O elo frágil da economia global
Calcula-se que há um aumento, em média, de 8% ao ano na demanda por imóveis – algo que o mercado
obviamente não consegue atender. A falta de moradias tornou-se um problema real em vários países e essa
tendência é reforçada pelo crescimento constante das habitações ocupadas apenas por um indivíduoAkram Belkaïd
Quando analisamos o setor imobiliário,
pensamos imediatamente
na bolha especulativa”, frisa Adam
S. Posen, economista do Peterson
Institute, em Washington. “Mas,
sem dúvida, há uma demanda real de compra,
que também é responsável pela crise
atual”, pondera. De fato, a alta na procura
por imóveis é um fenômeno evidente: de
acordo com uma pesquisa realizada pelo
Euromonitor International, o mercado imobiliário
está sob pressão crescente. O principal
motivo é o crescimento da classe média
mundial [1] e a decorrente melhora de seu poder
de compra.
Calcula-se que há um aumento, em
média, de 8% ao ano na demanda por imóveis
– algo que o mercado obviamente não
consegue atender. Assim, a falta de moradias
tornou-se um problema real em vários
países, sejam eles integrantes do clube
das nações ricas (Itália, Grécia, Grã-Bretanha)
ou não (Argélia, Egito, Argentina). Essa
tendência é ainda reforçada pelo crescimento
constante das habitações ocupadas
apenas por um indivíduo adulto, notadamente
na América do Norte, na Europa ocidental
e no Japão.
Nesse desequilíbrio global entre a oferta
e a demanda encontramos a origem do desenvolvimento
abissal da atividade imobiliária.
Como apontou um estudo da agência
Xerfi, desde o começo dos anos 2000 os negócios
no setor experimentaram uma “alta
contínua e sem precedentes” [2]. A uma taxa
média de avanço da ordem de 4% ao ano – e
um pico de 10% em 2001 -, essa foi uma das
áreas mais dinâmicas, contribuindo para
manter a disparada da economia mundial
apesar do esvaziamento da bolha das novas
tecnologias a partir de março de 2000.
O setor imobiliário estende sua esfera de
influência a diversos domínios: a atividade
econômica “real”, o crédito, o consumo doméstico
e o uso que as famílias fazem de
suas poupanças com vistas a constituir um
patrimônio. Segundo as avaliações mais
freqüentes, essa área – que agrupa de um lado
as agências, os financiadores, a corretagem,
e, de outro, as construtoras – é o oitavo
empregador do mundo. Cerca de 80% dos
postos de trabalho estão no campo da
edificação [3].
Na França, o setor imobiliário contribui
com 18% do crescimento do Produto
Interno Bruto (PIB), segundo o Instituto da
Poupança Imobiliária e Predial/Fundiária
(IEIF, na sigla em francês), e representa o
principal motor da economia. É também o
segundo maior produtor de riquezas, atrás
dos serviços prestados a empresas, e o sexto
empregador, com 7% dos efetivos [4]. Já
nos Estados Unidos, responde por 15% da
atividade econômica [5].
Porém, em outras dezenas de países ainda
é difícil estimar sua contribuição exata
para a economia nacional pela ausência de
estatísticas confiáveis. Existe, por exemplo,
uma tendência a diminuir a importância do
trabalho não declarado nos canteiros de
obras. A construção civil é, junto com o setor
hoteleiro e o de restaurantes, uma das áreas
que emprega o maior número de trabalhadores
sem contrato legal. Essa incursão pela
economia informal é uma vantagem para os
traficantes de todo gênero, sejam das redes
de clandestinos ou de grupos mafiosos à
procura de atividades para lavar dinheiro.
Ademais, o setor imobiliário é um ramo
essencial para o consumo. Nos países industrializados,
ele figura em primeiro lugar
nos gastos das famílias, que lhe destinam,
em média, entre 20% e 30% de sua renda.
Além do aluguel, a categoria engloba todas
as despesas concernentes à habitação – crédito,
seguro etc. – e sua provisão.
Ao longo dos próximos anos, a situação
não será muito diferente: o setor continuará
crescendo, pois vai atrair várias centenas de
bilhões de dólares de investimentos a título
de combate ao aquecimento global. A idéia é
até bastante previsível: afinal, os edifícios
existentes hoje são responsáveis pela metade
das emissões de dióxido de carbono no
mundo e consomem 40% da energia total. E
o surgimento de uma “economia verde” –
um caminho cada vez mais evocado para
fazer frente à recessão – pressupõe trabalhos
de modernização e de adequação às
normas ambientais. As primeiras estimativas
desse mercado prevêem no mínimo US$
1 trilhão em gastos somente nos países
desenvolvidos.
Ao lado das cifras polpudas da economia
verde, os investimentos pessoais também
serão responsáveis pela manutenção
do setor imobiliário no topo. Atualmente,
cerca de um terço da poupança mundial é
destinado aos imóveis, com vistas tanto à
aquisição como à constituição de um patrimônio.
E, ao contrário do que se acredita,
não são esses compradores os principais
responsáveis pela bolha especulativa, mas
essencialmente os investidores institucionais
e os diversos fundos: alimentando a
tendência natural desse mercado para as altas,
eles alocaram aí mais de US$ 10 trilhões
mundo afora ao longo dos últimos oito anos
– compreendidos nessa cifra os investimentos
nos imóveis de luxo.
Liquidez reciclada
Como explica um gerente de fundos parisiense
que prefere manter o anonimato, a
bolha especulativa teve origem na convergência
de dois movimentos de capitais: o
primeiro é o desejo, espontâneo ou não, por
parte das famílias de adquirir uma propriedade;
o segundo é aquele da indústria financeira
cuja estratégia consiste, nesses últimos
anos, em reciclar uma parte de sua liquidez
com empréstimos bastante rentáveis destinados
a particulares.
Para convencer os primeiros, as empresas
imobiliárias e os lobbies financeiros
encorajaram os poderes políticos a
sustentar um discurso favorável ao acesso
à propriedade. Esse foi o caso, por exemplo,
dos Estados Unidos na época das campanhas
presidenciais de 2000 e 2004. Na
campanha que precedeu sua reeleição,
George W. Bush defendia uma sociedade
de proprietários (ownership society). O argumento
foi retomado por Nicolas Sarkozy,
presidente da França, em setembro de
2006: “Nosso projeto é tornar possível o
acesso à propriedade para todos” [6], afirmou
em discurso. Na China, as autoridades
aprovaram leis no final da década de
1990 para permitir que a população adquirisse
empréstimos hipotecários. Com
isso, a parcela das famílias que utilizou
tais créditos passou de 1% em 1998 para
13% em 2006 – e a previsão é que chegue a
24% em 2015.
Desde a crise dos empréstimos hipotecários
(subprimes), sabe-se que o interesse
da indústria financeira pelo setor não reside
unicamente na concessão de empréstimos a
particulares. Uma vez conferidos os títulos,
esses créditos alimentaram um mercado secundário
da dívida e serviram de elemento
de referência para a elaboração de diversos
produtos derivados, dentre os quais os famosos
Credit Default Swap (CDS), que davam
aos investidores uma segurança, entre
outras coisas, contra os riscos do não pagamento
pelos tomadores de empréstimo. Tal
mercado inflou sem qualquer controle, e a
incapacidade de certas famílias de honrar
seus compromissos provocou a depreciação
brutal dos CDS e, por tabela, quase quebrou
o setor bancário [7].
Todavia, a crise imobiliária poderia ter
sido evitada se o Federal Reserve (FED, o
Banco Central americano) dos Estados Unidos
não tivesse levado a cabo uma política
monetária tão frouxa no começo dos anos
2000. As taxas diretrizes que passaram de
6,25% a 1% em menos de dois anos permitiram
aos bancos emprestar facilmente crédito
aos particulares. Em suas memórias, Alan
Greenspan, ex-presidente do FED, se defende
da acusação de ter alimentado de propósito
uma bolha imobiliária e explica suas escolhas
por razões políticas: “Eu não me dava
conta de que a flexibilização do crédito hipotecário
faria crescer o risco financeiro e
que o acesso à propriedade imobiliária, graças
a empréstimos subvencionados, deformava
os veredictos do mercado. Mas eu
acreditava, e continuo acreditando, que o
aumento do número de proprietários reforçava
as bases do capitalismo de mercado” [8].
Vários economistas de renome, dentre
os quais o Prêmio Nobel Paul Krugman [9],
acusam o antigo presidente do FED de ter
conscientemente transformado o setor imo-biliário em gangorra para elevar de maneira
artificial o consumo e o crescimento. O mecanismo
utilizado é muito simples: para o
detentor de um empréstimo hipotecário, a
baixa nas taxas significava a possibilidade
de renegociar esse crédito de maneira vantajosa
e a obtenção de mais liquidez para
consumir. E é ainda mais importante pelo
simples fato de que o consumo doméstico
equivale a dois terços da economia americana.
Compreende-se logo a importância, para
Washington, da manutenção desse dinamismo
a qualquer custo.
“O FED fez do setor imobiliário e do anseio
pela propriedade um pretexto para que
as famílias se endividassem de forma permanente.
O objetivo do jogo era permitir
que elas continuassem a consumir em um
contexto em que lhes fosse impossível obter
aumentos de salário. Isso pode parecer
irracional, mas as pessoas se sentiam ricas
após a aquisição de um imóvel, mesmo a
crédito. Foram raros aqueles que as preveniram
explicando que essa riqueza era virtual
e que o valor desse bem podia se depreciar
a qualquer momento em função da
evolução do mercado”, acusa o economista
americano Jeff Faux.
A combinação entre taxas baixas, irrupção
dos fundos especulativos no setor imobiliário
e endividamento recorrente das famílias
conduziu, finalmente, à catástrofe
nos Estados Unidos e depois no mundo. A
especulação impeliu as operadoras a construir
sempre mais – 40% dos empregos criados
nos Estados Unidos entre 2001 e 2007
foram gerados na construção civil – e, quando
o excedente de imóveis não encontrou
mais demanda, as famílias de baixa renda
foram encorajadas a entrar na dança para
alimentar a bolha, comprando propriedades
que não poderiam nem mesmo alugar.
Esse encadeamento dos fatos conduziu à
crise dos subprimes e depois quase à falência
de vários bancos grandes que tinham especulado
com esses produtos arriscados [10].
Mas os países desenvolvidos não foram
atingidos da mesma maneira. A crise mostrou
que as disposições de ordem sociais
podem constituir sérios obstáculos às estratégias
políticas que recorrem ao endividamento
imobiliário para sustentar o consumo
e o crescimento. A França e sobretudo
a Alemanha limitaram seus desgastes até
agora, pois a maioria das famílias considera
mais seguro pagar aluguel do que comprar
um imóvel. Na Europa oriental, por
exempl
Akram Belkaïd é jornalista.