com a tapera envolve toda a comunidade. A gestão comum de parte dos recursos florestais coletivos garante sua conservação, já que ali estão algumas plantas utilizadas na alimentação e medicina local, mas também devido à dimensão cultural das taperas. Elas são consideradas sagradas e de grande relevância para memória histórica da região. Dona Nancy e Senhor Onésio apresentam bem a dimensão imaterial das taperas, ao identificarem através delas os nomes dos antepassados que ali viveram, além das narrativas antigas que compõem a memória comunitária.
A construção de novas unidades domésticas nas taperas não significa novas ocupações, mas uma reocupação ancestral de áreas tradicionalmente manejadas. O respeito caiçara às taperas é parte de um sistema socioecológico e, não por acaso, tanto as casas de Edmilson e Karina, como as que foram demolidas, estão aí localizadas. Em contraste, o grande alojamento da Fundação Florestal na comunidade do Rio Verde foi construído sobre uma antiga tapera, o que revela a materialidade do racismo ambiental estruturado sobre a cultura caiçara na Jureia.
Em resposta a isso, os caiçaras oferecem não apenas seus conhecimentos ancorados nas tradições passadas, mas também propostas de um futuro responsável com a conservação. Os moradores citados até aqui participam de pesquisas de renomadas universidades públicas como portadores de conhecimentos tradicionais relacionados à agrobiodiversidade de seus sistemas agrícolas. Dado seu notório conhecimento tradicional, integraram também pesquisa encomendada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) sobre a contribuição dos povos e comunidades tradicionais para a biodiversidade. Além disso, diante da ausência de realização de Plano de Manejo por parte dos órgãos ambientais, os moradores construíram um Plano de Uso Tradicional Caiçara, com apoio de assessoria científica e jurídica, visando acordo com a Fundação Florestal e a Secretaria do Meio Ambiente que cessasse o conflito histórico mediante regramento geral das atividades dos moradores. O intuito era efetivar tanto seus direitos enquanto comunidades tradicionais como metas de conservação, mas infelizmente tal Plano foi integralmente rejeitado pelos órgãos ambientais.
Um horizonte de justiça socioambiental, contudo, descortina-se com as decisões judiciais mencionadas. Elas demonstram que a estrutura judicial do Estado pode ser sensível às demandas históricas de comunidades tradicionais que há décadas apontam que órgãos de governo têm transformado a legítima pauta ambiental em uma máquina de violação de direitos e repressão à diversidade social e cultural de diferentes povos.
Porém, a continuidade geracional caiçara não se esgota na proteção de uma casa. O modo de vida tradicional, que comprovadamente legou um vasto território considerado pelos ambientalistas, que chegaram 200 anos depois dos caiçaras, como altamente preservado, compõe a biodiversidade local. Proteger as casas caiçaras em seu sistema de tapera é parte de uma luta ética pela concretização de novos paradigmas científicos e da justiça socioambiental. A casinha de Martim, as casas de seus pais e primos, transmitidas pelas taperas ancestrais, demonstram a possibilidade de habitar a casa comum de todos e todas nós através de compromissos com o passado e com o futuro.
A violação dos direitos caiçaras, sob a justificativa de um modelo de preservação que se realiza através do esvaziamento populacional, esconde não apenas a tentativa de expansão de grandes fronteiras verdes para exploração privada, mas sub-repticiamente a erosão da própria legislação ambiental e do SNUC.
A sábia decisão do juiz de Iguape e a ratificação pelo Tribunal de Justiça apontam, portanto, para a defesa corajosa das promessas constitucionais e consolidam a permanência dos moradores no Rio Verde, o que estende ainda mais as raízes da legitimidade e legalidade da família Prado no território tradicional. Vemos que o encontro entre a resiliência histórica dos caiçaras e as deliberações acertadas de setores do Poder Judiciário desponta como um marco da justiça nos dias de hoje, já que vivemos em tempos em que a própria natureza da democracia, de modo mais ou menos velada, também está sob ameaça de demolição. Apesar disso, nas taperas caiçaras ainda hoje florescem as plantas legadas pelos ancestrais, com as quais seus descendentes se alimentam e se curam. Tomemos, também, esse exemplo.
Adriana de Souza de Lima, caiçara, presidenta da União dos Moradores da Jureia. Contato: [email protected]
Andrew Toshio Hayama, defensor público do Estado de São Paulo. Contato: [email protected]
Rodrigo Ribeiro de Castro, doutorando em Antropologia Social pela Unicamp. Contato: [email protected]