O Espelho de Pacaraima
A onda de ataques xenofóbicos contra refugiados em Roraima traduzem em parte os limites materiais e políticos de nossa existência. São os refugiados que nos arrancam da cegueira da rotina cotidiana e desnudam os limites do Estado-nação, a precariedade da vida e a miséria humana. Nossa miséria.
As imagens de uma multidão desordenada, improvisando o barbarismo, piromaníaca, entoando o hino nacional, podem levar a crer que o aumento da imigração em Pacaraima enseja a materialização de fatores que rompem os limites da racionalidade, tamanha a ameaça às condições existenciais da população local. Embora o aumento populacional tenha efetivamente impactado o cotidiano das cidades de Roraima, o que se experimenta por aqui, contudo, submersos na aparente placidez dos dias que se sucedem, são turbilhões de sentimentos desencontrados, que, por fatores muito pouco relacionados aos refugiados, podem ser orientados à violência.
Na semana subsequente aos acontecimentos de Pacaraima, convidei meus alunos e colegas professores da Universidade Federal de Roraima (UFRR) para debatermos o tema da imigração e da xenofobia no estado. A maior parte dos presentes era de estudantes indígenas. E, embora não se possa mensurar os efeitos individuais decorrentes da intolerância sobre os índios da região – concentrada, historicamente, e difusa, cotidianamente -, todos ali tinham plena consciência de sua capacidade devastadora.
Durante o encontro, presenciamos um arco de sentimentos expressos pelos participantes: medo, preocupação, comoção. Uma estudante afirmou temer por sua segurança quando se deparava com grupos de venezuelanos na rua. Um professor disse ter sido enfaticamente desaconselhado a contratar um venezuelano como caseiro de seu sítio, após ter sido bombardeado por diversas histórias de homicídios e roubos praticados por trabalhadores imigrantes contra seus empregadores. Não só contratou um empregado venezuelano, como acolheu sua família e está muito satisfeito com sua decisão. Um aluno, tuxaua de sua comunidade (designação equivalente a cacique, usada nas comunidades indígenas da região), reconhecendo a fragilidade da situação dos refugiados venezuelanos e o imperativo de prestação de socorro que se impõe a todos, perguntou sincero: o que podemos fazer para ajudá-los, nós que temos pouco?
O testemunho mais impressionante, porém, – e que inequivocamente aciona padrões imagísticos e simbólicos do arquétipo cristão – foi-me contado por uma senhora indígena. Reiteradamente vendo, desabrigados, na rua, diante de sua residência, um casal de refugiados com uma criança de colo, reuniu os treze membros de sua família. Debateram e concordaram em lhes oferecer o único cômodo da casa ainda disponível para o pernoite: a cozinha. Ali, passaram a estender todas as noites a última rede de que dispunham e que embala ainda hoje os corpos cansados da pequena família venezuelana acolhida.
São diversas e contraditórias as emoções que emergem diante de estrangeiros que povoam as ruas das cidades de Roraima, segurando cartazes em que oferecem o único que ainda lhes resta: sua força de trabalho. Circulam afetos que desafiam a hospitalidade, célula elementar da relação que se estabelece com refugiados, e que se configura no imperativo de não os tratar com hostilidade. Em Roraima, a hospitalidade que se lhes dirige, é, porém, em geral, acompanhada de um contragosto expresso entredentes. Como no conto “O Beijo”, de Tchekhov, em que o General Von Rabbek, por polidez, recebe dezenove oficiais que buscavam pouso no momento em que celebrava com os seus uma festa familiar: “os oficiais, subindo os degraus forrados de macios tapetes e ouvindo o dono da casa, compreenderam isto perfeitamente; e perceberam que traziam mesmo àquela casa uma atmosfera de intrujice e mal-estar”[1].
Embora se possa reconhecer na imagem literária o sentimento de alguns, e mesmo considerando-se a degradação social e a mudança do dia-a-dia das cidades em Roraima, não se explica, porém, a total ruptura da hospitalidade e a conflagração violenta que se presenciou em Pacaraima.
Não é incomum que a dinâmica de convivência fronteiriça tenha as marcas de uma agressividade real ou latente, expressa em disputas tradicionais e na ridicularização do vizinho, num processo que Freud denominou narcisismo de diferenças menores[2]. A intensificação da presença de venezuelanos alterou rapidamente a vida da pequena cidade de Pacaraima. Agitou o comércio local, mas rapidamente esgotou a capacidade de absorção da urbanização. Contudo, nem isso, e tampouco o aumento da violência urbana por si só são fatores capazes de deflagrar uma reação xenofóbica cujas imagens assistimos atônitos. Uma tal reação parece estar relacionada antes a nós, cidadãos brasileiros, que aos refugiados, empurrados pela desditosa necessidade de emigrar de seu país.
Refugiados são o recordatório dos limites materiais e políticos de nossa existência. Eles nos arrancam da cegueira da rotina cotidiana e desnudam os limites do Estado-nação, a precariedade da vida e a miséria humana. Nossa miséria. Refugiados incomodam porque erguem diante de nós o espelho pelo qual se desvela nossa realidade: o cerco das oligarquias encasteladas, que despudoradamente usam a força bruta contra aqueles que ousam se insurgir; o assédio legalizado nas relações de trabalho, marcadas por desigualdades abismais; as microfissuras das injustiças dissimuladas e banalizadas da intolerância diuturna.
Refugiados desafiam-nos a divisarmo-nos em nossa própria debilidade. E se não a compreendermos no contraste com distintos planos contextuais, o social, o político, o econômico, sobrarão as impressões do homem que se adivinha diante do espelho, como descritas por Guimarães Rosa: “o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?” [3].
Uma tal “revelação” é matéria-prima de fácil manuseio pelos obreiros do ódio. É a mesma que compõe a argamassa da intolerância contra negros, indígenas e que agora encontra-se fartamente disponível na construção de discursos xenofóbicos que fluem em meio a um povo, ele mesmo constituído em boa parte por descendentes de imigrantes e refugiados.
O filósofo Vladimir Safatle explica que existem afetos que trafegam mais facilmente nos circuitos que entranham o corpo político. [4] Medo e ressentimento estão entre eles. E há por aqui os que, em uma operação de engenharia macabra, enfeixam esses circuitos causando as fagulhas capazes de iniciar os incêndios, os mesmos que queimaram as maltrapilhas roupas dos venezuelanos de Pacaraima. São homens e mulheres que se arrogam liderança e que em maior ou menor grau de explicitude direcionam, com seus discursos insidiosos, as angústias e frustrações do cidadão decorrentes antes de estruturas brutalmente injustas e de um extenuante estado de vigilância mantido pela repetição incessante de alertas por conjunturas perigosas.
Se nos mirarmos no espelho de Pacaraima, com advertida objetividade, poderemos ver, de relance, refletidos, os efeitos da doída sequidão de terra devastada, mais uma vez traduzidos nas palavras de Guimarães Rosa: “o ódio reflui e recrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo.”[5]
*Rickson Rios Figueira é Doutor em Sociologia e Direito. Professor Adjunto da Universidade Federal de Roraima. Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratório (NIEM-UFRJ)