O espírito de Pachamama
Renaud Lambert
Em 22 de abril de 2010 um grito ressoou aos pés da Cordilheira dos Andes: “Pachamama o muerte!”. Com os punhos cerrados vibrando no ar, sobre uma tribuna armada na cidade de Cochabamba, o presidente boliviano, Evo Morales, conclama seus convidados a se juntarem a ele. Cinco mil representantes de associações ecológicas, políticos e altermondialistas (movimentos antiglobalização) – vindos de todo o mundo para participar de uma conferência sobre a crise ecológica – ressoam em coro: “Pachamama ou morte!”.
Pachamama? É a “Mãe Terra” entre os nativos da América Latina, explica o presidente Morales. Já há anos esse nome vem aparecendo cada vez mais na imprensa, nas publicações de ONGs ou na literatura ecologista e altermondialista.
Para o jornal Libération o termo resume bem o conteúdo dos debates realizados durante o 11º encontro de verão patrocinado pela Associação para a Taxação de Transações Financeiras e pela ação cidadã (ATTAC, “Pachamama mia”, 23 de agosto de 2010). Pachamama também é o título que o responsável pelo Partido Verde francês, Patrick Farbiaz, deu a sua revista dedicada à ecologia política.
Enquanto as ameaças ligadas ao aquecimento climático passaram do terreno das hipóteses para a seara das evidências, a divindade andina vem se impondo como encarnação da Mãe Terra, aquela que nutre e alimenta, cujo papel é o de protetora da natureza contra as agressões humanas. Agora quem diz “Pachamama” se refere necessariamente às populações indígenas que vivem em harmonia com a natureza.
Isso vem bem a calhar no momento, já que os ecologistas atuais, bem como os governos das grandes potências (industriais e emergentes), interessam-se pela noção do “desenvolvimento sustentável”, que reintegra a relação homem-natureza em seus discursos.
Segundo os pesquisadores argentinos Diego Dominguez e Daniela Mariotti, essa busca por modelos de interação harmoniosa conduz à identificação do indígena como “ecologista natural1”, sobrevivente local de uma época quando, segundo o ecologista franco-britânico Edward Golsmith, “todo mundo, em todos os lugares, sabia viver em harmonia com o mundo natural2”.
Vista a partir do hemisfério norte, a Pachamama nos convidaria a redescobrir nossa sabedoria ancestral há muito esquecida. Mas quem estaria do lado dos indígenas? A etnóloga Antoinette Molinié observa que na América Latina “há 30 anos falava-se muito pouco de Pachamama3”. Além disso, nos Andes, “Pachamama” define tradicionalmente uma divindade que provoca a seca e a fertilidade ao mesmo tempo, é desafiadora e ávida por sacrifícios humanos. Uma “mãe” um pouco áspera? Não exatamente.
A etimologia do termo não evoca nem a noção de terra, nem a de mãe. “‘Pacha’ designa um amplo grupo semântico que inclui o ciclo de tempo, de espaço e da terra, e “mama” designa uma noção de autoridade, não necessariamente feminina”, explica o sociólogo Franck Poupeau4. A imagem ocidental da Pachamama é recente até mesmo na América Latina.
Tradicionalmente as populações urbanas e mestiças da região “desprezam o rótulo de indígena, visto como sinônimo de pobreza”, observa a antropóloga peruana Marisa de la Cadena5. Associado à veneração da “Mãe Terra”, o rótulo passou a seduzi-los mais: mesmo hoje, longe de suas raízes, alguns se “redescobrem” indígenas – passando a reconstruir até mesmo certos aspectos da história pré-colombiana.
“Assisti a verdadeiras missões”, relata Molinié, “quando vários universitários desembarcavam em aldeias isoladas para ensinar aos indígenas (os verdadeiros, por assim dizer) que já não sabiam nada sobre essa ‘Pachamama’”. Os rituais que eles reinventaram, portanto, “são encontrados em abundância nos textos históricos e antropológicos, algumas vezes sem relevância, e formam verdadeiros patchworks surrealistas”, observa a pesquisadora francesa, que pôde testemunhar fora da universidade seus trabalhos acadêmicos.
Nada indica uma absorção particular desses ensinamentos entre as comunidades tradicionais rurais. No entanto, tais iniciativas favorecem o desenvolvimento de conceitos – “harmonia ancestral”, “pureza primitiva” e “autenticidade cultural” – que fazem eco àqueles que já estão modelando a indústria do turismo e as grandes ONGs.
Uma situação que levou os observadores ocidentais a perceber melhor os desdobramentos do seu culto, como na “feira dos feiticeiros” na capital boliviana, La Paz.
Em meio a numerosas barracas, pode-se então adquirir um feto de lhama para oferecer a Pachamama. Pão cotidiano da espiritualidade, a operação permite hoje que se possa “assegurar a prosperidade e a proteção da Pachamama” (Guia de Mochileiros), mas também benzer as casas novas ou pedir boas colheitas. Para se obter o precioso feto, “devia-se lançar mão da ajuda de parentes” e entrar numa lista de espera. Desde então, relatam os dois antropólogos, as barracas de remédios tradicionais exibem fetos a granel. “Fazem algumas placas indicando as mercadorias recém-chegadas e as apresentam, para obter mais publicidade, em meio a condores empalhados, que nunca tiveram nenhuma função entre as oferendas rituais6”.
No fim dos anos 90, essa oferenda caracterizava uma “solicitação urgente por uma causa desesperadora”, lembram Antoinette Molinié e Jacques Galinier. Ela não era endereçada a uma Pachamama continentalizada, mas às divindades locais, associadas a cumes montanhosos específicos.
Seja qual for a modalidade, o ressurgimento da Pachamama na realidade latino-americana é incontestável. Mas será que o “nativo” seria mesmo o ecologista natural que alguns identificaram? Sem sombra de dúvida devemos levar em conta a declaração final do segundo encontro continental dos povos e nações indígenas (julho de 2004): “nossos ancestrais e nossos avós nos ensinaram a amar e a venerar nossa fecunda Pachamama, a viver em harmonia e em liberdade com as espécies naturais e espirituais que coexistem em seu seio”.
“Nós rejeitamos (…) todo e qualquer projeto de prospecção ou exploração de minerais e de hidrocarbonetos”, continua a declaração. Portanto, o também indígena Sr. Humberto Cholango declara em nome da Confederação dos Povos da Nacionalidade Quéchua do Equador (Ecuarunari) que a luta dos índios pela reapropriação da terra, da água e dos hidrocarbonetos “visa fazer com que os recursos naturais sejam nacionalizados e que beneficiem milhões de equatorianos, e não apenas uma parcela de famílias e empresários de multinacionais”.
Já existindo há muitos séculos na América Latina, a luta indígena pela terra não seria, portanto, necessariamente sinônimo da luta pela Mãe Terra? A defesa dos recursos naturais nacionais não equivalem à defesa de uma Pachamama intocada?
Durante sua cerimônia de posse, em 21 de janeiro de 2006, Morales agradeceu a Pachamama por sua vitória. Desde setembro de 2008, a Constituição equatoriana estipula que “a natureza, ou Pachamama – onde a vida se realiza e se reproduz, tem direito ao respeito pela sua existência”.
Mas tanto na Bolívia como no Equador, a celebração da Pachamama coexiste com outras reivindicações feitas por poderosos movimentos populares (indígenas ou não). Esses últimos participam como mensageiros, levando ao poder dos dirigentes as mensagens que prometeram em campanha, entre outras, nacionalizar os recursos naturais a fim de lutar contra a pobreza. No entanto a tarefa não é simples. Por vezes é mais fácil “defender os índios” assumindo um discurso cosmogônico do que empurrar o modelo socioeconômico que eles defendem.
Durante um pronunciamento feito em 20 de abril de 2010, o ministro das Relações Exteriores da Bolívia, o índio David Choquehuanca, defendeu a concepção indígena de mundo: “o mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, formigas, as borboletas (…). O homem vem no final.” Uma semana depois ele aprovou a proposta do grupo Bolloré para explorar as reservas de lítio da Bolívia (as mais importantes do mundo), porque o industrial francês prometeu (não é piada) trabalhar “em harmonia com a Pachamama”7.
Segundo Dominguez e Mariotti, a influência das ONGs pode também levar os movimentos populares indígenas, progressivamente, a assumir uma terminologia concebida pela ecologia dominante – sob risco de amputar as mensagens políticas e sociais de suas reivindicações. Mas nesse meio tempo a “pachamamização” dos discursos floresce. Um fenômeno que encarna finalmente, depois de séculos, o último avatar que sai em busca do “bom selvagem”.
Foi no século XIX, entre as nações andinas, especialmente no Peru, que apareceu a figura do “indígena”. Com a independência, algumas elites buscaram um grupo social a partir do qual pudessem “construir” as novas nações. Frequentemente brancos (ou, mais raro, mestiços), esses dirigentes políticos rejeitavam tanto os europeus, de quem se emanciparam, quanto os índios, detentores de uma legitimidade territorial, mas que ninguém deseja realmente colocar em causa quanto ao seu status de dominado desprezível.
Recorrer às civilizações pré-colombianas permite aos fundadores das novas repúblicas, estabelecer uma identidade autóctone ideal, caracterizada pela sabedoria e harmonia, sem mudar em nada a ordem social.
No futuro próximo não vão mais “falar de índios, seres reais assim designados com desprezo, mas de ‘indígenas’, termo dessocializado, mas purificado do conteúdo pejorativo”, explicam Molinié e Galinié, que concluem dizendo: “Entre o termo ‘índio’ e ‘indígena’ há uma distância enorme, a mesma que separa a realidade da ficção8”.
Manutenção da desigualdade
Com a fundação das repúblicas, a referência dessas comunidades sonhadas justificou, por vezes, a manutenção de um sistema profundamente desigual. Ela muda com os socialistas do século XX cujo projeto político visava reverter o sistema. No Peru, o sociólogo Hildebrando Castro Pozo estima que, nos anos 1930, a comunidade indígena tradicional abre “o caminho do progresso econômico e da justiça social para um Peru socialista de amanhã9”. No entanto, os incas não viviam sob as regras de uma aristocracia das mais rígidas, impondo trabalhos forçados?
Desde o início dos anos 80, um certo tipo de indigenismo passa a se beneficiar do apoio de instituições financeiras internacionais (IFI). Em plena crise da dívida externa – e embora grande parte das guerrilhas marxistas na região tenha sido exterminada – as IFIs condicionam seu auxílio à defesa dos direitos culturais das minorias, associados ao reconhecimento de suas identidades.
Entre 1990 e 2000, mais de uma dúzia de países latino-americanos se declara multiétnicos ou pluriculturais e concede direitos especiais (não sociais) aos índios. Essas políticas têm contribuído para enfraquecer os Estados nacionais num quintal americano que gradualmente se livra das ditaduras, sem contudo dificultar a adoção de políticas neoliberais.
Regularmente reinventado em função das necessidades do momento, o indigenismo se caracteriza por um paradoxo que derrubou em 1986 o socialista peruano Alberto Flores Galindo: “Nos Andes a imaginação coletiva acabou por criar a sociedade ideal – o paradigma de qualquer sociedade possível e a alternativa de futuro – no período anterior a chegada dos europeus.” Portanto, continua Galindo, se tivesse existido, a “sabedoria ancestral” dos povos indígenas teria sido interrompida pelo advento do capitalismo, que também realizou o “desenraizamento e a desestruturação das sociedades rurais e do mundo tradicional10”.
Desta forma, a declaração final de Cochabamba – que critica ecologicamente o modelo capitalista – sugere que, para se acabar com a “destruição do planeta”, o mundo deve, não apenas “redescobrir e reaprender os princípios ancestrais e as soluções dos povos indígenas”, mas “reconhecer a Mãe Terra como um ser vivo” e lhe conceder “direitos” próprios. Uma ideia que vem despertando a atenção de uma parcela do movimento altermondialista.
Sensível à urgência da crise ecológica, o geógrafo David Harvey rejeita toda dicotomia entre sociedade humana e natureza. “Os seres humanos, bem como todos os outros organismos, explica ele, são os sujeitos ativos que transformam a natureza segundo suas próprias leis.” A sociedade humana produz então a Natureza assim como a Natureza forma a humanidade.
Para Harvey, pensar a transformação de um ecossistema específico implicaria em defender menos os direitos de uma “Mãe Terra” hipotética e modificar mais “as formas de organização social que a produz11”
Renaud Lambert é jornalista.