O desprezo pelo povo
Enquanto o populismo de direita vai de vento em popa nos Estados Unidos, uma onda de desprezo pela classe trabalhadora cresce na oposição. Progressistas desmoralizados pela derrota nas eleições presidenciais de 2016 lambem suas feridas se enganando com ilusões de superioridade metafísica. Nem sempre de forma consciente, eles revivem uma antiga ideia
O populismo transcende as divisões ideológicas tradicionais.1 Enquanto o nacionalismo anti-imigração de Donald Trump crescia para tomar de assalto o Partido Republicano e a Casa Branca, à esquerda Bernie Sanders mobilizava os trabalhadores com remédios inspirados no Partido do Povo (People’s Party), que emergiu no final do século XIX em resposta à influência de bancos e industriais: nacionalização do ensino superior e do acesso à saúde, mas também reversão das desigualdades em relação aos impostos. Do outro lado do Atlântico, a aprovação do Brexit, impulsionada pelo Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), um movimento de direita nacionalista hostil à globalização, acontecia enquanto Jeremy Corbyn rejeitava a ortodoxia neoliberal do New Labour, que corrói o coração da esquerda britânica desde a época de Tony Blair.
Poderíamos achar que as forças democráticas melindradas pela derrota adotariam um populismo econômico de esquerda para lutar contra o populismo de direita, agressivo e xenófobo. Não foi esse o caso. Alguns progressistas, em vez disso, manifestaram uma alergia crescente às pessoas comuns. William (“Bill”) Maher, editorialista na rede HBO, é um bom exemplo: antes da eleição, em entrevista com a porta-voz de Trump, Kellyanne Conway, ele disse como se não fosse nada de mais que o magnata imobiliário ganhara o apoio do povo, porque “as pessoas são idiotas”. O mesmo tom da revista Foreign Policy, que publicou em junho de 2016 um artigo com o eloquente título: “É hora de as elites se revoltarem contra as massas ignorantes”.
Esses gritos de socorro têm o mérito da honestidade, mas não o da originalidade. A direita foi por muito tempo inclinada à agressividade misantropa quanto a esquerda é agora. Antes de os partidários de Trump adotarem a retórica populista do homem comum, lembrando por vezes os discursos dos sindicalistas que eles combateram durante décadas, seus slogans eram muitas vezes abertamente elitistas. Antes de ser cabo eleitoral de Trump e desempenhar o papel midiático de homossexual de direita, Milo Yiannopoulos posava com muito gosto com uma camiseta “Deixe de ser pobre” (“Stop being poor”).
Um desprezo largamente partilhado
Incansável provocadora de direita, neste momento afinada com a nova linha conservadora, Ann Coulter por muito tempo se deixou tomar pelo tipo de pânico moral que caracteriza sua classe desde o surgimento da modernidade: medo das massas humanas que se supõem sejam facilmente impressionáveis, emocionalmente instáveis e reproduzindo-se em excesso. Em seu livro Demonic,2 que expõe “como a máfia progressista coloca a América em perigo”, ela elogia o trabalho de Gustave Le Bon (1841-1931). A influência desse ensaísta francês, autor em 1895 de A psicologia das multidões, foi tal que despertou a admiração de Adolf Hitler e acabou sendo usado mais tarde como referência para os misantropos e eugenistas. Todo o discurso anti-imigração, que recentemente levou à decisão de Trump de construir um muro na fronteira mexicana, inscreve-se nessa tradição de medo das massas fervilhantes e das classes populares, tanto estrangeiras quanto autóctones. Essa desconfiança visou primeiro, no seio das sociedades ocidentais, os trabalhadores brancos, antes de encontrar um novo alvo nas minorias étnicas chegadas mais recentemente.
Em ambos os casos, a retórica é de uma coerência perfeita. Eles são muito numerosos. Eles têm muitos filhos. Eles vão devorar nossos limitados recursos. Não há lugar suficiente. Vão destruir e degradar nossa cultura. Mas o que choca na nova ordem política é a permutabilidade dessas opiniões: se Hillary Clinton tivesse vencido a eleição presidencial norte-americana, ou se os britânicos tivessem rejeitado em massa o Brexit, provavelmente haveria uma afinidade maior pelas pessoas entre os sociais-democratas e mais misantropia à direita do tabuleiro.
Aliás, ela não está ausente. A subcultura da supremacia branca propagada on-line pelo movimento da “direita alternativa” (alt-right) alimenta a desconfiança em relação às massas: qualquer pessoa que não mantenha na idade adulta esse desejo adolescente de se distinguir da sociedade é chamada de normie (deformação de “normal”) ou basic bitch (cadela básica), como se o separatismo branco fosse um obscuro gênero punk. A mesma hostilidade permeia os escritos e a retórica da direita nacionalista que é ativa na internet. Quanto mais se observam as forças reacionárias mobilizadas em favor do presidente bilionário, mais o oportunismo da virada populista deste último aparece.
O alvo dessa desconfiança em relação ao povo deslocou-se com o decorrer do tempo. Na Europa ocidental, no final do século XIX e durante boa parte do século XX, a intelectualidade tinha horror dos meios de comunicação de massa, que hoje elevam ao status de apóstolos os colunistas elitistas. Na década de 1930, o crítico literário britânico Franck Raymond Leavis liderou uma campanha contra “o cinema, os jornais, a publicidade em todas as suas formas” e advertiu contra a alfabetização e as novas tecnologias, responsáveis, segundo ele, por uma “crise da cultura” sem precedentes na história.
Como demonstrou o professor de Literatura John Carey,3 o ensaísta e poeta norte-americano-britânico T. S. Eliot descreveu os leitores de jornais como uma “massa autoindulgente, cheia de preconceito e desprovida de julgamento”. O escritor inglês David Herbert Lawrence preconizava cortar o mal pela raiz: “Fechemos todas as escolas [posto que] a imensa massa humana nunca deveria aprender a ler e escrever”. E Aldous Huxley: “A educação para todos criou uma imensa classe que eu chamaria os Novos Imbecis”. Já Charles Baudelaire condenou a fotografia, um “sacrilégio” que permite que a “multidão vil contemple sua imagem trivial”. Imaginamos o horror que lhe iria inspirar a moda das selfies…
Pior ainda era, de acordo com John Carey, o medo do crescimento demográfico. De 1800 a 1914, a população europeia passou de 180 milhões para 460 milhões de pessoas. Fazendo surgir aos olhos da intelectualidade o espectro de uma degradação cultural, esse aumento semeou pânico em seu seio. O romancista H. G. Wells descreveu um “enxame extravagante de novos nascimentos”, que chamou de “principal desastre do século XIX”. Em seu auge, essa preocupação se misturaria às políticas protofascistas, aos projetos eugenistas e genocidas.
Só se pode ficar profundamente chocado ao descobrir que tantos gigantes da literatura consideravam a maioria das pessoas como sub-humanas. “Acredito”, escreveu Gustave Flaubert, “que a multidão, a massa, o rebanho, serão sempre detestáveis.” Ezra Pound, que mais tarde se tornou um apoiador do fascismo, via a humanidade como uma “massa de idiotas”. Virginia Woolf se queixou desse “monstro anônimo, o Homem da Rua”. Para seu grande desgosto, a sociedade de massa não passava de uma “geleia de matéria humana vasta, mole e quase disforme que treme ocasionalmente para um lado ou para outro de acordo com os instintos de ódio, vingança ou admiração que a movem”.
Hoje, todo mundo considera essas tiradas o cúmulo do elitismo. No entanto, a cultura de massa absorveu um monte desses fantasmas. Esses mesmos meios de comunicação que ontem se suspeitava abririam o caminho para a tirania da multidão não tardaram a veicular o ódio das massas junto a elas mesmas. Os anos 1990 marcam nesse sentido um ponto de virada: o desprezo pela humanidade assume um ar desiludido e torna-se tendência, transformando uma postura da contracultura em traço dominante. Vemos então o famoso comediante norte-americano Bill Hicks ironizar com fortes efeitos sonoros o “milagre do nascimento” em espetáculos em que o amor pela humanidade briga com a consciência de classe: “Não é um milagre se a cada nove meses qualquer yin-yang no mundo pode pôr um repolho chorão a mais em nosso planeta. No caso de vocês não terem visto estatísticas recentes sobre mães solteiras, o milagre se espalha como um rastilho de pólvora. Aleluia! Em todo o mundo, os campings de trailers4 se enchem de pequenos milagres. […] Você sabe o que seria verdadeiramente milagroso? Seria que eu pudesse me lembrar do nome do seu pai, nome de Deus. Plof! Acho que vou ter de te chamar de Motorista Rodoviário Júnior. Plof! Eu te apresento teu irmão, Entregador de Pizza Júnior. Eis teu outro irmão, Exterminador de Baratas Júnior. E mais outro irmão, Marido de Aluguel Júnior”. Trinta anos depois, encontramos esse estilo nos novos fóruns de extrema direita, com seu ódio do corpo feminino que engravida, quer ele seja branco, negro, hispânico ou branco e pobre.
Em 1996, a Tool, uma banda de heavy metal valorizada pelos intelectuais e próxima a Bill Hicks, lançou seu álbum Ænima, cuja faixa principal compara a composição humana de Los Angeles com o conteúdo de vasos sanitários que mereceriam ser lavados por uma versão secular do Dilúvio bíblico: “Eis esse buraco podre chamado L.A.”, grita o vocalista, Maynard James Keenan; “a única solução é puxar a descarga”. Vários artistas grunge e metal retomariam esse refrão, entre eles a banda Slipknot. O grupo lançou em 2001 uma música que brilha pela concisão: “People = Shit” [Povo = Merda].
O estilo misantropo dos anos 1990 encontra também ressonância em outro campo da guerra cultural, entre os pregadores de ódio apocalípticos, como o pastor Fred Phelps, morto em 2014. Phelps defendia a aceitação do fim bem merecido que Deus previa para as massas norte-americanas superficiais, fervilhantes, terrestres e insuportavelmente carnais.
Foi também um pastor cristão, Thomas Malthus, que escreveu em 1798 o famoso Ensaio sobre o princípio da população, dotando o medo da natalidade descontrolada de uma legitimidade moral e filosófica. Ao fazê-lo, também forneceu apoio científico ao tratamento cruel infligido aos abrigos e orfanatos durante a Revolução Industrial, depois à ascensão do darwinismo social e à eugenia da Europa imperial.
Tal como a misantropia, as ideias malthusianas recuperaram popularidade nos círculos de esquerda na década de 1990. Elas já haviam reaparecido algumas décadas antes na contracultura ambientalista do pós-guerra. Com 2 milhões de cópias, o livro neomalthusiano The Population Bomb [A bomba populacional], escrito pelo biólogo Paul Ehrlich em 1968, transformava a superpopulação numa questão ambiental essencial. Ele defendia “o desenvolvimento de agentes de esterilização em massa”. Sua “tomada de consciência da superpopulação”, escreveu, remontava a “uma noite quente e nauseabunda em Déli, onde as pessoas passavam a mão pela janela do táxi para mendigar. As pessoas defecavam e urinavam. As pessoas se penduravam no ônibus. As pessoas criavam animais. Pessoas, pessoas e mais pessoas”. Ele estava com pressa para voltar a seu hotel porque tinha “medo da multidão”.
Um profundo mal-estar cultural
Murray Bookchin, um dos maiores defensores da esquerda moderna, mas também um de seus maiores críticos,5 percebia nos anos 1990 “um profundo mal-estar cultural que reflete a perda de confiança na capacidade criativa de nossa espécie”. Ele reprovou os chamados progressistas por promoverem um tipo de “higiene espiritual” no limite da eugenia para retardar o consumo desenfreado de recursos pelas massas.
Os velhos conservadores apegados à cultura defendiam o decoro, as boas maneiras, a preservação de grandes instituições e tradições. Esse projeto baseava-se, implicitamente, na fé, na dignidade e na infalibilidade humanas. A intelectualidade misantropa moderna se empenhava em proteger a elevada cultura das forças corrosivas da massificação: isso atestava ao menos certa devoção pela excelência na criação artística da humanidade.
Hoje, porém, o que eles têm a oferecer, esses partidários de Hillary Clinton que tratam as pessoas como imbecis? E esses niilistas misantropos de direita que desprezam os normies, o que eles têm a oferecer senão uma visão fatalista e sem futuro, ditada pelo determinismo biológico?
Em vez de se inspirarem nas grandes mobilizações populares e humanistas do passado, como o movimento dos direitos civis ou os movimentos sindicais, alguns dos críticos mais barulhentos de Trump se inscrevem na tradição elitista do medo e do desprezo. O que temos de enfrentar hoje é menos o populismo desenfreado do que um debate confuso sobre o que este representa e sobre as aspirações que as classes trabalhadoras podem alimentar.
*Angela Nagle é jornalista. Uma versão deste artigo apareceu na revista americana The Baffler, mar. 2017.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 117 – abril de 2017}