O fantasma de Gattaca
Do fichamento de imigrantes à seleção dos “embriões” mais aptos para o nascimento, os testes de DNA oferecem perspectivas terrificantes, alinhadas com a perspectiva neoliberal de constituir uma sociedade de indivíduos selecionados por sua competitividade
A instauração, pelo governo, de testes de DNA para o controle da imigração visa principalmente atrair os eleitores xenófobos da Frente Nacional, de extrema direita. Pois essa estigmatização dos estrangeiros terá efeito desprezível (algumas centenas ou milhares de casos) sobre o fenômeno que pretende controlar. Mas, além desse objetivo político imediato, talvez a medida se destine a tornar costumeiro o fichamento genético generalizado, fazendo do estrangeiro somente o elo frágil propício à introdução de tal prática.
Nós já somos identificados por meios biométricos (altura, cor dos olhos e dos cabelos, impressões digitais, íris, sistema venoso etc.), pelo registro da imagem (câmeras de segurança e, em breve, robôs-espiões), por nosso comportamento como consumidores ou cidadãos (cartão de crédito, chips, internet, GPS etc.) e até mesmo por nosso gestual (que pode suscitar desconfiança para câmeras ditas “inteligentes”), sem falar das técnicas reservadas aos mais suspeitos (escutas telefônicas, bracelete eletrônico etc.). Todas essas medidas preocupam o Comitê Nacional Consultivo de Ética1. No entanto, o Grande Irmão ainda quer mais.
Em que o critério genético se diferencia dos critérios biométricos clássicos?
Sabe-se que gêmeos idênticos, que compartilham o mesmo DNA, exibem impressões digitais diferentes, resultantes de combinações entre fatores genéticos e fatores ambientais (ditos “epigenéticos”). Daí resulta que o DNA, a “rainha das provas”, segundo a Justiça, não permite distinguir gêmeos tão bem quanto a ficha de impressões digitais! Porém, essa ocorrência um tanto rara constitui inconveniente desprezível diante da possibilidade excepcional oferecida pelo DNA para identificar um indivíduo, desde o estágio embrionário, e segundo sinais imutáveis que constituem também marcadores da filiação – aquilo que os identificadores biométricos clássicos são incapazes de realizar.
De fato, a famosa “decodificação” do DNA ainda é somente uma leitura elementar, pois as relações entre a constituição genômica particular de cada um e seus parâmetros fenotípicos (riscos de doenças, características fisiológicas etc.) são de tamanha complexidade2 que esse conhecimento será provavelmente de natureza estatística: as variações infinitas do DNA serão comparadas com as ocorrências epidemiológicas. Por exemplo, a maioria daqueles que mostram uma particularidade P em seu DNA está sujeita a desenvolver a doença D. Será o caso, então, de definir probabilidades de risco em função de cada genoma3 e de sua exposição a ambientes definidos4.
Essa estratégia de identificação, aliás, pode ser a base da compreensão dos mecanismos moleculares que conectam determinada informação trazida pelo DNA com as proteínas implicadas em tal função, tal característica ou tal patologia. Decididamente, o recurso à estatística, que já dava suporte ao eugenismo de Francis Galton5, permanece como a caução científica de toda pretensão a se predizer o futuro de um indivíduo.
De acordo com essa tradição, e com a ambição de “otimizar” a contribuição das pessoas a uma sociedade cujo único sonho é ser eficiente, pode-se prever a irrupção de análises sistemáticas do DNA, permitindo tanto o fichamento das pessoas quanto a predição de suas potencialidades. Trata-se sobretudo de avaliar riscos de doenças, mas alguns geneticistas se esforçam por descobrir marcadores não-patológicos (humor, sexualidade e até mesmo o QI, entre outros).
“Fatores de risco”, detectados no adulto, poderão justificar preços diferenciados nos planos de saúde e a adoção de certas práticas de medicina preventiva. Detectados na criança, poderão, além disso, apoiar políticas de orientação escolar e, em seguida, profissional. Mas, detectados no embrião (diagnóstico genético pré-implantatório: DPI), poderão até mesmo obstar um direito à vida. É o número relativamente pequeno (cerca de cinco) de embriões obtidos graças à fecundação in vitro que ainda impede o DPI de responder aos desejos dos pais e às “necessidades” da saúde pública. Observemos, porém, que a triagem dos embriões com risco de estrabismo acaba de ser autorizada na Grã-Bretanha.
Horóscopo genômico
Assim que for conseguida a produção de óvulos às dezenas6, o DPI poderá responder ao velho sonho eugênico dos “bons nascimentos”, sem deixar de se conformar aos novos padrões da bioética (consentimento esclarecido, promessa médica de saúde, ausência de violência contra as pessoas etc.).
Esse horóscopo genômico, destinado a “pôr o eugenismo a serviço do liberalismo”, terá de ser validado no nível estatístico (o das populações, o único que importa ao sistema econômico ou de saúde), ainda que as predições se revelem menos confiáveis, ou francamente erradas, para uma pessoa particular. Eis um programa conforme à mística genética que se apoderou de nossas vidas com a importância exagerada dada aos genes (eles controlariam até mesmo a homossexualidade, segundo o presidente Nicolas Sarkozy), as prioridades atribuídas à “genética molecular” nas pesquisas em biologia, ou a escolha inédita de um geneticista como conselheiro do presidente.
Estamos na fase da identificação das pessoas pelos testes de DNA a fim de refinar o fichamento biométrico para uso da polícia ou da justiça. Recordemos que a biometria sempre funcionou pelo medo, o medo do outro, e se generalizou sem oposição organizada, deixando lugar para uma verdadeira atonia social. Então, de “detalhe” em “detalhe”, constrói-se um mundo que logo poderá nos anunciar “Bem-vindos a Gattaca!”7. E por que não o acúmulo dos elementos identificadores e dos elementos funcionais numa mesma carteira de identidade genética atribuída a cada indivíduo? Afinal, é o mesmo filamento de DNA que corre da delegacia para o tribunal e o consultório médico (medicina preditiva-preventiva), passando por utopias terapêuticas (genes-remédios) ou industriais (plantas transgênicas), pelos escritórios de seguradoras (níveis de riscos), por empresas de orientação escolar e profissional e, finalmente, suscita o ressurgimento de mitos fabulosos (super-homem, clones, quimeras).
Muitos opositores dos testes de DNA têm evocado “as horas mais sombria
s da história” ou a “purificação da raça”, sem enxergar que os problemas hoje são muito diferentes, embora igualmente graves. Não se trata mais de identificar o indivíduo por sua “raça”, tanto mais porque esses parâmetros, freqüentemente disponíveis com os identificadores clássicos, não são revelados pelo DNA. A economia neoliberal não tem necessidade alguma de estigmatizações raciais, já que ela prefere se empenhar em descobrir os melhores elementos disponíveis em cada comunidade humana e em rejeitar os que lhe parecem pouco aptos a contribuir para o “crescimento competitivo”, qualquer que seja a cor da pele destes e daqueles. Trata-se de uma nova espécie de triagem, tão detestável quanto a triagem racial, entre os indivíduos.
É este o sentido da aceitação dos estrangeiros segundo o critério de “competências e talentos”. Ou da exortação “trabalhar mais para ganhar mais!”, que se dirige bem mais ao indivíduo do que à sua comunidade, e corresponde ao sonho do dirigente neoliberal de constituir uma sociedade de indivíduos selecionados por sua competitividade.
*Jacques Testart é biólogo, diretor de pesquisa honorário do Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (Inserm).