O feminismo para os 99% e a interseccionalidade na prática
Último debate da série “Feminismos para os 99%” trouxe Patricia Hill Collins e Sirma Bilge para falar sobre o conceito e os usos da interseccionalidade nos movimentos sociais pelo mundo
O quarto debate da série “Feminismo para os 99%” encerrou o ciclo de discussões promovido pela editora Boitempo, viabilizado pela Lei Aldir Blanc e com apoio do Le Monde Diplomatique Brasil. Centralizado no entendimento da interseccionalidade e suas formas de aplicação, a última discussão trouxe o diálogo entre Patricia Hill Collins e Sirma Bilge, autoras de Interseccionalidade – lançado em março pela Boitempo -, sobre o conceito e os desafios de sua popularização fora do circuito acadêmico.
O protagonismo dos pensamentos feministas negros no Brasil e nos Estados Unidos
Patricia Hill Collins, socióloga e influente pesquisadora do feminismo negro, inicia sua fala ressaltando a expressividade do movimento negro do Brasil, sua influência internacional e suas convergências com o movimento norte americano. Suas primeiras colocações apontam para o diálogo com seu livro Pensamento Femisnista Negro, também publicado pela Boitempo, pois ambos colocam “o dedo na ferida das categorias que nos dividem”, em suas prórpias palavras. A nacionalidade e a cultura, muitas vezes, impõe barreiras à união das lutas feministas e o capitalismo endossa todas essas estruturas.
Por décadas, nos Estados Unidos, a questão de gênero abordada dentro do feminismo negro levava em conta apenas a raça, segundo a socióloga. Não havia preocupação fundamental com os recortes de sexualidade, religião, idade e, sobretudo, classe, dentro desse mesmo grupo. O destaque para a questão de classe não representa maior importância, é falsa qualquer hierarquização dessas categorias, que devem sempre caminhar juntas. No entanto, não é possível eliminar as opressões das mulheres negras sem levar em consideração que sua chegada, violenta e compulsória, ao “Novo Mundo” (tanto nos EUA quanto no Brasil), foi como mercadoria. Esse é o pano de fundo de todas as mazelas posteriores que enfrentam no novo continente. Para Patricia “as mulheres negras nunca serão livres se olharmos apenas através da questão de gênero e raça, pois o sistema de classes que as aprisiona deve sempre ser lembrado”.
“A interseccionalidade te faz enxergar a violência como um problema muito além dos nossos próprios”, declara Patricia. O movimento interseccional se faz quando esses grupos distintos, separados pelos diferentes lugares que ocupam, encontram formas de unir sua jornada em torno de problemas comuns e causas sociais. Essas jornadas, por sua vez, são uma forma de investigação crítica das ações que são fundamentais para respaldar a parte teórica e produzir mudanças da ordem da justiça social. O livro não tem apenas uma visão acadêmica, é um chamado ao ativismo, no qual o espaço interseccional é também um lugar de criação, liderança e inspiração, a partir de um trabalho de base para mobilizar quem o ocupa.
A interseccionalidade não foi criada para feministas brancas se mostrarem inclusivas
A interseccionalidade começou a ser trabalhada ainda na década de 1970 a partir de lutas e teorizações das feministas negras norte-americanas e britânicas, e foi sistematizada em 1989 por Kimberlé Crenshaw, teórica norte-americana especializada em questões de raça e gênero. Apesar disso, o termo feminismo interseccional tem sido bastante usado nos últimos anos por grupos majoritariamente compostos de mulheres brancas, como uma maneira de se mostrarem inclusivas. “A interseccionalidade não foi criada para falar com as feministas brancas”, diz Sirma Bilge. “Ela é uma das formas pelas quais as feministas negras falam umas com as outras e com outras feministas – mexicanas, indígenas, asiático-americanas,etc”, continua.
A pesquisadora também lamenta a forma como o conceito tem sido criticado pela sua tentativa de criação constante de novas abrangências. Isso porque a interseccionalidade se constrói através de um arcabouço de marcadores sociais – como raça, classe, gênero, sexualidade, nacionalidade, etnicidade, indigeneidade, deficiências, idade, religião e etc. “E nós finalizamos com esse ‘etc.’ que foi criticado e usado para ridicularizar a interseccionalidade, mas hoje nós vivemos em um mundo onde o ‘etc.’ é tão importante. Vivemos em um contexto de novas divisões e novas bases de discriminação”, alega Sirma. Nessa conjuntura de construção de novas exclusões, ela citou o acesso à vacina contra a covid-19 como exemplo que divide países ricos e pobres ao redor do mundo.
“A covid é profundamente interseccional”
Com o tempo, e a depender dos novos contextos em que a humanidade, como um todo, se encontra inserida, novas formas de segregação se consolidam. Para Sirma Bilge, a pandemia do novo coronavírus se demonstrou completamente interseccional, neste sentido. É evidente que a crise sanitária, humanitária e econômica atingiu de forma díspar os grupos da sociedade, se intensificando na medida que encontra desigualdades há tempos firmadas, como a desigualdade racial e econômica.
A contenção do vírus, a partir do desenvolvimento e aplicação de vacinas, é a prova concreta de que a nova discriminação será alicerçada na separação entre “vacinados” e “não vacinados”. Essa categorização se aplica na segregação entre ricos e pobres; países desenvolvidos e não desenvolvidos; trabalhadores essenciais e informais; mulheres e homens; brancos e negros. Em matéria recente, a Agência Pública levantou dados sobre as diferenças raciais na vacinação contra a covid-19 no Brasil. Até março de 2021, cerca de 3,2 milhões de vacinados com a primeira dose se declararam brancos e somente 1,7 milhão eram negros.
Sirma chama isso de “desigualdades interseccionais”, quando os problemas de justiça social vão se sobrepondo e evidenciam quem são os grupos a sofrer o primeiro impacto num contexto de crise. A pesquisadora relata um caso de morte de um homem indígena no Canadá, por negligência das autoridades, e crava: “Essas mortes são evitáveis, e são causadas pelas desigualdades estruturais”.
Um feminismo baseado no conservadorismo de gênero
Outro ponto levantado no debate foi a exclusão de pessoas transsexuais, promovida não apenas pela extrema direita, mas também por determinados grupos que se denominam progressistas de esquerda – como é o caso das feministas radicais. Sirma apontou que a interseccionalidade, nesse sentido, é muito importante por trazer elementos para a reflexão. “As feministas radicais trans-excludentes têm ocupado cada vez mais espaço dentro do movimento e isso me parece preocupante. Eu não acho que seja coincidência que elas sejam anti-interessecionalistas. Elas não estão interessadas em entender a ampliar os limites da definição do que é ser mulher”, disse a autora.
Para ela, as feministas radicais deveriam ser chamadas apenas de conservadoras de gênero, pois é no que se consiste sua militância. “Acredito que o ponto principal é que os feminismos deveriam se distanciar de grupos trans-excludentes e focar em construir um novo feminismo”, alegou.
Nas eleições de 2020, aconteceu um caso bem representativo de transfobia envolvendo feministas radicais no Brasil. Erika Hilton (Psol) foi a mulher mais votada da Câmara de Vereadores de São Paulo e a primeira trans a ocupar o cargo na cidade. Em poucas horas após a apuração das urnas, ela já era alvo de feministas radicais que se diziam desapontadas com as eleições municipais, pois “a mulher mais votada de São Paulo era um homem”, escreveram.
Não transformar a oposição na audiência principal
Pensar o tipo de resistência e esperança que desejamos semear também faz parte da construção de um movimento. A internet e as redes sociais tem nos exposto cada vez mais a provocações e embates da oposição, o que muitas vezes chega a pontos extremamente desgastantes. “Patricia me fez perceber que eu orientava minha pesquisa para responder os críticos – seja os trans-excludentes, a extrema direita, os ‘Trumps’ e os ‘Bolsonaros’”, contou Sirma. Para ela é preciso ter atenção para não transformar os opositores na audiência principal. “Patricia me fez perceber que eles não merecem que a gente direcione todas as nossas energias, prioridades intelectuais, aspirações ou movimentos para respondê-los e calá-los”, declarou.
Laura Toyama e Samantha Prado fazem parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil
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