O desemprego que dá lucro
Assim como no Brasil, o reposicionamento profissional está se tornando um mercado bastante lucrativo na França. A diferença é que, lá, antes de ser explorado por empresas privadas, esse serviço já era fornecido há décadas pelo Estado e atende todas as camadas da populaçãoMarion Lhour
Mais um idoso com futuro precário? Não se a Agência Nacional pelo Emprego (ANPE) puder evitar. Há quatro décadas, esse estabelecimento encarna um princípio constitucional francês: o Estado assume a responsabilidade sobre as pessoas sem emprego.
Antes exclusiva, a atividade enfrenta agora a concorrência de centenas de empresas que fazem exatamente a mesma coisa. Escritórios de recolocação ou de treinamento, organismos de formação, agências de trabalho temporário ou “jobboards” (quadros de emprego, em tradução literal) na internet, elas têm como alvo um mercado gigantesco, que apenas na França abrange dois milhões de pessoas à procura de emprego. A eles se somam 1,2 milhão de beneficiários do programa de Renda Mínima de Inserção (RMI) [1], sem contar os trabalhadores em situação precária. Os clientes, numerosos, incluem a própria ANPE, que terceiriza parte de seus serviços, além da União Nacional Interprofissional para o Emprego na Indústria e Comércio (Unedic), empresas e até particulares. Juntos, eles gastam milhões de euros, às vezes sem qualquer discernimento.
Alguns acusam a lei de coesão social de ter aberto a brecha para o mercado privado. De fato, em janeiro de 2005 a regra mudou: outros organismos além da ANPE foram autorizados a “recolocar” os que buscam emprego. Mas para Fabienne Brutus, conselheira da ANPE e autora de Desemprego, os segredos bem guardados [2], o desemprego transformou-se em produto de mercado há muito tempo. Segundo ela, o Estado deixou para outros as tarefas que não pôde ou não quis assumir. Um executivo da ANPE que preferiu não se identificar concorda com a avaliação: “desde os anos 1980 e 1990, há uma verdadeira cooperação público-privado. O privado nos chama e nós não vivemos sem eles”. A afirmação é comprovada pelos números: mais de um quarto do orçamento da ANPE, ou seja, 528 milhões de euros, é destinado para a remuneração de prestadores de serviço.
Satisfeitas, as organizações que respondem aos editais comemoram seu crescimento. Entre outros serviços, elas realizam o chamado “levantamento de competências aprofundadas”. São vinte horas de entrevista para “redefinir o projeto” do cliente ou “prepará-lo para a mobilidade”, que custam entre 800 e 1200 euros nos centros institucionais de levantamento de competências. Em 2003, 155 mil atividades desse tipo foram requeridas, 6% do total das realizadas pela ANPE.
Centros privados também são atraídos pela oportunidade. A microempresa Dyade, por exemplo, teve um faturamento de meio milhão de euros em “acompanhamento pessoal de percurso profissional” em 2006. E com apenas sete funcionários. Nesse tipo de empresa, nenhum preceito garante a formação dos consultores e os funcionários mudam com freqüência, o que dificulta o trabalho com o cliente. Além disso, a ANPE vigia, cada vez menos, as firmas que contrata, lamenta Fabienne Brutus.
O serviço de acompanhamento reforçado, solicitado em uma a cada três prestações de serviço, é também amplamente terceirizado, apesar das tarifas proibitivas. O acompanhamento individual ou coletivo de três meses custa, em média, 320 euros quando realizado pela ANPE, e mais que o dobro em agências de trabalho provisório ou escritórios de recrutamento.
Para os beneficiários do RMI, são as administrações locais que recomendam esse acompanhamento. Matthieu, que tem pós-graduação em metrologia física, passou pela experiência. Duas agências o acompanharam sucessivamente, via prefeitura de Paris. A Eurydice Partners não o satisfez: “eles só me propuseram empregos no setor de alimentação, que eu poderia encontrar sozinho”. Com a Lee Hecht Harrison, ele foi assistido ainda mais de perto. “Tinha reuniões a cada quinze dias, com três semanas de formação”, mas sem resultado concreto. “Apenas aprendemos a fazer um curriculum vitae. De resto, falávamos principalmente dos meus problemas”, testemunha o jovem. Finalmente, Mathieu encontrou um emprego por conta própria.
Aqueles que compram ou abrem uma empresa também são uma mina de ouro, já que a ANPE lhes recomenda, freqüentemente, um acompanhamento em um desses escritórios. Vincent Rocher vivenciou essa situação recentemente: antigo diretor em recursos humanos, ele queria montar seu próprio negócio, mas na região Poitou-Charentes (oeste da França), não é possível conseguir subvenção sem ter passado por uma formação ou acompanhamento. “Eles nos mandam fazer exercícios teóricos em vez de passar para algo concreto, como estudos de mercado”, resume Rocher. O balanço que ele faz é completamente negativo: “isso não me ajudou, nem a meus colegas. Eu não compreendo por que o contrato de prestação deles é tão mal controlado. Nove em cada dez organismos desses não são competentes. Eles obtêm sua metodologia na internet e em livros que são vendidos em qualquer lugar”. O preço do acompanhamento de quatro meses foi bem salgado, 10 mil euros por pessoa.
“O pior de tudo que já vi foram os estágios em que os desempregados tinham de passear mascarados e tocar uns aos outros, para compreenderem melhor o espaço”, afirma Olivier Davoust, do blog “Meu pequeno observatório de recrutamento”.Outro caso comum é o de Corinne, para quem a Associação para o Emprego dos Quadros (Apec) propôs uma formação logo depois de sua demissão. “Eu me senti obrigada a aceitar, mas isso custou 700 euros em troca de nada. Toda semana eu tinha que encontrar um consultor independente que não conhecia nada da minha área”, conta.
Cada vez menos recomendadas, essas formações sempre oneram o Estado, as administrações locais e a Unedic. Outro problema é o tempo: a Associação Nacional para a Formação Profissional (AFPA), principal prestadora de serviços e que registra excelentes resultados, tem uma fila de um ano e meio para as formações, relata Fabienne Brutus. É verdade que um desempregado que entra nas formações sai das estatísticas, mas isso “não incita o Estado ao controle”, denuncia Patrick Salmon, ex-diretor da ANPE [3].
Existe, também, um mercado privado do desemprego, fora dos serviços terceirizados pelo Estado. Os pioneiros são os escritórios de recolocação, que surgiram com as transferências de empresas para outros países ainda nos anos 1980 e tinham a tarefa de encontrar emprego aos demitidos. O staff nesse tipo de serviço é bem maior que o da ANPE: em 2003, apenas na consultoria para a empresa Metaleurop, havia uma pessoa a cada 33 funcionários, enquanto na ANPE a relação seria de um a cada 300. Na época, um terço dos trabalhadores da metalúrgica continuaram sem ter para onde ir.
O sociólogo Olivier Mazade denuncia que em estruturas desse tipo “as empresas de recolocação pressionam para que as pessoas aceitem trabalhos temporários, sem sequer conhecê-los”. Pior, segundo Fabienne Brutus, “é que às vezes são esses mesmos escritórios que provocam as demissões ao aconselhar a empresa a diminuir seu quadro de funcionários, e depois atuam na recolocação”.
E por que esse tipo de serviço continua se popularizando? A hipótese de Salmon é que “eles permitem às empresas passar uma imagem responsável”. Segundo ele, “é melhor que uma demissão seca”. Além disso, um trabalhador temporário não conta nas estatísticas do desemprego.
Assim, desde 2005, as agências de recolocação seguem aproveitando o fim do monopólio da ANPE. Ingeus, BPI, Altedia ou Adecco se precipitaram nessa atividade, que é sinônimo de lucro. Um ano após a primeira experiência, a Unedic registrava 24 milhões de euros de economia [4] graças a esses escritórios, que anunciaram 70 % de desempregados recolocados em apenas dez meses. Graças ao bom resultado, a Unedic decidiu ampliar a experiência para outras 41 mil pessoas à procura de uma vaga. Para as agências foi um “presente financeiro dos céus”, afirma Eric Aubin, representante da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) na Unedic. “Um desempregado recolocado gera cerca de 3500 euros. Se multiplicarmos isso, temos um mercado de mais de 140 milhões”, calcula. Mas a CGT e a Força Trabalhadora (FO), outra central sindical francesa, contestam o desempenho das agências privadas. Para eles, compará-las à ANPE é impossível: as agências só cuidam dos desempregados “voluntários e motivados”.
O bloggeiro Olivier Davoust reconhece que essas empresas são interessantes porque não depreciam os desempregados. “Suas sedes são mais limpas, espaçosas e o trabalhador é muito bem recebido”, diz ele. Mesmo assim, Davoust não está convencido da competência dos serviços prestados: “me apresentaram apenas ofertas de emprego adaptadas”, relata. A recolocação também pode ser fonte de discriminação porque “privilegia-se os desempregados mais bem indenizados”, avalia Patrick Salmon.
Concorrentes dos escritórios nesse mercado, as agências de trabalho temporário são pagas pelas empresas para buscar o funcionário ideal. Um recrutamento rende às agências de 15 a 20% do ordenado anual do trabalhador. Seu papel se limita a conseguir fazer oferta e demanda se encontrarem, sem acompanhamento particular. O coração da atividade é a seleção: “algumas empresas recusam desempregados para o trabalho temporário”, afirma Fabienne Brutus.
O nicho é promissor. O Sindicato dos Profissionais do Temporário, Serviços e Atividades do Emprego (Prisme), por exemplo, triplicou suas colocações: foram 26.500, sete a cada dez em contrato de trabalho por tempo indeterminado. Por enquanto, isso não representa mais que 60 milhões de euros sobre seus 20 bilhões de faturamento por ano. “Essa atividade é diretamente vantajosa. Ela representa pouco no faturamento, mas muito em fluxo de caixa”, explica Marc Riou, diretor-geral da Kellyservices.
Os últimos atores desse mercado são os sites de emprego na internet e suas centenas de consultores. Na França, a lei proíbe a cobrança de informações sobre ofertas e as empresas precisam pagar para que os internautas recebam o que está disponível no mercado. Um anúncio no Monster.fr, líder de audiência, não sai por menos de 650 euros. A esse número se acrescentam ainda as receitas publicitárias.
Os internautas colocam a mão no bolso apenas quando aceitam os serviços “premium” propostos pelos sites, tais como envio de ofertas antecipadamente, a elaboração de currículos ou, mais recente, a criação de blogs pessoais. Na CV Premium, por exemplo, redigir um currículo custa, em média, 120 euros. Para um cargo de direção, sai por 350 euros.
O mercado se amplia conforme as classes populares se conectam a rede mundial de computadores. “Hoje o faturamento dos membros da Associação dos Profissionais do Emprego pela Internet [APPEI] chega a 70 milhões de euros e cresce 40% ao ano”, constata Valérie Vaillant, presidente da APPEI.
Caso raro, mas bem real, é dos desempregados que pagam seu reposicionamento por conta própria, sem auxílio do Estado, dos sindicatos ou da empresa que trabalhou anteriormente. Além dos serviços web, eles podem financiar sua formação ou requisitar a consultoria de um técnico, sem qualquer garantia de qualidade. “Eu vi várias pessoas serem exploradas. Elas estão perdidas e prontas a pagar 150 euros para um balanço de competências pela internet”, comenta Davoust. Para um cliente particular, uma sessão custa de 150 a 300 euros e, em geral, a venda vem em pacotes com dezenas delas. Já o mercado de orientação técnica representa hoje 90 milhões de euros.
É, definitivamente o mercado do desemprego é lucrativo. Apesar de ter se fragmentado entre várias empresas, sem uma verdadeira coordenação, por culpa do Estado, essas práticas têm uma grande vantagem: desinchar as estatísticas do desemprego.
traduções deste texto
Marion Lhour é jornalista.