O design inteligente do mercado
Somente mistura de fé e oportunismo parece explicar aposta redobrada na atual política econômica
E eis que, novamente, a economia frustrou as expectativas dos economistas do mercado financeiro.
Otimistas com a vitória de Bolsonaro na eleição presidencial e, principalmente, com a ida do ultraliberal Paulo Guedes para o comando da economia, eles apostavam, lá no primeiro dia útil de 2019, em um crescimento do PIB de 2,5% naquele ano.
A economia, contudo, cresceu somente 1,1%, mantendo o ritmo de recuperação devagar quase parando dos dois anos anteriores.
Em artigo recente na Carta Capital, Luiz Gonzaga Beluzzo utilizou o trecho de um relatório da XP Investimentos da época para ilustrar a fé renovada do mercado financeiro com o início do Governo Bolsonaro.
“A reforma da previdência é considerada fundamental para o Brasil ajustar as contas públicas e retomar o crescimento. Se o governo Bolsonaro conseguir aprovar uma reforma nos moldes daquela proposta por Temer, o PIB pode crescer entre 2,5% e 3,5% a partir de 2019, com a inflação dentro da meta, a taxa de juros estável entre 8% e 9% e o câmbio entre R$ 3,70 e R$ 3,80. No pior dos mundos, sem reforma, a inflação pode acelerar consideravelmente e o dólar subir para R$ 5”, explicava a corretora para os seus clientes.
Como se sabe agora, a reforma da previdência passou, a taxa básica de juros caiu (para 4,25%, ou seja, muito mais do que o previsto por XP, Bradesco, Itaú e companhia), mas o crescimento do PIB, vejam só, não foi nem metade do esperado.
O câmbio, por sua vez, aproxima-se dos R$ 5 previstos “no pior dos mundos” da XP… (risos)
“O que deu errado? Por que a economia não cresceu conforme o esperado, apesar do avanço da agenda liberal?”, poderia estar se perguntando um ainda ingênuo economista do mercado financeiro.
A melhor resposta que encontrei foi num artigo de uma economista do mercado publicado na Folha de São Paulo.
Em 21 de novembro, embora otimista em relação aos “sinais recentes de aceleração da atividade”, “incipientes, porém consistentes” (risos), ela já alertava para o “crescimento medíocre, nosso maior risco”.
No artigo, destacou os avanços do Governo Temer com o teto de gastos e a reforma trabalhista, bem como o mérito da atual gestão na promulgação da reforma da Previdência.
Reconheceu, porém, que “nada disso […] é suficiente para animar os investidores”.
“E por que, meu Deus, se já entregamos muito do que o Mercado pedia?”, você pode estar se perguntando, angustiado.
“Há pouca visibilidade de que continuaremos na direção de reformas liberais, justamente porque a economia está demorando a decolar”, explica, solenemente, a autora.
Em outras palavras, os tão esperados investimentos, que viriam com o impeachment da Dilma e a consequente retomada da confiança, não estão vindo porque, apesar do avanço das reformas liberais, há o risco de as reformas liberais pararem de avançar, já que o crescimento que viria dos investimentos decorrentes do avanço das reformas liberais não está vindo…
Pois é. Fosse a ex-presidente Dilma a autora de tal raciocínio circular, memes estariam pululando nas redes sociais dos faria limers.
Já a economista do mercado, ao argumentar que a solução para a ineficácia das reformas liberais só pode ser a realização de mais reformas liberais, deve ter sido promovida, pois cumpriu à risca a única coisa que, de fato, se espera dela: defender intransigentemente os interesses da elite financeira da qual faz parte.
“Precisamos urgentemente consolidar o crescimento ou jogaremos fora todo o árduo trabalho realizado até agora. A urgência está na persistência de continuar avançando, e não na busca de soluções mágicas”, conclui ela.
Ou, para repetir ipsis litteris o clichê dos economistas de mercado, não podemos sacrificar os fundamentos de longo prazo em troca de resultados de curto prazo.
A célebre frase de John Maynard Keynes, “no longo prazo, todos estaremos mortos”, sintetiza a mais do que pertinente crítica do economista às propostas que prometiam a redenção no porvir.
Enquanto o desemprego segue elevado, a informalidade aumenta, a renda não cresce e o pequeno aumento do consumo é sustentado pelo maior e preocupante endividamento das famílias, os economistas do mercado argumentam que o sacrifício da população ainda não foi o suficiente para garantir a sustentabilidade do crescimento da economia a longo prazo.
Bom. Se, até lá, os pobres, desempregados e endividados estiverem todos mortos, quem sabe o sacrifício em vida não lhes garanta, ao menos, o Reino dos Céus?
Isto te lembra algo, leitor?
O teólogo Harvey Cox publicou no final do século passado, em pleno auge do neoliberalismo no mundo, um artigo indispensável apontando as semelhanças entre as narrativas religiosas e os discursos dos economistas do mercado.
Diz ele que, aconselhado por um amigo a ler as páginas de negócios para entender o que se passava no mundo real, acabou se deparando com algo bastante familiar.
“Esperando uma terra incógnita, encontrei-me, em vez disso, na terra do déjà vu. O léxico do The Wall Street Journal e as seções de negócios de Times e Newsweek [poderia incluir aqui Valor Econômico, Exame e as seções de economia de Estado, Folha e Globo] acabaram por ter uma semelhança impressionante com o Genesis, a Epístola dos Romanos, e a Cidade de Deus de autoria de Santo Agostinho.
“Atrás de descrições de reformas pró mercado, política monetária e as circunvoluções do Dow Jones, eu gradualmente juntei as peças de uma grande narrativa sobre o significado mais profundo da história humana, por que as coisas tinham corrido mal e como coloca-las no rumo correto.
“Os teólogos chamam isso de Mitos de Origem, Lendas da Paixão e Doutrinas do Pecado e da Redenção. Mas lá estavam todos eles, novamente, e apenas com leve disfarce: as crônicas sobre a criação de riqueza, as tentações sedutoras do estatismo, o cativeiro dos ciclos econômicos sem rosto e, por fim, a salvação através do advento de mercados livres, com uma pequena dose de cinto ascético apertado ao longo do caminho”, escreve o autor logo nas primeiras linhas do relato.
A religião, se, por um lado, estabelece princípios norteadores da vida e um sentido para a existência, por outro, foi e continua sendo utilizada por oportunistas para manipulação e enriquecimento próprio.
Em busca de maior legitimidade, também surgem vertentes supostamente científicas do discurso religioso. É o caso da teoria do design inteligente, cuja introdução nas salas de aula é defendida pelo novo presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão ligado ao Ministério da Educação) como contraponto à teoria da evolução.
Em artigo na Folha, Diogo Meyer, professor do Instituto de Biociências da USP, nega que o design inteligente seja uma teoria científica válida, argumentando que uma teoria científica “deve ser testada contra observações do mundo natural, ter consistência com o conhecimento vigente e ter passado pelo crivo da comunidade científica”.
“O design inteligente […] é uma forma de criacionismo com uma aparência científica”, afirma, categórico.
Em relação às ciências econômicas, André Lara Resende foi certeiro ao apontar em seu último livro, Consenso e Contrassenso: Por uma economia não Dogmática, que “a facilidade com que os economistas sempre se dispuseram a negar as evidências para preservar a tese é um triste atestado de que, ao contrário do que pretendem, são mais ideólogos do que cientistas”.
Enquanto a atual política econômica mostra-se incapaz de gerar crescimento e distribuição de renda, e até economistas liberais lá de fora já colocam em cheque a eficácia da austeridade fiscal diante da atual conjuntura, os economistas do mercado daqui preferem redobrar a aposta e continuar defendendo a aceleração do corte de gastos sociais e investimentos públicos, privatizações, redução da participação do Estado e desregulamentação da economia.
Para que serviria defender ideias que ignoram quaisquer evidências?
Vale aqui a máxima do dramaturgo Bertolt Brecht: “pergunte sempre a cada ideia: serves a quem?”
A quem interessa, afinal, este modelo econômico que acentua a desigualdade ao precarizar as relações de trabalho e diminuir a proteção social do Estado enquanto uns poucos multiplicam sua riqueza com juros e especulação no mercado financeiro?
A ciência econômica do mercado, assim, pode ser entendida como um discurso religioso que procura dar ares científicos ao que não passa da mais mesquinha defesa de interesses da elite financeira.
Tal como pastores picaretas, também os economistas do mercado engordam seus bolsos explorando a fé cega de um rebanho ingênuo.
Enquanto os primeiros alegam conhecer os desígnios de Deus, os segundos, devidamente diplomados e certificados, são apresentados como os únicos realmente capazes de compreender e antecipar as misteriosas tendências do mercado.
O aspecto científico de suas análises ajuda a dar legitimidade ao que não passa de engodo.
Se a religião, ao menos, busca dar significado ao que não pode ser explicado pelo conhecimento científico, a ciência econômica do mercado transforma em doutrina o que deveria ser objeto de exaustiva investigação.
Se a religião, por sua vez, ajuda a confortar o espírito diante do que não somos capazes de compreender, a ciência econômica deveria ser capaz de propor soluções para problemas concretos que afligem a população.
Mas não é o que acontece.
Agora mesmo, por exemplo, diante da praga do Coronavírus, que já está levando à nova revisão para baixo das expectativas para o crescimento do PIB em 2020, o que vemos são os economistas-pastores do mercado a lamentar que a economia brasileira estaria em uma situação muito melhor se o país tivesse avançado mais na agenda liberal ou a pregar resistência às tentações fiscais do presente para manter sólidos os fundamentos de longo prazo da economia.
O Mercado é um Deus zeloso, que castiga os filhos pelos pecados de seus pais até a terceira e quarta geração daqueles o desprezam, mas trata com bondade até mil gerações aos que o amam e não interferem no seu livre funcionamento, poderiam dizer.
No final das contas, o curioso arranjo entre liberalismo na economia e religião (neopentecostal, principalmente) nos costumes, que atualmente governa este país, nem é lá tão estranho assim.
Pregar austeridade fiscal ou abstinência sexual enquanto o povo agoniza e empobrece, afinal, não passa de dois lados da mesma moeda que enche os bolsos de pastores abastados e financistas insaciáveis.
Vitor França é economista pela USP, onde também cursou Letras, mestre em Economia pela FGV-SP e professor universitário.