O dilema das milícias ucranianas
Em 18 de agosto, o presidente ucraniano, Petro Poroshenko, chamou o Exército e os batalhões de voluntários pró-governo a se reagruparem para cercar os insurgentes pró-Rússia no leste do país. A ofensiva de Kiev já fez mais de 2 mil mortos. Manipulando sua fibra patriótica, o governo procura empurrar os manifestantes
O caos começa quando cada um acredita poder interpretar a lei da forma como a entende.” O tom polido do procurador, um colosso de 150 quilos, não esconde a tensão que reina, nesse 25 de julho de 2014, na procuradoria de Khmelnitski, uma cidade média de 260 mil habitantes no coração da Ucrânia ocidental. Uma secretária pede aos cerca de vinte jovens de uniforme negro e impecável, com cassetete na cintura, que esperem enquanto o procurador recebe seus chefes, Yuri Lutsiuk e Ivan Kushnir.
“Somos uma organização registrada”, reivindica Kushnir. “Respeitamos a lei, recusamos a violência. Por enquanto, você pode falar com pessoas como nós, empresários; mas em breve, se isso continuar, você verá uma revolução proletária.” Ao expor a reclamação, os dois empresários, diretores de uma milícia, vacilam. O escrivão, de óculos e com um terno maior do que seu número, toma nota sem levantar a cabeça.
Primeiro, há processos penais contra os membros de seu grupo: é preciso encerrá-los. Em seguida, Kushnir toma a palavra: menciona o artigo 5o da Constituição ucraniana, que garante o “direito do povo de exercício direto de poder”, e se refere ao artigo 143, que reconhece aos cidadãos o direito de gerenciar as finanças públicas locais. E, para concluir, “os funcionários locais devem ser eleitos pelos cidadãos”. Na perspectiva desses dois patrões, o Estado ucraniano está corrompido em seu próprio interior. Convém simplesmente se livrar dele. O procurador não se convence.
Patrões armados e “revolucionários”
Lutsiuk, Kushnir e seus homens nadam na contracorrente. Desde março, a pressão exercida pela população sobre as instituições ucranianas diminuiu. Desacreditadas pela corrupção endêmica e pela repressão das manifestações durante o inverno europeu de 2013-2014, elas enfrentaram até a primavera um vasto movimento que reivindicava a instauração do Estado de direito e a autonomia local. Com a abertura da “frente do Leste”, porém, a prioridade agora se tornou defender a integridade nacional contra o inimigo externo que ameaça as fronteiras – a Rússia – e contra a “quinta coluna” separatista. Qualquer tentativa de desestabilização das autoridades é assimilada, nesse contexto, como uma traição à pátria, como uma cumplicidade objetiva com os grupos armados separatistas pró-Rússia que, de Lugansk e Donetsk, buscam reproduzir o precedente da Crimeia.
Esses dois “revolucionários” – eles não temem a qualificação – militam por uma democracia direta de um gênero particular. Pertencem a uma camada de dirigentes de empresas que já não se acomoda em um sistema de corrupção que se tornou ávido demais. Veterano da guerra do Afeganistão, que afetou sua forma de caminhar, Kushnir possui 10 mil hectares de terras agrícolas; Lutsiuk, uma construtora. “Sem Yanukovich, a corrupção atingiu níveis insuportáveis. Antes, de 2% a 4% dos meus negócios eram destinados a propinas. Hoje, pago 15%. Há dois anos, minha empresa perde dinheiro”, entoa o segundo.
Seu engajamento político não data de ontem. Ele participou da “revolução laranja” em 2004 e das manifestações em Maidan, a Praça da Independência de Kiev, para contestar a eleição de Viktor Yanukovich. Em seguida, tornou-se membro de uma associação cultural cossaca, que mistura o retorno à autenticidade da natureza e o culto viril do manuseio de armas. Ele e seus camaradas pretendem ressuscitar o espírito de liberdade e igualdade dessa comunidade guerreira que resistiu a diferentes potências (Polônia, Rússia, Império Otomano) que tentaram conquistar a Ucrânia.
O binômio anima a milícia de autodefesa popular. Ou antes, o que resta dela. Os cerca de trinta homens que se remuneram pelo quadro de funcionários de uma empresa de segurança parecem mais uma guarda reabilitada que um braço armado de uma revolução. Esse grupo surgiu no contexto das manifestações de 23 de janeiro de 2014, quando Khmelnitski, assim como outras cidades do oeste da Ucrânia, se solidarizou com os manifestantes de Maidan, entre os quais já se faziam os primeiros mortos.
Algumas semanas depois, no dia 19 de fevereiro, quando os enfrentamentos com a polícia resultaram em oitenta mortos entre os manifestantes e 22 nos setores da força da ordem, uma grande multidão impedia os reforços das tropas de elite Alfa de chegar a Kiev. Recuados em um edifício, os serviços de segurança (o SBU) abriram fogo, matando uma mulher e ferindo seis pessoas. Sob ameaça da milícia de autodefesa, o chefe local do SBU teve de se ajoelhar e pedir perdão às massas. O primeiro comandante da milícia, um membro do partido ultranacionalista Svoboda, foi rapidamente descartado pela base. “Percebemos que ele atuava apenas pelo Svoboda. E demandava sistematicamente o aval do deputado [Igor] Sabyi para nossas ações”, recorda Lutsiuk.
Após a incursão na Crimeia, no dia 27 de fevereiro de 2014, dos soldados russos mascarados, prelúdio à anexação da região a Moscou, o pensamento patriótico chegou àqueles que, em Kiev ou ainda na Ucrânia, eram tentados pela revolução permanente. Em Khmelnitski, membros da milícia de autodefesa agora trabalham com a polícia, para desgosto de Lutsiuk e Kushnir. De repente, ambos passaram a liderar milícias secessionistas que buscam “abater o sistema” e empreendem suas ameaças às administrações da cidade.
Apesar do refluxo das manifestações, Lutsiuk ainda acredita que “em cinco minutos é possível mobilizar vinte pessoas. Em meio dia, cem pessoas. Uma semana, mil ou mais”, afirma. Contudo, no fim de julho, as ruas esvaziaram-se de manifestantes e os espíritos se voltaram para o Leste. Diante de retratos desbotados do panteão – os heróis caídos em Maidan – afixados no monumento da praça central, um casal sentado sob um pequeno toldo cuida de uma urna de notas de dinheiro cheia até a metade: a coleta é a favor dos voluntários que partiram para combater os separatistas em Donbass. No dia 23 de julho, o presidente ucraniano, Petro Poroshenko, eleito em junho, decretou a terceira onda de mobilização. “O comício passou em frente à minha casa, são cerca de mil pessoas mobilizadas em toda a cidade”, conta um motorista de táxi sem muito entusiasmo.
Dissolvida em 2000 pelo ex-presidente Leonid Kuchma, a Guarda Nacional foi restaurada em 13 de março de 2014 com a finalidade de reorientar a energia dos protestos – até então dirigida contra as autoridades – para o inimigo externo e sua presumida quinta coluna. Essa instituição reúne alunos de academias militares e voluntários dos serviços da ordem paramilitarizados e oriundos das manifestações do último inverno. Seu papel: defender a integridade territorial e prevenir as ações de subversão do Estado. Concretamente, os guardas protegem lugares e edifícios estratégicos, ou fazem a segurança de cidades retomadas pelo Exército. Os centros de recrutamento se encheram à medida que as barricadas foram desertadas. Em Kiev, um punhado de manifestantes continuou a ocupar a Praça da Independência, pronto para se voltar contra o novo poder se ele trair as esperanças de Maidan.
Se vivesse na capital, Lutsiuk seria desses. “A guerra é uma forma de enviar ao abatedouro patriotas que lutam em cada cidade para que a revolução vá até o fim”, condena. Assim como o governo precedente, o poder oriundo da revolta de inverno desconfia desde uma concentração de armas até uma saraivada de pedras nos ministérios e palácios. No dia 20 de março de 2014, logo após a eleição presidencial, Nikolai Velichkovich, adjunto do ministro do Interior, já declarava: “Aqueles que desejam retomar a estabilidade e contribuir para o reforço das tropas ucranianas podem entrar na Guarda Nacional: é uma forma de se realizar. Precisamos compreender que a Atamanchtchina sempre destruiu o Estado”.
A palavra ataman(“chefe cossaco”) condensa o espírito cossaco que contribui para a retomada identitária na Ucrânia com base na ideia de auto-organização; o sufixo chtchina confere-lhe um sentido pejorativo. Contudo, em Khmelnitski, os símbolos cossacos dão cor à mobilização militar. O batalhão de voluntários da cidade chama-se Bogdan, em homenagem ao nome do chefe cossaco Bogdan Khmelnitski, epônimo da cidade. Khmelnitski conduziu, em 1648, a insurreição contra a dominação polonesa – uma revolta contra os numerosos pogroms. Da rebelião, nasceu o primeiro Hetmanat (Estado) cossaco, que permanece, na memória oficial, como o primeiro passo em direção à independência ucraniana. A imagem de Bogdan, elevado à categoria de herói nacional, decora as notas de 5 grívnias.
O espírito cossaco contra o Estado
A União Soviética não o omitiu em seu panteão. Prefigurando a amizade entre os povos eslavos, o Estado cossaco nascido dessa rebelião assinou em 1654 o Tratado de Pereiaslav, que selou a aliança com a Moscóvia: traição indelével para certos nacionalistas. Em 1954, ano do tricentenário do tratado, o dirigente da URSS, Nikita Kruchev restituía a Crimeia à República Soviética da Ucrânia, e a cidade de Proskurov foi rebatizada como Khmelnitski. Herói ambíguo, à frente de um Estado ucraniano novamente sob controle da Rússia, Bogdan Khmelnitski ressurge para significar que, nesses momentos de perigo nacional, o patriotismo daqueles que continuam na administração pública torna-se suspeito.
A Guarda Nacional deve permitir desarmar com cuidado o movimento de Maidan apostando na marginalização dos rebeldes. Condenando a imundície e a delinquência que reinam nas tendas de Maidan, o novo governo chegou até a levantar a hipótese de uma infiltração russa. “A concentração de indivíduos não identificados na praça principal do país é um projeto do FSB [serviços de inteligência russos] e dos partidos marginais que pertencem ao passado”, declarou em 13 de julho o ministro do Interior, Arsen Avakov, no canal TSN. Após fortes embates, no dia 7 de agosto de 2014, entre ocupantes e forças da ordem, as barricadas foram desarmadas. Diante do último episódio, o governo enviou a Guarda Nacional para reforçar os efetivos da polícia.
O retorno à ordem a favor do sobressalto patriótico, contudo, está longe de ser garantida. Os pilares institucionais e econômicos do Estado ucraniano estão fissurados. O primeiro-ministro, Arseni Yatseniuk, deu a entender que as finanças do Estado não permitiam financiar a operação “antiterrorista”: “Nosso governo não tem resposta para as perguntas ‘como pagar os salários amanhã?’ e ‘como fazer para comprar tanques e financiar o Exército?’”, lançou em Rada, o Parlamento ucraniano, no dia 24 de julho.
Um imposto especial de guerra
Adotado em meados de abril, o plano de salvamento econômico, combinando esforços da União Europeia, Banco Mundial, Estados Unidos e Fundo Monetário Interacional (FMI), prevê um auxílio total de US$ 30 bilhões (empréstimos e doações), condicionados a reformas estruturais e distribuídos durante vários anos.2 Em contrapartida, o FMI exigiu a redução das subvenções ao setor energético. Essa medida, combinada ao aumento das tarifas do gás russo destinado à Ucrânia, foi duramente sentida pela população: o gás natural aumentou 63%, a eletricidade, 11%, e o aquecimento, 40%.
Para desbloquear a segunda parte dos US$ 17 bilhões do FMI, o projeto de retificação do orçamento do Estado prevê medidas econômicas equivalentes a 1% do PIB, em um contexto no qual a diminuição dele deve atingir –6,5% no fim de 2014. O imposto especial de guerra (1,5% da massa salarial das empresas) e o anúncio do primeiro-ministro de um “plano de privatização sem precedentes nos últimos vinte anos” não serão suficientes. Onerado pela explosão de gastos militares, o novo orçamento terá cortes no salário dos funcionários públicos, no seguro-desemprego e nas pensões por invalidez. Por enquanto, o déficit permanece financiado pela impressão de papel-moeda, provocando uma grande desvalorização da grívnia e do sistema bancário.
Já fragilizado no plano econômico, o Estado também vê ameaçado seu monopólio da força. A Guarda Nacional não conseguiu absorver todos os manifestantes e espera o auxílio de instrutores e armamentos prometidos para 2015 por Barack Obama. Em maio, as operações militares pareceram confusas em razão da ação autônoma de batalhões de voluntários, cujos mais célebres são financiados por Igor Kolomoiski, um oligarca da região de Dnipropetrovsk. Os ministérios do Interior e da Defesa, contudo, conseguiram coordenar a ação dos batalhões e colocá-los sob sua autoridade. À custa de bombardeios maciços, a rebelião separatista, munida de armas pesadas, foi recuada para suas trincheiras.
No dia 11 de agosto, o porta-voz do Exército anunciou a “fase final da libertação de Donetsk”. A concentração de tropas russas na fronteira deixava no ar a ameaça de uma escalada militar, enquanto as mortes do “frontdo Leste” haviam ultrapassado de longe as de Maidan. Segundo a ONU, entre o início da operação “antiterrorista” em meados de abril e o dia 10 de agosto, mais de 2.080 pessoas – civis, soldados e membros dos grupos armados – morreram.
O próprio Lutsiuk às vezes é tentado a “acabar o mais rápido possível com o front do Leste”. Deixando de lado seu primeiro julgamento hostil à guerra, diz-se pronto a entrar, com seus homens, no batalhão Bogdan.
Hélène Richard é jornalista.
1 Viktor Yanukovich, presidente eleito em 2010 e pressionado pelas manifestações de inverno de 2013-2014, e depois destituído pelo Parlamento em fevereiro de 2014.
2 Ler Julien Vercueil, “Aux racines économiques du conflit ukrainien” [As raízes econômicas do conflito ucraniano], Le Monde Diplomatique, jul. 2014.