O direito de matar
O Brasil instituiu o direito de matar. Uma lógica tão perversa quanto fecunda – a contar pelas suas vítimas, sacrificadas, como todas as outras que a história, aqui e acolá, espalha sobre tórridas paisagens
Quando viajou pela América do Sul, incluindo o Brasil, em 1949, Albert Camus apresentou uma conferência cujo título é ao mesmo tempo dramático e contundente: O tempo dos assassinos. Considerado como uma espécie de trabalho preparatório do que seria, posteriormente, o agora sexagenário O homem revoltado. A obra, publicada com polêmica em 1951, analisa aquilo que o autor considera a maior doença do seu tempo: “o ato de matar um ser humano pode ser encarado sem o horror e o escândalo que deveria provocar”.
Para Camus, os horrores dos campos de concentração e dos totalitarismos que infectaram a Europa de seu tempo testemunhavam uma peste sem precedentes: “A Europa”, ele escreve, “sofre de assassinato e abstração”. Seu diagnóstico parte de uma constatação aterradora: “chegamos a isso pelo pensamento”, o que significa, pelo niilismo, essa crise sem precedentes que levou ao chão as bases da civilização ocidental e se condensou nas explosões atômicas, como vontade de destruição, autorizada por uma derrocada dos valores morais capazes de orientar a ação humana.
Foi o niilismo, como pensamento marcante de uma geração, que autorizou a morte em grande escala, porque, antes, tinha difundido a ideia de que tudo estava permitido e que nada tinha mais importância. Camus, como se sabe, leitor atento de Nietzsche, repercute o diagnóstico do filósofo alemão, para quem o niilismo é uma ruína das cláusulas pétreas da civilização, sintetizadas nas ideias de finalidade, unidade e verdade. A vida perde o sentido, o mundo perde a unidade e o ser humano se desengaja da verdade. Eis o pensamento que autoriza o direito de matar, caracterizado por Camus (tendo em conta a tecnologia aplicada à morte tanto no caso das bombas atômicas quanto dos experimentos com seres humanos nos campos de concentração) como um “matar cientificamente”, um “assassinato científico” (2019, p. 175).
O niilismo tem o pavoroso efeito de esvaziar o espírito humano de todas as suas regras, normas e interdições. De fato, ele instaura o reino da libertinagem que reivindica tudo, de armas na mão. Tudo: inclusive o assassinato, pretensamente legitimado por essa mesma reivindicação de liberdade. Não é por acaso que nas primeiras páginas da obra de 1951 Camus afirma que o homem revoltado é “um homem que diz não” e que “este não afirma a existência de uma fronteira”. A revolta é a recusa da liberdade absoluta do niilista travestido em opressor e assassino. O revoltado é aquele que diz coisas do tipo: “as coisas já duraram demais”, “até aí, sim; a partir daí, não”; “assim já é demais”, e, ainda, “há um limite que você não pode ultrapassar” (2020, p. 27). A revolta, por isso, é uma espécie de afirmação do limite, uma advertência, uma repreensão e uma queixa. O revoltado, afinal, recusa-se à lógica da morte científica, que mata legitimada em um direito exagerado. A revolta é um remédio conta a doença do assassinato.
Quando olhamos para o Brasil contemporâneo, o cenário é desolador, precisamente porque identificamos a mesma doença comandando os nossos destinos. Camus, em suas impressões do nosso país, adivinhou algumas dessas corrosões. Somos um país invertebrado, para aproveitar a expressão de Ortega y Gasset, precisamente porque nos faltam os acordos coletivos e a necessária confiança nas normas comuns sobre as quais se ergue a vida social. Há muitos símbolos dessa ruína, mas poucos são tão expressivos quanto a fatídica declaração do agora ex-ministro do meio ambiente na reunião de Brasília no dia simbólico do aniversário de 520 anos da invasão do nosso país, 22 de abril de 2020: o seu palavreado chulo e cínico (“passar a boiada” e “passar as reformas infralegais de desregulamentação”) dá contornos ao “tudo é permitido” do niilismo tradicional, agora vivido como política de governo, no qual os dois sentidos elencados por Camus são agravados: a polêmica, que é a linguagem da eficácia; e a intimidação, que é a política da eficácia (2020, p. 176). Polêmica e intimidação são as armas de quem não reconhece a base democrática do diálogo e, no seu lugar, instaura o medo e sobretudo a morte. Onde não tem diálogo, fala o silêncio da crueldade que sabe de rebaixamentos e mentiras, fake news, memes e outras parafernálias politiqueiras de efeito nefasto.
O ex-ministro é um promotor do direito de matar. Nas suas e nas mãos do seu chefe executivo, o próprio presidente da república, a natureza vem sendo assassinada. Aos altíssimos índices de desmatamento, queimadas e extinção das espécies, some-se os ataques constantes aos povos indígenas, cujo escárnio final é a aprovação da PL 490 no Congresso Nacional. Tudo autenticado em uma reivindicação de liberdade absoluta, cujo discurso oficial transformou, sob o aplauso surdo de uma parcela da população, todas as normas e leis de garantias às minorias, em “coisa de esquerdopatas” ou destroços do petismo. A essa mecânica perversa, outras se somam: as da homofobia, do feminicídio, da liberação descontrolada de agrotóxicos, da corrupção endêmica e, sobretudo, da tragédia coletiva que transformou o nosso país num grande cemitério. Assassinatos reivindicados sob o direito de ir e vir que gera aglomerações e se recusa a usar uma simples máscara, enquanto ultraja a ciência com cinismo e insolência indizíveis.
Os mais de 500 mil brasileiros mortos pela pandemia são o sinal mais aterrador de um povo que reivindica (sabendo ou sem saber, o que dá no mesmo) o direito de matar. De alto a baixo, as atitudes que questionam a obviedade das medidas sanitárias são parte dessa doença. No supermercado, o senhor agrediu a atendente ensandecido, porque ela lhe pedira para colocar a máscara: ele reivindicava o direito de ser livre que, na prática, significava o direito de matar quem quer que fosse. Revela-se aí, como em tantos outros casos, um ódio à regra e ao limite. O mesmo que alimenta o homem do Planalto, que segue aglomerando, em motocicleta sem capacete e sem máscara, como se estivesse acima de todas as normas, dono de uma libertinagem constrangedora. Ele sequer desconfia do que escreveu Camus, que “o papel da política é arrumar a casa” (2019, p. 184). Nas suas mãos, o senhor da casa pode tudo, inclusive destruir a casa. Esquece o patife que qualquer senhor precisa de um objeto sobre o qual exercer o seu poder e que ao destruí-lo, perde junto o seu posto. E sobretudo, que não há casa sem moradores – e aqui, eles estão morrendo aos milhares, com a pretensão da legitimidade que continua bramindo que “é só uma gripezinha”, para o qual vermífugos e cloroquinas são suficientes – não vacinas.
Por essas e outras, o Brasil instituiu o direito de matar. Uma lógica tão perversa quanto fecunda – a contar pelas suas vítimas, sacrificadas, como todas as outras que a história, aqui e acolá, espalha sobre tórridas paisagens. Camus afirmou que só o diálogo nos salvaria e, inspirado por Sócrates, que “não existe homem sem diálogo” (2019, p. 187), convocando artistas e pensadores a ficar “do lado da vida, não da morte”. Perdoado o clichê, Camus reivindica a “eterna vocação da inteligência” como única saída frente à barbárie manifesta nessa doença, mais terrível quanto mais se somam os mártires. É só o diálogo, como reconhecimento da alteridade, que haverá de nos salvar dessa “suprema cegueira” na qual “espíritos embriagados já não veem nada senão a si mesmos” (2019c, p. 178). Eis o nosso grande drama: a ablepsia que impede de ver o outro e, consequentemente, de dirigir-lhe uma palavra ou um olhar empático e solidário. O direito de matar, afinal, legitimado pela ignorância absoluta, é difundido como contrassenso que incapacita qualquer afeição que não seja o egoísmo e seus homicídios. É para esse mal que precisamos de um limite, re-instaurado coletivamente, por meio de um valor comum a todos, que é o sempre inavaliável e inviolável direito à vida. Esse talvez seja o combustível mais necessário para a revolta que carecemos com urgência, cuja última reivindicação é a unidade criativa: “eu me revolto, logo existimos”.