O “desenvolvimento” versus os povos indígenas
Artigo publicado no Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados 2014 abordando as centenas de conflitos entre comunidades indígenas e grandes e médias obras que provocam modificações radicais em seus territórios e modos de vida tradicionaisClóvis Antônio Brighenti
Os povos indígenas no Brasil estão enfrentando centenas de conflitos com grandes e médias obras que provocam modificações radicais em seus territórios e modos de vida tradicionais. Convencionou-se relacionar esses empreendimentos ao “desenvolvimento”, porque o setor mais privilegiado da sociedade brasileira defende que eles geram riquezas e empregos e promovem o “progresso”. Independentemente do tamanho e do montante dos recursos envolvidos, seus efeitos são devastadores sobre espaços considerados sagrados por essas populações. Das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) aos megaprojetos, que envolvem bilhões de reais, os impactos sobre as populações que habitam esses espaços há milhares ou centenas de anos são severos e, na maioria dos casos, irreversíveis. Em muitos casos, elas são forçadas à remoção e obrigadas a deixar para trás suas fontes históricas de sobrevivência, como a pesca e o extrativismo.
A concepção desse padrão de desenvolvimento, suas obras e empreendimentos estão relacionados com o mito moderno de que a economia precisa crescer rápida e continuamente para satisfazer as necessidades materiais da sociedade, para que, desse modo, as pessoas sejam felizes, tenham mais-bem estar e qualidade de vida. No entanto, por trás desse mito, camufla-se a essência do sistema capitalista: a necessidade de garantir a continuidade de uma lógica fundamentada no consumismo, e assim, assegurar o acúmulo e o lucro das elites e dos setores privilegiados da sociedade.
No Brasil esse mito da felicidade “material” está associado a outro, que diz respeito à busca de novos espaços para a expansão do “desenvolvimento”. Ou seja, busca-se constantemente avançar para os “novos” territórios, locais onde ainda existe natureza a ser explorada e apropriada. Nesse aspecto, ao interesse do capital, as terras indígenas e de comunidades tradicionais são espaços privilegiados para a implantação dessas obras devido à forma como essas populações utilizam o território, ou seja, respeitando a floresta, a mata, as águas, a fauna e a flora.
A partir dessa perspectiva, a Amazônia brasileira é ainda hoje considerada um espaço vazio a ser explorado, apesar de povos indígenas e comunidades tradicionais habitarem aquela região há milhares, centenas de anos. Portanto, a concepção de “desenvolvimento” do Estado brasileiro está associada a ações agressivas contra o meio ambiente e suas populações originárias e tradicionais.
Na história recente do Brasil muitos povos indígenas foram praticamente extintos ou tiveram grande parte de seus territórios destruídos por causa desses empreendimentos do “desenvolvimento”. Na década de 1970, a Usina Hidrelétrica de Itaipu, no Rio Paraná, cobriu aproximadamente 60 aldeias Guarani em ambas as margens (do lado do Brasil e do Paraguai). Reconhecendo parcialmente sua responsabilidade, o empreendimento binacional devolveu aos Guarani menos de 1% das terras indígenas que foram alagadas. Essas comunidades seguem sem terra, sem o reconhecimento concreto de seus direitos e sem qualquer tipo de reparação.
A construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, no Rio Uatumã, no município de Presidente Figueiredo, estado do Amazonas (AM), é considerada um dos maiores crimes ambientais do mundo e também significou um ato criminoso contra os indígenas. Além de alagar uma grande área do território do povo Waimiri-Atroari, provocou a chacina de parte da sua população, já que milhares de indígenas foram assassinados por recusarem o empreendimento. Associada a essa obra está a rodovia BR-174, também conhecida por Manaus–Boa Vista e que interliga os estados de Roraima e Amazonas à Venezuela. Esta BR, literalmente, rasgou ao meio o território dos Waimiri-Atroari.
Cabe ainda aos militares a responsabilidade por milhares de mortes entre mais de dez povos indígenas na abertura da rodovia Transamazônica. Eles foram exterminados, principalmente, por armas e por diversas doenças decorrentes do contato com a sociedade não indígena e seus territórios foram invadidos por madeireiros e garimpeiros.
A construção da Transamazônica, que atravessa o território dos Tenharim, significou quase a extinção deste povo na década de 1970: de uma população estimada em quase 10 mil pessoas, ela caiu para pouco mais de 100 indivíduos, segundo os indígenas. Ainda hoje a Transamazônica impacta severamente os Tenharim, já que é justamente através dela que são escoados a madeira e outros bens naturais explorados ilegalmente dentro da terra indígena. Além de nunca terem recebido nenhum tipo de reparação, por parte do Estado brasileiro, os Tenharim continuam sendo vítimas de perseguição e criminalização – como ocorreu em dezembro de 2013 – e diversas outras violações, como invasão possessória, totalizando mais de quatro décadas de permanente violência.
Obras de menor vulto econômico e quase desconhecidas, como a Barragem Norte, em Santa Catarina (SC), para a contenção de cheias no Vale do Itajaí, destruiu o modo de vida do povo Xokleng-Laklãnõ. A comunidade ficou completamente desestruturada, perdeu as terras agricultáveis e jamais foi reparada. Resta a esse povo a difícil convivência com um lago sazonal lamacento e podre. Desse modo, as lutas e os protestos iniciados no início dos anos 1980 seguem até hoje.
Todos os casos citados acima foram denunciados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) no capítulo indígena do relatório, entregue à Presidência da República em dezembro de 2014, que reúne informações sobre os crimes e as violações de direitos praticados contra os povos indígenas durante a ditadura militar. Apesar deste capítulo considerar pesquisas feitas com apenas dez povos, constatou-se que um total de pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período investigado.
Também herdeiras desse conceito inviesado de “desenvolvimento” são as obras iniciadas no governo de Fernando Henrique Cardoso, com o programa Avança Brasil, que tiveram continuidade nos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, através dos Programas de Aceleração do Crescimento I e II (PAC I e PAC II).
Na contemporaneidade, percebem-se continuidades e mudanças em relação ao que ocorreu com os povos indígenas no período dos governos militares. As mudanças positivas são perceptíveis nos aspectos legais, frutos da mobilização indígena e de seus apoiadores na sociedade brasileira. A partir da promulgação da Constituição Federal (CF), em 1988, ocorreram avanços substancias para as populações indígenas no que tange aos direitos sobre seus territórios e a sua integridade física. O Artigo 231 da CF em seu parágrafo 3º restringe o uso dos territórios indígenas para hidrelétricas e exploração mineral: “O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”. Já o parágrafo 5º, do mesmo Artigo, impede a remoção de indígenas como ocorreu no período militar: “É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional…”.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma importante normativa jurídica do direito internacional, ratificada no Brasil em 2004, que garante aos povos indígenas a “consulta prévia” sobre toda e qualquer ação do Estado que os afete, incluindo especialmente os empreendimentos. Trata-se de um significativo avanço legal que possibilita aos povos indígenas manifestarem-se e decidirem sobre as obras que afetam seus territórios e seus modos de vida e que deve ser imediatamente respeitado e aplicado pelo Estado brasileiro.
Porém, o que se percebe com maior nitidez é a continuidade do pensamento desenvolvimentista do Estado e do governo brasileiro que, para piorar, ainda considera os povos indígenas e as populações tradicionais como obstáculos ao “desenvolvimento”. Também continua atual a crença de que o Brasil precisa “avançar” e “crescer” ampliando sua infraestrutura sobre áreas novas, locais ainda não explorados do ponto de vista do capital. A continuidade dessa mentalidade militarista é evidenciada por uma postura fundamentada no “construir a qualquer custo”, mesmo que seja violando direitos humanos. Nesse sentido, a atual construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, em Altamira, no Pará, é emblemática. Idealizado pela ditadura militar, em 1975, com o nome de Complexo Kararaô, este projeto conseguiu no governo do presidente Lula um ambiente político favorável para ser implementado. Segundo o Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA), em torno de 40 mil pessoas serão diretamente atingidas pelo empreendimento e terão que deixar suas casas. Belo Monte tem um impacto profundo sobre as atividades produtivas e a cultura dos povos indígenas daquela região, que possuem relações ancestrais com o rio e uma cosmovisão diferente da ocidental.
Desse modo, fica explícito que para o Estado brasileiro as leis podem apenas mitigar os “inevitáveis” danos. Não é permitido, na prática, aos povos indígenas manifestarem-se autonomamente sobre as obras, e o direito de dizer “não” parece absurdo aos olhos do capital. Se no período militar os povos indígenas eram considerados transitórios, já que deveriam integrar-se à “comunhão nacional” e, portanto, deixarem de existir como povos, atualmente as terras indígenas são consideradas transitórias e estariam à disposição dos povos indígenas até que o interesse “maior” do capital se sobreponha e as utilize a seu bel prazer. Essa postura é uma clara violação dos direitos assegurados na Constituição Federal e na Convenção 169, que reconhecem explicitamente o direito exclusivo dos povos indígenas sobre seus territórios e o usufruto de seus bens naturais.
Ciente de que os direitos conquistados pelos povos indígenas impõem limites à forma como se concretizam os empreendimentos, o governo vem buscando modificar e restringir esses direitos a fim de facilitar e garantir a implementação das obras. Nessa perspectiva, em 2011, foi publicada a Portaria Interministerial nº 419, que estabeleceu, dentre outros parâmetros, limites em quilômetros para identificar possíveis interferências às comunidades indígenas; prazos exíguos para os estudos de impactos ambientais; e a definição do que o governo entende por terra indígena, contemplando apenas as que estão com portaria declaratória publicada e restringido a interpretação do Estatuto do Índio, de 1973, criado em pleno governo militar.
Em 2012, o governo propôs à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar (PLP) 227, que altera o parágrafo 6º do Artigo 231 da CF, a fim de restringir o uso exclusivo dos índios sobre suas terras. Ainda em 2012, a Advocacia Geral da União (AGU) publicou a Portaria n° 303, com o argumento de “Salvaguardas Institucionais às Terras Indígenas, conforme entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Petição 3.388 RR”. Através desta portaria, o Executivo federal buscou aplicar a todas as terras indígenas o entendimento do STF exclusivo para o processo de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RSS), ficando explícita intenção de restringir os direitos indígenas
Como se não bastassem essas iniciativas que visam retirar os direitos indígenas, em 2013, o Executivo publicou o Decreto nº 7957, que permite que as Forças Armadas intervenham sempre que haja manifestação contrária aos empreendimentos. Trata-se, claramente, de uma postura autoritária herdada do governo militar, presente no governo civil com o objetivo de viabilizar as grandes obras.
Há também diversas iniciativas do Legislativo, como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de demarcar terras indígenas, titular territórios quilombolas e criar unidades de conservação ambientais; a PEC 38, que dá ao Senado Federal competência privativa para aprovar processos de demarcação de terras indígenas; além do Projeto de Lei (PL) 1610/1996, que abre as terras indígenas para a exploração mineral.
Percebe-se, portanto, que há uma junção de esforços dos poderes Executivo e Legislativo no sentido de garantir, a qualquer custo, o uso dos territórios indígenas para beneficiar o grande capital. Nesse sentido, fica evidente a continuidade dos princípios de uso dos territórios indígenas impostos no Brasil durante o governo militar. Nesse contexto, não poderiam estar mais atuais as palavras do ministro do Interior Rangel Reis, em 1976, quando afirmou que “os índios não podem impedir a passagem do progresso”.
Uma característica importante que diferencia os empreendimentos realizados nos governos militares e nos governos civis é que agora as obras são financiadas com recursos públicos, do povo brasileiro, sendo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) o principal financiador dos mega projetos, enquanto nos governos militares as obras eram financiadas pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Essa diferença mobiliza ainda mais o empresariado brasileiro na defesa desse modelo de desenvolvimento.
No relatório “Empreendimentos que Impactam Terras Indígenas”, lançado pelo Cimi em 2014, as obras foram divididas em cinco categorias: energia, sistema viário, infraestrutura, mineração e agronegócio. Constatou-se que 519 empreendimentos afetam ao menos 204 povos indígenas em 437 terras.
Dentre as obras do setor hidrelétrico, destacam-se Belo Monte (PA), o Complexo de Teles Pires (MT) e o de Tapajós (PA). Em relação aos combustíveis fósseis, causa espanto a voracidade com que a Amazônia está sendo escavada para possibilitar a exploração de gás e petróleo. O minério é uma das principais commodities que se deseja explorar nas terras indígenas e se essa exploração for autorizada elas serão severa e irreversivelmente impactadas, afetando radicalmente o modo de vida dos povos. Constata-se que no centro sul do país já quase não existem mais rios, os antigos cursos d’água, grandes ou pequenos, tornaram-se sequências de lagos, alterando drasticamente o meio ambiente e a vida das comunidades que mantinham relações de sustentabilidade e espiritualidade com esses espaços.
Na lógica do capital não há espaço para as diferenças. O discurso do “progresso” conseguiu congregar políticos de direita e outros, considerados, progressistas, que comungam das teses pautadas pelos setores dominantes economicamente. As grandes empreiteiras e construtoras são as maiores financiadoras de candidatos políticos nas eleições, não importando a qual partido pertençam. Os governos comprometidos e controlados por esse setor não toleram vozes contrárias. Eles utilizam os veículos de comunicação como porta-vozes do capital, a fim de convencer a sociedade que esse modelo de desenvolvimento é o que trará bem estar para todos, atualizando permanentemente o discurso de Rangel Reis, e desqualificando outras territorialidades.
Aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e à parte da sociedade que não deseja esse tipo de desenvolvimento, não resta outra saída a não ser lutar em defesa dos outros modos de vida praticados por essas populações e evidenciar que não há um único modelo de sociedade, organização social, produção, etc. É fundamental demonstrar, dentre outros aspectos, a necessidade de inversão da atual lógica, que prioriza o ter acima do ser; respeitar e preservar o meio ambiente; e explicitar que a distribuição das riquezas produzidas pela sociedade é mais importante que o contínuo aumento da produção.
Os povos indígenas são sujeitos de direitos como todos os brasileiros. Eles não desejam apenas ser ouvidos, querem participar ativamente dos processos e decidir sobre suas vidas e seus territórios. Querem o direito de demonstrar que para além da proposta de qualidade de vida imposta pelo capital existe o projeto ancestral do Bem Viver, que sustentou e sustenta milhões de pessoas e povos por centenas de gerações, em uma convivência equilibrada com o meio ambiente.
Clóvis Antônio Brighenti é Professor de História na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e colaborador do Cimi.