O exército nas revoluções árabes.
A maior parte dos dirigentes árabes se deparou com a importância histórica do exército na construção dos Estados após as independências e, rapidamente, compreendeu o perigo que as forças armadas poderiam representar. Trataram, então, de marginalizar e neutralizar essa instituição, sobretudo por privilégios econômicos.Salam Kawakibi, Bassma Kodmani
Durante mais de 40 anos, no mundo árabe, a palavra exército rimou com golpe de Estado militar, estado de urgência, serviço secreto e vigilância. Essa instituição está na origem dos sistemas políticos, mas tornou-se pouco visível, apesar de muitas vezes aparecer como protetora da população e salvação do Estado. Embora o exército seja um dos componentes do aparelho de segurança de uma nação, o último recurso do poder para “manter a ordem”, na Tunísia e no Egito as forças armadas se dissociaram das forças policiais, reconheceram como legítimas as reivindicações dos manifestantes e, finalmente, abandonaram o chefe que haviam levado ao poder. Deixaram de obedecer ao governante que supostamente deveria comandá-las.
O que fez com que as sociedades, nas últimas décadas, passassem a celebrar as intervenções militares e até reivindicá-la a gritos, como se observou na Tunísia e logo em seguida na revolução egípcia?
A maior parte dos dirigentes árabes se deparou com a importância histórica do exército na construção dos Estados nacionais após as independências e, rapidamente, compreendeu o perigo que as forças armadas poderiam representar. Trataram, então, de marginalizar e neutralizar essa poderosa instituição, sobretudo por meio de privilégios econômicos consideráveis. No Egito, foram os Estados Unidos que financiaram grande parte dessa política e concederam muitos subsídios aos generais. Os militares se beneficiaram de autorizações e isenções para construir centros comerciais, cidades no meio do deserto, balneários, além de terem sido admitidos em clubes elitistas antes reservados apenas à aristocracia do Cairo. Também ocuparam cargos públicos por todo o país, dirigem empresas públicas e diversos ministérios.
Os chefes de Estado, paralelamente, desenvolveram um sistema complexo de aparelhos de segurança dirigidos por oficiais do alto escalão e de acordo com outra lógica de inserção social. A missão do exército de proteger o Estado se transformou, no Egito, em proteção do regime. Esse desvio pode ser observado em muitas instâncias sociais, mas foi impulsionado principalmente por dirigentes oriundos do próprio exército.
Esses aparelhos de segurança garantem o funcionamento do serviço secreto de informação e a manutenção da ordem, além de controlarem as atividades cotidianas dos cidadãos. A multiplicação desses organismos é a regra: segundo a lógica da boa segurança, eles passam a se vigiar mutuamente. No Egito, os efetivos desses aparelhos de segurança incharam até atingir quase o triplo do tamanho do exército (1,4 milhão de pessoas contra 500 mil militares). Raros são os exemplos em que os dois serviços se juntam em corpos solidários, como na Argélia.
Concebidas como o braço coercitivo dos regimes políticos, essas agências de segurança se tornaram agentes diretos do poder. São elas que atuam como interlocutoras privilegiadas junto à população – trabalhadores em greve, desempregados ou ainda manifestantes que reivindicam moradia e terra para cultivo. Também são responsáveis por aplicar as ordens e as censuras ditadas pelo governo e pelas autoridades religiosas, além de fixar os limites da liberdade de expressão.
A penetração desses organismos em todas as instituições é antiga, mas a gestão direta da vida pública pelos serviços de segurança (mukhabarat) teve um crescimento sem precedentes durante a última década. Hoje, todos sabem como operam essas agências e o discurso de seus chefes traduz um sentimento de poder assustador. “Aqui, tudo é segurança, tudo está sob nossa responsabilidade, desde os beduínos do deserto do Sinai e os membros da Al-Qaeda que circulam por aí até as mesquitas do Cairo e de Alexandria”, declara um funcionário do alto escalão do Ministério do Interior egípcio. O controle chega a incidir sobre os cérebros: na Arábia Saudita, no contexto da luta contra a jihad, o Ministério do Interior desenvolveu o conceito de “segurança intelectual”.
Os dirigentes podem, portanto, dormir tranquilos: os homens do serviço de segurança se ocupam de tudo – e quanto mais segurança, menos necessidade de política. O termo “segurocracia”, emprestado do politólogo sudanês Haydar Ibrahim, caracteriza bem esses regimes1.
As insurreições na região, país após país, revelam o estado de decadência das instituições políticas. Em sua maioria, esses Estados estão ruindo enquanto as forças armadas são incumbidas de salvá-los.
As características dos sistemas de segurança do mundo árabe não diferem muito daquelas vigentes na América Latina, Europa do Leste ou do Sul antes de suas transições para a democracia: funcionam como escudo entre o Estado e a sociedade, possuem aparelhos de circuito fechado que variam de tamanho e complexidade. O que todos têm em comum é a cultura da impunidade e o modo de funcionamento ancorado na lógica inexorável do terror. Se essas formidáveis máquinas de vigilância têm como objetivo primeiro alimentar o temor e impedir a organização coletiva entre os cidadãos, a lógica do medo e da ameaça também reina no próprio interior desses organismos, pois a hierarquia é muito acentuada e há muita rivalidade entre os clãs dos dirigentes.
As revoltas massivas que eclodiram no início do ano, do Magreb ao Mashrek, romperam o circuito fechado em que operavam esses aparelhos do poder. A população – o elemento surpresa – agiu como reveladora das divergências e catalizadora das rivalidades, além de ter colocado as estruturas de poder frente a um dilema: atirar ou não sobre os manifestantes.
Quando a máquina de segurança desanda, as disfunções se estendem a outros pilares do poder: o partido dirigente, a oligarquia dos negócios e, também, o exército. A irrupção do povo nas ruas teve como efeito a distinção entre as instituições que servem ao regime e aquelas que estão a serviço do Estado – e o exército é a principal dessa segunda categoria. Afastadas das tarefas de manutenção da ordem, as forças armadas podem exercer o papel de garantir a transição do governo. Existem muitas pontes que ligam o exército ao aparato de segurança, e o elo mais comum entre as duas partes, em geral, são os chefes do serviço secreto do exército, como é o caso do general Omar Suleiman, no Egito, ou o general Mohamed Toufik Mediene, na Argélia; são eles que ocupam a função mais importante dos sistemas políticos desses países.
É preciso distinguir, nesse contexto, a contribuição efetiva do exército nas revoltas populares na Tunísia e no Egito. Como a maior parte dos dirigentes árabes que passaram do quartel ao palácio presidencial, Zin El Abidin Ben Ali temia a ambição dos homens fardados. Desde sua ascensão ao poder, em 1987, o exército havia sofrido uma redução de efetivos e de meios, além da destituição de muitos de seus membros. O caso não solucionado do acidente de helicóptero que, em 2002, causou a morte do general Abdelaziz Skik e de outros oficiais do alto escalão acentuou a suspeita mútua existente entre o palácio de Cartago e a instituição2. O exército esteve por muito tempo afastado das decisões políticas, inclusive nos anos Burguiba (1957-1987), razão pela qual não se envolveu nos assuntos econômicos do país e, consequentemente, não participou do sistema de corrupção do regime.
Os militares egípcios, por outro lado, estão no poder desde a revolução dos oficiais livres, em 1952. O coronel Gamal Abdel Nasser tinha um projeto ambicioso de desenvolvimento social e econômico para seu país e para o mundo árabe. Sua ideologia nacionalista seduziu o povo, que perdoou os fracassos de gestão política do líder e o ataque sistemático à liberdade de expressão durante seu governo. O sucessor de Nasser, Anuar Al-Sadat, também oriundo do exército e laudatório do liberalismo econômico em benefício de uma nova burguesia parasitária, ao contrário, introduziu no país a cultura da corrupção e assegurou a lealdade do exército: outorgou privilégios econômicos às forças armadas com o objetivo de marginalizá-las depois de roubar a “vitória” da guerra de outubro de 1973 contra Israel (Guerra do Yom Kippur) com a assinatura dos acordos de Camp David, em 1978.
Ao longo dos últimos dez anos, o ressentimento dos militares em relação a Hosni Mubarak recrudesceu. O exército condenava o governante por se recusar a nomear um vice-presidente, o que gerava uma incerteza perigosa sobre o futuro do país. Também o criticavam pela obstinação em promover seu filho Gamal como sucessor3 – segundo o exército, figura sem legitimidade e cuja ascensão teria privado as forças armadas da influência que gozava na escolha de sucessores ao governo. Em suma, o presidente suscitava o descontentamento por ter permitido que um pequeno círculo de homens de negócios gravitasse ao redor do sucessor, almejando cada vez mais riquezas.
Nos dias que precederam a queda do regime, as divergências vieram à tona: o exército deveria continuar a apoiar Mubarak ou forçá-lo a deixar o posto? O consenso votou pela segunda opção, mas as forças armadas parecem hesitar em assumir a responsabilidade de destituição do presidente. As declarações estadunidenses, prudentes e contraditórias, buscavam preservar a estabilidade do sistema ao máximo, inclusive sustentando a partida de Mubarak se necessário. Nas últimas 24 horas, entre 10 e 11 de fevereiro, o exército facilitou amplamente aos manifestantes o acesso a edifícios simbólicos do poder, como o Parlamento e o Palácio Presidencial, para reivindicar-se como o ator principal da queda do regime. Desde então, o setor militar se reapropriou do papel de “mentor de sucessores”. E mais: passou a se colocar como refundador da ordem política e responsável pela construção de um sistema democrático. A intervenção do exército foi bem vista, pois parecia necessária para proteger a revolução de possíveis ingerências regionais e estrangeiras (Israel, Estados Unidos, outros países árabes e até mesmo o Irã) com o objetivo de interromper o processo.
A grande diferença reside na natureza da intervenção militar: na Tunísia, o exército interviu para proteger o povo e forçou Ben Ali a deixar o país, com aprovação do “amigo” estadunidense. O exército egípcio, por outro lado, se impôs no início dos acontecimentos para preencher o vazio de segurança que imperava nas ruas. Em seguida, permaneceu neutro enquanto as milícias de Mubarak agrediam manifestantes na Praça Tahrir. É verdade que as forças armadas não atiraram contra os rebelados, mas por outro lado não impediram que outros o fizessem. Em definitiva, tomaram a decisão de romper com um regime agonizante e preservar o sistema.
Na Argélia, foi sob a presidência de Houari Boumediene (1965-1978) que se definiu a função política da elite do exército com a criação da Segurança Militar (SM). É esse organismo que dirige a questão é a sucessão governamental e intervem para perenizar uma ordem que se revelou bastante estável. O exército fez com que Abdelaziz Buteflika fosse eleito em 1999. Mas os primeiros sinais de divergência entre as forças armadas e os serviços de segurança apareceram em 2004, quando estes organizavam a reeleição de Buteflika contra a opinião do chefe de estado-maior Mohamed Lamari. De acordo com os escritos de Mustapha Mohamed, “2004 consagrou a autonomização definitiva dos serviços de segurança e sua supremacia sobre o exército4”. Com a chegada de Buteflika, desapareceu a esperança de extirpar os negócios políticos a cargo das empresas de serviços, que reocuparam todo o aparelho estatal. Os obstáculos parecem impossíveis de ser superados: se por um lado as forças armadas não podem se retirar dos assuntos políticos sem deixar um vazio no sistema, por outro não faz nada para favorecer o início de um processo democrático.
No caso argelino, a imbricação de aparelhos militares e de segurança resulta em opacidade total e um controle político sem falhas. Nesse modelo “ideal” de segurocracia, os responsáveis pelo poder executivo – o presidente e o governo – governam muito pouco. A falta de preparação da oposição pacífica sugere que a mudança deverá surgir do interior do próprio sistema, mas não parece apropriado que os detentores da ordem favoreçam transformações que comprometam a própria autoridade. É por isso que renasce a esperança de ver o ator “povo” lançar uma dinâmica que termine com o desmantelamento do regime, como o que aconteceu na Tunísia e no Egito: ele colocaria o aparelho de segurança e militar antes da escolha fatídica de atirar ou não na população.
Na Líbia, apesar da opacidade do sistema, o exército também foi marginalizado durante as três últimas décadas em proveito dos “Comitês Revolucionários”. Os campos do exército foram relegados ao deserto com a finalidade de prevenir qualquer ambição política em seu seio. Nos primeiros dias de repressão sangrenta sob comando do coronel Muammar Kadhafi, foram registrados casos de deserção e o homem forte do exército, o general Abu Bakr Yunis Jaber, foi colocado em uma residência vigiada. O fortalecimento do sistema de segurança, baseado em unidades especiais leais a Kadhafi, e o recrutamento de mercenários africanos confirmam que os ditadores não desconfiam apenas da população, mas também do próprio exército.
Após as revoluções no Egito e na Tunísia, o exército está em posição de impor suas condições para o retorno ao poder civil. Até o momento, nenhum indício permite afirmar que as forças armadas querem substituir o poder popular. No Egito, elas intervieram com base em uma decisão colegiada enquanto instituição, com a insurreição do povo de pano de fundo – o que deveria impedir a tentação dos elementos mais autoritários de transgredir os limites definidos5. O exército também está empenhado em fixar os termos de um processo de retorno ao poder civil.
Esse retorno se dará, provavelmente, por um pacto entre civis e militares, como ocorreu em outros momentos, permitindo aos últimos se protegerem de eventuais represálias6. No caso do exército egípcio e, sobretudo, argelino, se houver necessidade de intervenção, é possível que as negociações incluam a manutenção dos privilégios econômicos desses setores.
Salam Kawakibi, Bassma Kodmani são, respectivamente, diretor de pesquisa e diretora executiva da inciativa Reforma Árabe.