O fenômeno Milei: o que é isso?
O líder da extrema direita Javier Milei não é apenas uma figura política em ascensão, é um discurso que se impõe, o sintoma de uma época. É a manifestação de uma tendência global (a emergência de uma direita radical), mas também reflexo da direitização da sociedade argentina. Sua presença diária nas telas fortalece seu caminho para as eleições presidenciais de 2023
“A atual explosão de raiva tem origem, mais do que em motivos ideológicos, em afetos subjetivos que são expressão de feridas pessoais, do fundo das tripas e com o smartphone na mão”
Éric Sadin
Em 1956, Ezequiel Martínez Estrada publicava ¿Qué es esto? [O que é isso?], texto mobilizado por uma perplexidade estomacal cujo título ressoa a onomatopeia do desprazer. O livro diagnosticava, por meio de um registro clínico, malformações do ser nacional argentino cujo sintoma mais evidente seria o peronismo.
Confira a animação do Le Monde Diplomatique Brasil sobre a corrida eleitoral argentina.
Com perplexidade semelhante, muitos de nós nos aproximamos de um fenômeno que desafia sensibilidades, estéticas, racionalidades e valores: o crescimento de Javier Milei. Economista da mídia sem experiência de gestão nem ancoragem no território, sua figura invade o espaço público exibindo um (ultra)liberalismo econômico mediante um excesso retórico e de atuação, bradando obsessões morais e propostas como a de dinamitar o Banco Central. Envoltas em uma aparência bizarra, suas intervenções na televisão e na rua têm um tom performático marcante. Destacam-se um sorriso instável e uma personalidade inflamável, capaz de alternar entre a raiva extrema e uma espécie de ternura sorridente e suave; uma mistura de monstro, palhaço e criança.
Milei não se apoia em uma biografia clássica de candidatos de direita (“empresário de sucesso”), nem conta com o traço que costuma marcar outsiders bem-sucedidos (carisma hipnótico). Sua vida é tão curiosa como inusitada em comparação com personalidades com trajetórias políticas semelhantes. Milei constitui uma incógnita ameaçadora. Manuais vão pelos ares, certezas tranquilizadoras se desintegram, todas as questões se abrem.

Enfoques
Para entender Milei temos que nos afastar de Milei. Consequentemente, tentaremos cercá-lo de forma explicativa, introduzindo elementos que contribuam para uma melhor compreensão do enigma. Não nos interessa refinar sua caracterização, mas sim examinar algumas das causas que explicam sua eficiência discursiva.
Ao nos aproximar do assunto, encontramos dois obstáculos explicativos que julgamos necessário esclarecer. São dois argumentos muito difundidos, que chamaremos de “abordagem economicista” e “abordagem antipolítica”. Respectivamente, e simplificando, tais abordagens suportam os seguintes esquemas causais: crise econômica mais inflação… Milei cresce; políticos e governos fazem coisas erradas… Milei cresce.
Em relação à abordagem economicista, e invocando Max Weber, nem tudo é pão com manteiga: a economia não explica os processos políticos por si só. A inflação aparece como o gatilho da Revolução Francesa, mas também como a origem do nazismo. Em outras palavras, a economia pode incubar o mal-estar, contudo, não determina o marco ideológico com o qual esse mal-estar é elaborado politicamente. O objeto de tal insatisfação nunca é óbvio, nem carrega uma orientação programática predeterminada.
Examinemos agora a segunda explicação, a que chamamos de “antipolítica”. Nesse segundo caso, Milei seria uma espécie de punição (merecida) para a liderança política. Poderíamos admitir que o desempenho das duas principais coalizões argentinas está longe de ser ótimo; poderíamos também fazer uma longa lista de erros do oficialismo. Entretanto, nenhuma análise minimamente séria poderia afirmar que a qualidade da política e dos governos foi melhor durante o regime de Menem (1989-1999), ou que o desempenho de La Alianza [uma coalizão de radicais e social-democratas, que governou de 1999 a 2001 com Fernando De la Rúa como presidente] foi bom. Se Milei surge como consequência dos pecados da classe política, por que ele emerge agora e não durante a “decomposição moral” dos anos 1990? Por que a indignação contemporânea é expressa por meio de Milei e não de Raúl Castells [líder do piqueteiro] ou Luis Zamora [de origem trotskista]?
Então, se não é um subproduto da crise econômica ou um efeito inevitável da “má política”, por que Milei está crescendo? Sugerimos evitar a tentação de partir dos traços individuais do líder e apontar nossos esforços de compreensão para causas mais estruturais: mudanças ideológicas na opinião pública, climas da época, processos sociais globais e transformações do espaço público.
Milei é um discurso
O ponto de partida são as circunstâncias. O contexto que enquadra a ascensão de Milei é o da expansão contagiosa da extrema direita no Ocidente. Há mais de dez anos, vários direitistas radicais emergentes chegaram ao poder ou se tornam cada vez mais competitivos na Europa, América do Norte e América Latina. Análises políticas e sociológicas vêm acumulando literatura há mais de uma década que visa explicar por que a direita está crescendo. Apesar do narcisismo nacional argentino, não pode haver explicação estritamente local para um fenômeno essencialmente global.
Além das variações particulares – o norte-americano Donald Trump não é a mesma coisa que o brasileiro Bolsonaro, o francês Jean-Marie Le Pen e o húngaro Viktor Orbán –, há uma visível “coincidência de época” nesse tipo de discurso e liderança.
Na esfera emocional, as novas direitas são causa e consequência da “época das paixões tristes”.[1] Seus discursos conseguem conectar, promover e representar a raiva e o ressentimento de sociedades cada vez mais frustradas e ideologicamente segregadas por algoritmos digitais. O resultado químico é visível: a configuração de subjetividades políticas marcadas por uma intolerância furiosa. O objeto dessa intolerância varia e adota declinações muito diferentes de acordo com as culturas políticas de cada país. No caso argentino, Milei não sublima a raiva contra os imigrantes ou a globalização; tampouco denuncia algum tipo de “substituição racial”. Em seu discurso libertário, o Estado, o “socialismo” e a casta política são a origem de todo mal.
A descalcificação dos laços sociais
Desde a erupção da pandemia, uma das grandes questões tem sido as consequências desse “fato social total”. Grandes crises – pense em 2001 na Argentina, ou sua derivação de 2002 no Uruguai – produzem um efeito sísmico sobre o sistema de valores sociais. A pandemia produziu consequências não só econômicas e sanitárias, mas também sociais e culturais profundas. Ao longo de 2021 – “o ano mais longo da história” – foi-se dissolvendo uma hipótese inicial que estimava a construção, como sedimento simbólico, de um aprendizado coletivo em prol da solidariedade e proteção do Estado.
A prolongada experiência coletiva impregnada de medo e endogamia – a vida social se atomizou como nunca– traduziu-se em uma visível deterioração do capital social. Por capital social entende-se o espírito comunitário de uma sociedade, refletido na “força dos laços fracos”, na vida associativa, na reciprocidade capilar. De acordo com essa tradição de pesquisa, um dos sinais da “saúde da comunidade” de uma sociedade está em seus níveis de confiança interpessoal (as pessoas confiam nas pessoas?). Nesse sentido, um estudo sistemático da Flacso vem registrando um declínio na confiança interpessoal na Argentina. Após seis anos de estabilidade, nos últimos dois anos a “confiança nos outros” caiu dez pontos percentuais.[2]
Em suma, a partir da deterioração causada no tecido social, o mundo pós-pandemia parece ser atravessado por uma fúria niilista (cujo objeto não se esgota nas instituições representativas) que multiplica os discursos que concebem o outro como uma ameaça.
Tremores ideológicos
Outro elemento a ser considerado é o movimento do subsolo de valores da sociedade argentina. Trata-se de um deslocamento para a direita da opinião pública. “Direitização” é uma expressão imprecisa, mas vamos usá-la aqui para nos referirmos ao enfraquecimento de uma série de valores ligados à solidariedade, à proteção social e ao Estado. Num espelho, fortalece-se uma constelação de valores associados ao imaginário meritocrático e a uma ideologia que promove, aberta e filosoficamente, um individualismo radical.
A evolução de alguns indicadores revela a magnitude e a direção das mudanças: a demanda por um Estado menos interventor subiu de 9% para 30%; a assimilação do conceito de democracia com a aspiração de igualdade caiu de 69% para 44%, e a “sede libertária” passou de 22% para surpreendentes 48%.
Esse último dado suscita uma das tensões contemporâneas mais delicadas: apesar de terem resolvido com sucesso questões relacionadas às liberdades individuais, democracias como a argentina (ou a espanhola ou a norte-americana) veem crescer uma demanda por “liberdade”, justamente em um contexto em que as desigualdades sociais são agravadas a ponto de desafiarem a estabilidade política. O debate público está impregnado de uma agenda libertária, furiosamente hostil a qualquer iniciativa igualitária, ao contrário das necessidades manifestas pelas fragmentadas sociedades contemporâneas.
O crescimento repentino de Milei não é um raio em céu azul ou mera erupção de uma raiva generalizada. É também o sintoma de uma virada ideológica para a direita nos valores e atitudes de uma parte importante da sociedade argentina. De fato, o ultraliberalismo econômico é um fato estranho para a cultura política argentina, historicamente caracterizada por sua tradição plebeia e por uma matriz de pensamento centrada no Estado.
Fim da polarização?
Milei é a consequência – e não a causa – da virada à direita da direita. O economista libertário é filho do PRO [Partido Propuesta Republicana] em duplo sentido. Em primeiro lugar, ele é filho do macrismo em termos discursivos. Milei é, com efeito, um prolongamento, e não uma interrupção, dos temas introduzidos pelo PRO na competição política argentina. Suas avenidas discursivas mais movimentadas (antipolítica, fúria antirregulação, indivíduo assediado pelo Estado) foram traçadas pela força liderada por Mauricio Macri. Em todo caso, podemos interpretar a novidade libertária como uma versão hiperbólica de uma ideologia que já foi delineada com maior timidez e melhores maneiras.
Mas Milei também é filho do PRO porque é o resultado direto de sua estratégia antipolítica. O macrismo dedicou-se durante anos a incitar a indignação e o ressentimento da sociedade contra a atividade política e, em certo sentido, acabou sendo vítima de seu próprio sucesso: a antipolítica devora seus pais.
De qualquer forma, uma interpretação generalizada da ascensão de Milei sugere que o avanço libertário estaria desintegrando a polarização política instalada no país há mais de uma década. Se sua força eleitoral for confirmada no ano que vem, Milei poderá eventualmente enfraquecer a dinâmica bipolar da competição política argentina. Em vez de duas grandes coalizões concentrando a maioria das preferências, haverá três espaços significativos.
No entanto, isso não implicaria a dissolução da polarização, com suas pronunciadas divergências ideológicas como centro de gravidade do debate público e da competição política. Quando examinadas as atitudes e orientações dos eleitores da Milei, surge uma evidência: eles compartilham o mesmo hemisfério ideológico dos eleitores do Cambiemos [coalizão liderada pelo PRO que levou Macri à presidência em 2015], registrando coincidências entre os dois segmentos em matéria tributária, papel do Estado, privatizações e, inclusive, niilismo político.
Longe de distender o conflito político, o crescimento de Milei é efeito da exacerbação da divisão entre os dois hemisférios ideológicos, além da oferta partidária que representa tais divergências. Resumidamente, Milei é filho da direitização da sociedade argentina, da política de desconfiança do PRO e, fundamentalmente, da polarização ideológica e afetiva argentina.
Política ou fatalidade
Vivemos tempos sombrios: expansão de uma paixão desigualitária em sociedades cada vez mais desiguais, ressurgimento de uma retórica reacionária de cunho neoconservador muito semelhante à retratada por Albert Hirschmann,[3] candidatos que estimulam a intolerância e questionam os direitos e as “certezas” do iluminismo democrático, um espaço público digital que acentua o isolamento cognitivo, uma pandemia que multiplicou a fragilidade social. O sentido das mutações em curso parece conspirar contra a democracia, concebida, mais do que como sistema de governo, como cultura, como horizonte de convivência e igualdade.
Entretanto, a política é o oposto da fatalidade: a imaginação e a ação política são capazes de fundar novos cenários e desafiar as fronteiras do possível. Em uma espécie de paradoxo (sociedades direitizadas, mas insatisfeitas, puniram seus governantes, principalmente de direita), até o final deste ano, a América Latina será governada majoritariamente por forças progressistas. Serão essas forças que devem disputar o objeto do mal-estar contemporâneo e aquelas que deverão relegitimar seus valores e programas por meio de resultados tangíveis e de um comportamento que iniba a política da desconfiança e a política das paixões tristes.
Ignacio Ramírez é sociólogo da Universidad de Buenos Aires (UBA) e diretor de trabalhos de pesquisa em Cultura, Política e Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid. Atua como consultor político e dirige o curso de pós-graduação em Opinião Pública e Comunicação Política da Flacso Argentina.
Javier Cachés é cientista político da UBA e mestre em Ciência Política (Universidad Torcuato Di Tella), docente e pesquisador.
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[1] François Dubet, La época de las pasiones tristes [A época das paixões tristes], Siglo XXI Editores, Buenos Aires, 2020.
[2] Cultura política de los argentinos, estudo nacional dirigido por Ignacio Ramírez e Luis Alberto Quevedo, Flacso, 2021.
[3] Albert O. Hirschmann, La retórica reaccionaria, Capital intelectual, Buenos Aires, 2021.