O discreto adeus de Jeremy Corbyn
Após suscitar a esperança para bem além das fronteiras do Reino Unido sob a direção de Jeremy Corbyn, o Partido Trabalhista designou um novo dirigente: Keir Starmer, que não chega a encarnar nem a continuidade nem um retorno ao “New Labour” de Tony Blair. Seu principal trunfo? O fiasco da gestão da pandemia pelo atual primeiro-ministro conservador, Boris Johnson
O mandato de Jeremy Corbyn à frente do Partido Trabalhista terminou em abril, em meio a um silêncio sepulcral. O Reino Unido encontrava-se em pleno confinamento. Seu destino estava nas mãos do Serviço Nacional de Saúde (National Health Service, NHS), cujo subfinanciamento e falta de efetivos Corbyn não cessara de denunciar, e à mercê de um primeiro-ministro sem nenhuma experiência em gestão de crise.
O vírus parecia ter esvaziado as apostas na consulta interna destinada a encontrar um sucessor para Corbyn, no rastro do pesado fracasso de seu partido nas eleições gerais de dezembro de 2019. Como previsto, Corbyn cedeu o lugar para Keir Starmer, ex-porta-voz do Labour, que angariou 55% dos votos entre os militantes, simpatizantes e sindicalistas filiados ao partido – um placar apenas um pouco inferior ao obtido por Corbyn em 2015 (59,5%).
Starmer era procurador-geral antes de entrar para a política e ser eleito para o Parlamento em 2015. Deu à direção do Partido Trabalhista o toque de notabilidade que faltava a seu antecessor. Sua aréola de competência e autoridade revelou-se um trunfo precioso na conquista de uma base cansada de cinco anos de incessantes conflitos internos, permitindo que se apresentasse como um candidato confiável ao posto de primeiro-ministro. O antigo magistrado prometeu trabalhar para a reconciliação de sua família política, um objetivo que, considerando as divisões que sempre a minaram, e mais ainda após o episódio neoliberal dos anos Blair, parece difícil de atingir. O melhor que ele podia esperar era aplacar um pouco a atmosfera febril e ultrapolarizada da era Corbyn.
Entretanto, o novo diretor do Labour tomou o cuidado de não divergir da diretriz política fixada pela direção anterior – renacionalização das estradas de ferro, injeção de dinheiro pago pelos ricos e pelas grandes empresas nos serviços públicos, intervenção mais rigorosa do Estado no insaciável setor bancário britânico e em outros âmbitos da economia, como no plano de construção de moradias públicas etc. Consciente de que uma ruptura com esse programa o afastaria de três quartos dos partidários (mais numerosos que o total dos membros de todos os outros partidos juntos), entre os quais muitos aderiram ao Labour atraídos pela linha de Corbyn, Starmer optou pela continuidade. É verdade que, após dez anos de uma brutal austeridade conservadora, a necessidade de uma alternativa de esquerda impôs-se ao partido, cuja maioria não seguia os dogmas do “New Labour” dos anos Blair – desregulação, privatizações, diminuição de impostos. A ruptura com quarenta anos de hegemonia neoliberal bipartidária parecia no momento bem consumada, e poderia até recrudescer ainda mais.
“Nada mais que socialismo”
Pela primeira vez em sua história, a ala de direita do Partido Trabalhista, que dominava havia gerações, de Herbert Morrison durante a Segunda Guerra Mundial a Tony Blair e David Miliband mais recentemente, fracassou em apresentar um candidato ao posto de secretário-geral. Já se pressentia que Jess Phillips, deputada de Birmingham, não estaria à altura do desafio, e ela abandonou a luta assim que compreendeu que lhe faltaria o apoio dos militantes e dos sindicatos.
Essa mudança de clima político não teve a menor importância se comparada à reeleição de Corbyn em 2016, depois da campanha orquestrada pelo grupo de parlamentares trabalhistas para demiti-lo de seu posto. Jamais, no decorrer de 120 anos de existência, o Labour havia visto seus parlamentares, detentores tradicionais da autoridade no seio do partido, renegados de maneira tão humilhante.
Certamente ainda é muito cedo para falar de uma virada irreversível. A mídia saudou a vitória de Starmer como sendo um retorno à normalidade. As primeiras decisões que ele tomou logo que eleito, à sombra da todo-poderosa crise sanitária, tendem a lhe dar razão.
Os dois partidários mais próximos de Corbyn, John McDonnell e Diane Abbott, encarregados respectivamente da economia e dos assuntos internos, haviam indicado antes das eleições que pediriam demissão em caso de fracasso de seu mentor. Ao selecionar os membros de seu próprio gabinete fantasma, Starmer conduziu quase todos os outros “corbynistas” para a saída. Para substituí-los, não buscou trazer os veteranos dos anos Blair, a maioria aposentada desde a ascensão de Corbyn e do golpe abortado em 2016, mas optou por escolher os jovens centristas do grupo parlamentar, que apresentavam a vantagem de não estarem implicados nas guerras de facções dos últimos anos. Exceção notável, Rebecca Long-Bailey, a candidata pró-Corbyn derrotada por Starmer, pôde conservar seu posto de porta-voz responsável pela Educação. Estamos longe de um “de volta para o futuro”.
Starmer distancia-se dos traços mais característicos de seu predecessor, aqueles que produziram o “corbynismo” – embora o próprio Corbyn sempre tenha recusado esse termo, considerando que “não havia ali nada além do socialismo”.
O primeiro desses traços é o anti-imperialismo. O antigo chefe dos trabalhistas se opôs energicamente às guerras de intervenção no Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria, apoiando corajosamente a causa palestina. Cético em relação à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), defendeu um desarmamento nuclear unilateral e denunciou as ligações militares e econômicas do Reino Unido com a Arábia Saudita e com outras ditaduras do Golfo. Tomou a palavra nas manifestações para criticar o presidente norte-americano, Donald Trump, durante sua visita à Londres.
É verdade que, em matéria de política externa, Corbyn teria enfrentado as piores dificuldades para introduzir suas reivindicações se por acaso tivesse chegado ao número 10 da Downing Street. Considerando as divisões no seio dos trabalhistas sobre esses assuntos, não existe cenário plausível no qual uma maioria parlamentar apoiaria um desarmamento nuclear, menos ainda uma saída da Otan. No entanto, é essa parte do programa de Corbyn que provocou mais agitação entre as classes dirigentes, incluindo aí a ala da direita do Labour, enraizada em suas tradições imperialistas e atlantistas. As elites poderiam, a rigor, aceitar uma gestão pública das águas, mas certamente não uma ruptura da aliança com Washington ou uma reviravolta na política britânica no Oriente Médio. Apesar de Starmer afirmar sua oposição às intervenções militares, como a ocorrida no Iraque, não se deve contar com ele para desobedecer às tradições.
Isso nos leva à segunda novidade do “corbynismo”: o desejo de apoiar a ação política nos movimentos sociais, e não mais somente na rotina parlamentar. Essa estratégia é muito bem personificada pelo próprio Corbyn, parlamentar discreto durante 32 anos, mas figura familiar nas manifestações contra a guerra, a austeridade e as injustiças de todo tipo. Porta-voz da Stop the War Coalition, um coletivo que mobilizou 2 milhões de pessoas em 2003 contra a invasão do Iraque, na maior manifestação do Reino Unido, Corbyn inaugurou seu mandato à frente do Labour em 2015 tomando a palavra em uma marcha pelos direitos dos refugiados – uma prática compartilhada por McDonnell e Abbott. McDonnell foi o primeiro chanceler de um gabinete fantasma a marcar regularmente presença nos piquetes de greve.
O percurso político de Corbyn muitas vezes foi ridicularizado (a palavra não é forte demais) por seus inimigos no seio do Labour, para os quais qualquer engajamento fora dos bancos de couro do palácio de Westminster traduz uma preferência infantil pela contestação em detrimento da busca pelo poder. Sua atitude ambivalente em relação às hipocrisias afetadas do parlamentarismo suscitava menos preocupação entre os parlamentares do que seu anti-imperialismo. Em parte, é por essa razão que Corbyn fracassou em sua tentativa de reformar – até mesmo transformar – a natureza do Partido Trabalhista. Minoritário até 2018 no seio do comitê executivo do Labour e combatido no Parlamento por seu próprio grupo político durante todo o seu mandato, ele se viu de mãos atadas. Suas reformas que buscavam a democratização interna foram modestas: um pouco mais de liberdade para as associações locais não reconduzirem as candidaturas de parlamentares rebeldes; recrutamento de uma equipe de organizadores para ajudar a reconstruir o Labour nas antigas regiões industriais onde seu enraizamento se atrofiara.
Corbyn nunca foi tão feliz como quando fazia campanha pelo país, mas as pressões da vida parlamentar pouco a pouco esvaziaram a vitalidade de seu “corbynismo”. Essa dificuldade aumentou no momento em que ele precisava administrar as divisões em relação ao Brexit, esforçando-se para reduzir o fosso entre os parlamentares e a maioria dos partidários de um lado e a maioria de eleitores da classe operária de outro. As dificuldades da esquerda em imaginar um mundo fora da União Europeia acabaram por anunciar o fim do projeto de Corbyn, assim como arruinaram, na Grécia, a esperança do Syriza em remediar a pobreza. Porém, o Syriza estava mais alinhado com sua base eleitoral que o Labour. Em razão da super-representação em seu interior das elites do norte de Londres, os dirigentes trabalhistas tendiam a negligenciar os aspectos mais contestáveis da política europeia, como a imposição de planos de austeridade aos quatro cantos do continente, o crescimento da influência do capitalismo, a opacidade democrática de Bruxelas e a política da “fortaleza Europa” em relação aos que procuravam asilo. Preferiam colocar à frente a dimensão cultural da União ou as virtudes das normas europeias em matéria de meio-ambiente, de consumo ou de trabalho, mais restritivas que as em vigor no Reino Unido.
Uma paisagem política conturbada
A fratura no seio do Labour entre os adeptos do liberalismo e os adeptos da democracia venceu o “corbynismo”. O conflito degenerou a partir de 2017, quando a promessa feita por Corbyn de respeitar o resultado do referendo de 2016 sobre o Brexit valeu ao Labour conhecer sua mais expressiva ascensão eleitoral desde a Segunda Guerra Mundial, passando de 30% dos votos em 2015 para 40% dois anos depois. A partir de então, os notáveis do partido não cessaram de tentar inverter o veredito do referendo, reclamando um segundo escrutínio, no lugar de um “soft Brexit” [Brexit suave] negociado. Essa estratégia, combinada com o bloqueio de qualquer iniciativa parlamentar para resolver a crise, pulverizou a frágil coalisão reunida em torno de Corbyn. Consciente de que a manutenção da esquerda à frente do partido dependia essencialmente de seu desempenho nas urnas, a derrota dos trabalhistas nas eleições de dezembro de 2019 (32% dos votos), marcada por um forte desinteresse nas circunscrições operárias do norte e do centro do país, revelou-se fatal para o secretário-geral e sua equipe, embora muitos dirigentes tenham obtido resultados ainda mais medíocres no curso dos últimos quarenta anos.
Sem surpresa, a ala direita do Labour apressou-se em atribuir a responsabilidade desse recuo a Corbyn e ao seu posicionamento em relação à segurança e à imigração, misturando a essas recriminações constantes alegações de antissemitismo. Dois anos antes, no entanto, as visões anti-imperialistas do líder dos trabalhistas não dissuadiram os eleitores a votar maciçamente em seu partido.
Hoje, Starmer enfrenta uma paisagem política profundamente conturbada. Durante cinco anos, Corbyn e sua equipe se opuseram com força à austeridade dos governos conservadores de David Cameron e Theresa May e à sua vontade obstinada de cortar os serviços públicos e o nível de vida das classes médias e operárias em benefício dos ricos e proprietários. Antes mesmo de o coronavírus atingir o país, os conservadores de Boris Johnson mudaram parcialmente o curso dessa política, aumentando o salário mínimo em 6% e prometendo elevar as despesas públicas nos setores da saúde e infraestrutura. É o mínimo que podiam fazer para conservar seus votos novamente conquistados nas circunscrições do norte. A hospitalização de Boris Johnson no auge da epidemia reforçaria essa tendência.
Se a austeridade passou para segundo plano, a ladainha das fraquezas na gestão da crise epidêmica – despreparo, confinamento tardio, jogo perigoso com a teoria da “imunidade coletiva”,1 penúria crônica de equipamentos de proteção para o pessoal da saúde, falta gritante de testes – constitui para Starmer um novo foco. Sem eleição nacional durante os próximos quatro anos, há tempo para reconstruir. Obter o mesmo resultado em 2023 que Corbyn em 2017 parece um objetivo a seu alcance.
Se esse prazo pode convir a Starmer, para Boris Johnson pode não bastar. O Reino Unido é um dos países mais duramente atingidos pela epidemia. Segundo algumas estimativas, os danos à sua economia são de tal ordem que esta não se recuperará antes de 2022 – uma perspectiva ainda menos reluzente, visto que os índices econômicos do ano passado correspondem aos de 2008, tendo o país atravessado uma “década perdida” de estagnação.
Nesse sentido, a crise atual se confunde com a anterior. Apesar de Boris Johnson clamar que superará a crise, as promessas do populismo de direita correm o risco de se revelar não menos vazias que as do centrismo neoliberal.
Andrew Murray é ex-conselheiro de Jeremy Corbyn e líder do sindicato britânico United. É autor de Fall and Rise of the British Left [Ascensão e queda da esquerda britânica], Verso Books, Londres, 2019.
1 Ler Théo Bourgeron, “Au Royaume-Uni, la tentation de l’inéluctable” [No Reino Unido, a tentação do inevitável], Le Monde Diplomatique, abr. 2020.