O distanciamento social como forma de cuidado coletivo
Em tempos de pandemia e de um governo ultra-neoliberal de extrema-direita no Brasil, a pandemia de covid-19 coloca em relevo a fabricação de uma dicotomia visível e ilusória entre o cuidado individual, cujo alvo é manter a biologia individual em um pólo que se considera saudável, e o cuidado coletivo, que visa impedir o espraiamento do vírus por meio do distanciamento e o isolamento social.
A antropóloga inglesa Marilyn Strathern, no já longínquo ano de 1989, auge do governo neoliberal de Margareth Thatcher no Reino Unido, argumentou que o conceito de sociedade estava teoricamente obsoleto para o uso das ciências sociais. De acordo com a autora, a nossa ideia de sociedade como entidade abstrata fez parecer que as relações sociais (intrínsecas e não extrínsecas à experiência humana) eram secundárias e não primárias para nossa existência.
Em outras palavras, a ideia de sociedade havia sido operacionalizada como se estivesse em oposição ao indivíduo, em nome de um individualismo prescritivo que, “entre outras coisas, torna invisíveis os colossais interesses comerciais e militares multinacionais, uma vez que tudo o que ‘vemos’ é até que ponto o cliente é o beneficiário de serviços” (2017, p. 199). Esse movimento, exemplificado no neoliberalismo tatcherista, reuniu, então, todos os tipos de coletividade e organização que tivessem por característica uma presença social, e os descartou em nome de tal individualismo. “Como a sociedade não existe mais”, conclui a autora, “o fato de possuírem uma natureza social já não lhes confere legitimidade” (Id. Ibid.).
Diversos paralelos podem ser traçados entre a argumentação da autora com o momento presente que vivemos. Em tempos de pandemia e de um governo ultra-neoliberal de extrema-direita no Brasil, a pandemia de covid-19 coloca em relevo a fabricação de uma dicotomia visível e ilusória entre o cuidado individual, cujo alvo é manter a biologia individual em um pólo que se considera saudável, e o cuidado coletivo, que visa impedir o espraiamento do vírus por meio do distanciamento e o isolamento social. Essa dicotomia traz uma falsa impressão de que pessoas adotando o isolamento o fazem em nome de um cuidado em saúde que protege apenas aquelas e aqueles que se isolam, um ato eminentemente individual e, porque não, egoísta – chamado por alguns, inclusive, de “privilégio de classe” reservado aos abastados que têm como tomar essa decisão unilateralmente, a despeito das relações trabalhistas frequentemente abusivas e assimétricas entre empregadores e empregados.
Essa divisão, entretanto, é uma perspectiva falseada por partir de uma premissa falsa: a suposta polarização entre o indivíduo e o coletivo – que, em certa medida, também opõe o paradigma da solidariedade global ao isolamento nacionalista, como argumentou Yuval Noah Harari (2020). Nenhuma decisão tomada durante uma pandemia tão agressiva como a do covid-19 pode ser purificada em um dos dois pólos. Isso significa dizer que não é possível considerar medidas de distanciamento social como individualizantes/individuais, tomando-as sob o prisma da decisão autônoma e voluntária de sujeitos que consideram apenas sua realidade de maneira atomista, ou sob o prisma do coletivo opressor que se opõe à liberdade individual e ao exercício pleno da soberania da pessoa sobre seu corpo.
É evidente que existem assimetrias e opressões a serem observadas durante todo o processo, como as oposições de classe que determinam que alguns vivam enquanto outros morrem, como no caso da empregada doméstica de 63 anos, morta no Rio de Janeiro após contrair covid-19 enquanto era obrigada a trabalhar por sua patroa que observava a quarentena justamente por estar contaminada com o novo coronavírus – e, para esses casos profundamente assimétricos, é preciso exigir a intervenção do Estado na forma de garantia de renda e direitos a trabalhadores precarizados, algo ainda tímido e tardio nas medidas tomadas pelos governos locais.
Mas é preciso considerar que aquelas e aqueles em quarentena protegem não só seus corpos individuais com a decisão, mas também àqueles que são obrigados a circular a despeito das recomendações em contrário – como os de trabalhadores vitimados pelas ganâncias comerciais e financeiras de seus empregadores – pois não só quebra a cadeia de contágio, como também posterga o colapso do sistema de saúde, já considerado como certo por especialistas e autoridades. A pandemia nos mostra que só estaremos seguros individualmente na medida em que estivermos coletivamente seguros – local e globalmente (Harari, 2020) – , e é preciso renunciar às dicotomias fáceis entre o individual e o coletivo sob risco de descartarmos a dimensão social de um problema que, nessa perspectiva, não passa de uma abstração oposta ao “mundo real”, “composto de corpos consumidores, que se levantam da mesa de tempos em tempos para saber como andam as cotas de mercado” (Strathern, 2017, p. 198).
O distanciamento social pode parecer algo individualizante, um privilégio reivindicado pelo discurso neoliberal da soberania individual, mas é uma decisão visceralmente social e coletiva, e é por essa razão que qualquer comparação feita com “uma gripezinha” é incabível: não estamos tratando dos efeitos da doença apenas no corpo biológico, mas também de seu impacto social.
A política da culpa: entre direitos e privilégios
Dizer que “quarentena é um privilégio de classe” é, em último grau, desconsiderar que os grupos socialmente mais vulneráveis, como os moradores de bairros periféricos, trabalhadores precarizados, indígenas, população de rua, população LGBTQI+, imigrantes e refugiados serão os mais afetados em um cenário onde nenhuma medida de restrição de circulação é tomada. Desconsidera também que o presidente Jair Bolsonaro vem trabalhando sistematicamente para aprofundar essas vulnerabilidades, como o fez na edição da mais recente Medida Provisória, cujo artigo que suspendia contratos trabalhistas e salários por até 4 meses foi derrubado, deixando milhões de brasileiros completamente desassistidos durante a crise.
O debate sobre a diferença entre direitos e privilégios, criada por uma espécie de política da culpa de quem crê que auto isolar-se é algo moralmente errado em um cenário onde há quem não possa fazê-lo, banalizou-se ao extremo, como era de se esperar em um contexto de retirada sistemática de direitos de diversas ordens. Ter direitos garantidos passou a ser considerado algo restrito a uma espécie de elite dos trabalhadores em contraste com a massa precarizada que a retirada de direitos criou.
Não se deve restringir direitos em meio ao estado de calamidade no qual nos encontramos, em especial após sua supressão sistemática nos últimos anos. Se algo, amplia-se e universaliza-se sua distribuição. A pandemia do novo coronavírus deve ensinar-nos que é urgente distribuir direitos, como a renda básica universal (ou mesmo o direito à água tratada e ao saneamento básico), se quisermos superar o que enfrentaremos nos próximos meses. O objetivo deste debate não deve ser, portanto, retirar a possibilidade daqueles trabalhadores que podem isolarem-se em suas casas, acusando-os de terem privilégios, mas sim garantir a extensão dessa possibilidade a todos os trabalhadores, inclusive os precarizados. Garantir a renda de motoristas de aplicativos, entregadores, vendedores ambulantes, diaristas, professores particulares e outros trabalhadores sem direitos trabalhistas garantidos é, hoje, uma política de saúde pública, pois garante o direito à vida e à saúde não apenas desses trabalhadores, mas de toda a sociedade.
Como afirmado anteriormente, não é possível falar em medidas de proteção individuais em uma crise de saúde pública. Estamos diante de algo sem precedentes, e ninguém estará a salvo caso tentemos restringir a possibilidade de segurança sanitário-biológica a apenas alguns: só é possível termos sucesso se protegermos a todos, como argumentamos. Países como a Alemanha, com uma das menores taxas de mortalidade em decorrência da covid-19, já abandonaram todas as medidas de austeridade em nome do combate à pandemia, e a União Europeia se prepara para derrubar qualquer limite de gastos que a impeça de conter o avanço do vírus. No Brasil, vamos na direção oposta, e parece ser impossível esperar que o governo Bolsonaro aja de forma minimamente responsável, que dirá esperar medidas que concedam algum tipo de segurança social. E se não é possível fazê-lo sob esse governo, devemos criar condições para tal – como tirá-los do poder – sob pena de conivência com o morticínio que virá a seguir.
Alexandre Branco Pereira é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, pesquisador do Laboratório de Estudos Migratórios (LEM-UFSCar), colaborador no Programa de Psiquiatria Social e Cultural do IPq-HCFMUSP e membro da coordenação da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados de São Paulo. É autor dos livros “Mas é só você que vê?” (Editora NEA, 2014) e “Viajantes do Tempo” (Editora CRV, 2020). Everson Fernandes Pereira é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa Ciências na Vida, e desenvolveu pesquisa sobre doenças genéticas raras. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre a pandemia de covid-19.
Referências bibliográficas
Harari, Yuval Noah. The world after coronavirus. Finantial Times, 20 de março de 2020. Disponível em https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75.
Strathern, Marilyn. O conceito de sociedade está teoricamente obsoleto? In: Strathern, Marilyn. O efeito etnográfico. Tradução de Iracema Dulley, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Ubu Editora, 2017.