O fiasco da privatização das escolas na Suécia
Durante a campanha para as eleições gerais na Suécia, em 9 de setembro, o inesperado crescimento da direita xenofóbica ocultou o debate sobre o futuro dos serviços públicos. Encabeçando um governo minoritário há quatro anos, os sociais-democratas não conseguiram nem sequer limitar os lucros das empresas privadas que investiram na saúde ou na educação
“É uma escola duas em uma”, resume Elsa Heuyer. Essa professora de Francês do liceu Drottning-Blanka teve de aprender a “otimizar” o tempo e o espaço em benefício da AcadeMedia, a “empresa educativa” cotada em Bolsa que a emprega em tempo parcial: 28,7%. Situado na região sul de Estocolmo, seu liceu, um estabelecimento privado sob contrato (chamado friskola; plural: friskolor), divide espaço com outro do mesmo grupo. Como o lucro é obrigatório, Heuyer precisa cuidar de duas turmas na mesma classe: “Na prática, sou obrigada a dividir o tempo do curso por dois”.
Seus colegas professores de Espanhol, Sandra Nylen e Adrian Reyes, lecionam em tempo integral e ensinam também outra matéria – fato comum na Suécia. Cada um assiste quinze alunos, desempenhando o papel de mentor, como se diz em sueco. Por e-mail ou telefone, devem manter contato permanente com os pais a fim de controlar a frequência e o progresso dos alunos em todas as matérias. “Quando um aluno encontra dificuldades, a culpa é do mentor”, suspira Reyes. Assim, não é raro ver o professor ajudando o aluno a melhorar as notas em uma matéria que ele não ensina. “Sempre procuro garantir, junto aos alunos, que tudo caminhe bem, pois sei que o diretor vai me cobrar”, explica Nylen, nervosa. “Mas que fazer quando eles fracassam em várias matérias?”
O diretor do Drottning-Blanka “cobra” porque precisa de bons resultados para conservar seus alunos e atrair outros. Após a volta ao poder dos “partidos burgueses”, em 1991, o primeiro-ministro do partido dos moderados (do nome oficial Partido Moderado de União), Carl Bildt, implantou o sistema dos “cheques-educação”. Desde então, não há mais carteirinha escolar e as famílias podem matricular gratuitamente os filhos na escola privada de sua escolha. A prefeitura entrega ao estabelecimento um cheque, ou voucher, correspondente ao valor gasto por aluno do setor público que resida no município (um colegial de Estocolmo, por exemplo, custa 10 mil euros por ano). Resultado: quase inexistentes na década de 1990, os colégios particulares sob contrato representavam em 2017 quase 20% dos colégios suecos.1
A busca pelo “cliente satisfeito” leva a uma inflação de boas notas, facilitada pelo fato de os exames nacionais serem corrigidos pelos professores do mesmo estabelecimento dos alunos. A escola melhora a tal ponto os boletins, para cuidar da própria imagem, que pais e alunos podem obrigar o professor a rever as provas. “É à la carte”, zomba Heuyer, que no final de junho deixa de ministrar cursos suplementares para “corrigir” as notas de alunos descontentes com a avaliação. Muitos professores preferem passá-los de ano a lhes dar notas baixas e gerar um sentimento de fracasso, além de um excedente de trabalho e estresse.
Desse modo, numerosos alunos, pais e autoridades políticas alimentam uma ilusão de sucesso, enquanto o país vai caindo nas avaliações internacionais. Na última classificação do Programa Internacional de Avaliação Estudantil (Pisa, na sigla em inglês), em 2015,2 a Suécia ficou na média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE); já não ocupa os melhores lugares, como na primeira classificação, em 2000, e registra um claro recuo em Ciências e Matemática. Além disso, consagrando mais de 7% do PIB à educação, tornou-se o país europeu que mais gasta na área.3 A diferença diminui entre os bons alunos e os demais, sobretudo os de famílias de imigrantes. Paradoxalmente, os alunos continuam a afluir para as escolas privadas, ainda que, com perfil socioeconômico equivalente, os resultados sejam melhores nas escolas públicas (como na maior parte dos países ocidentais). De fato, como as escolas privadas atraem menos jovens das classes pobres, seus resultados parecem globalmente melhores.
Relação cliente-prestador
A concorrência da área privada influencia fortemente o sistema público, tanto mais que ela se beneficia de uma reforma pedagógica comum de individualização do aprendizado, que dá mais liberdade aos alunos – e prejudica os das famílias mais modestas. “O relacionamento entre aluno e professor se transforma no de cliente e prestador”, constata Henrik Wall, professor de História e Sociedade no colégio público de Skarpnäck, na área sul de Estocolmo. Seus três colegas e ele, reunidos em “equipe de trabalho”, cuidam de uns setenta alunos do 6º ano. Semanalmente ocorre um “conselho de alunos”, que ouve as sugestões dos interessados. Sentado à mesa de reuniões na sala dos professores, Wall ouve Ida Sjödin, que ensina Matemática, enumerar as reivindicações dos alunos: “Eles querem poder ir ao banheiro a qualquer hora, usar boné, mascar chiclete na classe e usar celular”. Sofia Berglin, professora de Biologia, intervém: “Os bonés não me incomodam”. Segue-se uma discussão. “Aceitamos os bonés e continuamos proibindo os celulares?”, pergunta Sjödin.
Wall afirma invejar a França, esse “país civilizado onde, ao que parece, os professores apenas preparam e dão as aulas, e prescrevem os deveres”. Aqui, além de vigiar a recreação e a cantina, a equipe docente organiza uma série de atividades: exames, eventos de integração, programas esportivos, agenda e informações gerais por intermédio do blog da equipe de trabalho. Esta se reúne toda semana para um encontro chamado aprendizagem colegial, que discute assuntos pedagógicos. O conjunto dos professores do colégio tem de produzir “documentos de reflexão” e fazer pesquisas sobre o ambiente de trabalho para a diretoria.
Baseando-se nos métodos das friskolor, os professores da rede pública precisam oferecer um acompanhamento individualizado, velando pela dinâmica de grupo. Precisam também realizar esse exercício de equilibrismo sem levantar a voz para não parecerem autoritários e serem rotulados como tais. Na aula de Matemática de Sjödin, a porta permanece totalmente aberta e os alunos têm o direito de ouvir música enquanto fazem os exercícios. “Isso melhora minha concentração”, explica Kevin em meio ao vaivém dos colegas que se levantam para buscar um lápis ou uma borracha, à disposição nas salas de aula. Alguns preferem trabalhar em dupla; ajudam-se e tagarelam em voz alta. Para aqueles que necessitam de silêncio, como Märta, são entregues protetores de ouvido.
Uma adolescente que prefere matar aula é convidada por sua mentor a tomar um chocolate quente. Berglin comunica aos colegas uma agenda personalizada para ela, ainda que ela não se comprometa a segui-la… Um garoto traquinas vai para a sala da psicóloga da escola, onde é recebido com doces. Faz-se de tudo para evitar o conflito e manter uma relação “simétrica” com o aluno, observa Wall. O objetivo é favorecer o diálogo e a negociação, com risco de permitir abusos de poder por parte dos adolescentes. Em 2017, o Departamento Sueco de Ambiente de Trabalho recebeu 767 denúncias de ameaças e violência nas escolas primárias, colégios e liceus, ou seja, duas vezes mais que em 2012. Essa violência se volta principalmente contra os professores.4
No colégio público de Skarpnäck, o mal-estar se traduz por um forte absenteísmo: a cada dia, faltam em média cerca de 10% dos professores. Quando não são substituídos por interinos de uma empresa privada, seus colegas presentes supervisionam as classes ou dão cursos suplementares em matérias que não são as suas, a título de “colaboração” e “flexibilidade”. Erika Frimodig, professora de Esportes e delegada sindical, diz que ensinou francês a iniciantes do 6º ano… durante dois anos: “Tenho noções de francês, minha filha mora em Paris”, explica ela em tom convicto.
Em 2018, uma nova emenda ao programa geral impõe o aprendizado por computador. O equipamento de informática se tornou obrigatório e sua qualidade constitui um argumento para atrair os alunos. O Drottning-Blanka fornece MacBook Air a seus alunos e professores, enquanto o colégio público de Skarpnäck adquiriu centenas de iPad e organiza conferências com convidados de fora, que estimulam o uso de computadores em classe. Todavia, apesar dos muitos utensílios de que dispõem em sua plataforma, os professores do liceu Drottning-Blanka ainda distribuem fotocópias e lápis: “Os alunos não gostam de ler na tela”, explica Heuyer, consternada com a dependência extrema da informática. Nylen reforça: “Na última quinta-feira, tivemos uma pane na internet. Vários alunos me perguntaram se a aula seria cancelada…”.
Um dos principais atores desse “mercado”, o grupo Kunskapsskolan (“escola do saber” em sueco), reivindica 13 mil alunos. O computador figura entre suas “seis competências do futuro”, conforme se lê em seu site na internet; ele propõe um método padronizado on-line, o Kunskapsskolan Education (KED), que faz do aluno “o ator de seu aprendizado”. O colégio de Enskede, a dois passos do de Skarpnäck, é seu estabelecimento-vitrine. Nas instalações de uma antiga empresa, perto de quinhentos alunos se apinham em apenas dois andares, compartimentados por paredes de vidro. Para o pátio, o estabelecimento aluga da prefeitura um campo de futebol.
Construídos na idade de ouro da escola sueca, os dois prédios do colégio de Skarpnäck, que acolhem mil alunos, se destacam pelo conforto. Voltados para o sul a fim de captar melhor a luz, abrigam dois ginásios de esportes no interior e duas quadras de basquete. Perto de um campo de futebol, ergue-se a cantina e, em cima, a biblioteca escolar.
Alunos sem biblioteca e sem livros
Os alunos de Kunskapsskolan não têm biblioteca. Aliás, nem livros eles têm! Após algumas reclamações de pais, eles dispõem, todavia, de uma licença de livros on-line para Biologia: e é tudo. Pedra angular de sua organização, as atividades dos alunos em papel serão logo abandonadas, para imensa tristeza dos professores. Mas, para a Kunskapsskolan, “as gerações futuras devem estar preparadas para um mundo em evolução constante e ser capazes de se adaptar a um mercado de trabalho imprevisível”, alardeia um vídeo promocional.
Toda semana, o aluno da Kunskapsskolan elabora sua própria agenda, segundo seu ritmo e suas necessidades. Entra e sai das “oficinas”, onde, inclinado sobre seu notebook, vai percorrendo as “etapas” do conteúdo on-line, que um professor presente acompanha. Um encontro semanal de quinze minutos com o mentor lhe permite pôr em dia seus “planos de ação”. Instalada na cafeteria, que faz as vezes de sala de aula, Stéphanie Arsenau-Buissière, professora de Inglês e Francês, alega “familiaridade” com seus alunos. Como afirma um vídeo promocional, todo funcionário da Kunskapsskolan deve ser ao mesmo tempo “mentor, facilitador, acompanhante pessoal, proficiente numa matéria, amigo e guia”.
Diretora-geral do grupo fundado por seu pai em 1999, Cecilia Carnefeldt coloca nas nuvens o sistema Kunskapsskolan, que, diz ela, favorece a autonomia dos alunos e exige menos professores. Sem dúvida, seu país despencou no Pisa, mas, a seu ver, essa classificação “não é uma referência”, principalmente por não levar em conta “a criatividade e o trabalho em equipe”. Contudo, ela própria matriculou seus filhos na escola do Castelo de Fredrikshovs, que afirma aplicar um método de ensino de Matemática criado em Cingapura, país que ocupava o primeiro lugar na classificação Pisa 2015. Ela defende o princípio dos lucros obtidos por estruturas privadas com base em fundos públicos: “Existem muitos fornecedores da iniciativa privada negociando com o Estado”, alega. “Alguns produzem móveis; outros, livros… Se você for sério em qualquer empreendimento, terá de obter lucros. Perder dinheiro não seria bom para os clientes… se é que posso empregar esse termo para os alunos.” Os lucros obtidos pela Kunskapsskolan são por enquanto reinvestidos a fim de permitir sua expansão para além das fronteiras suecas.
Uma missão complexa como a educação não pode ser considerada uma indústria, replica Samuel E. Abrams, diretor do Centro de Estudos da Privatização da Educação, da Universidade de Colúmbia, Estados Unidos. “Quem aufere lucros nesse setor tem a motivação implícita de contrariar os interesses dos cidadãos. Pais, contribuintes e legisladores não podem saber se os alunos aprendem o que devem aprender. Onde há lucros, aumenta a possibilidade de malversações.”
Profissão de professor não seduz mais
Estudos recentes mostram que as friskolor atraem mais as famílias prósperas. “Imigrantes e membros de famílias pobres não nos procuram”, confirma Arsenau-Buissière. “Temos quinhentos alunos na lista de espera e seus pais querem matriculá-los porque conhecem o sistema.” Pesquisador independente que estuda a segregação gerada por esse modo de organizar a educação, Per Kornhall acrescenta: “Quando acaba de se instalar num país cuja língua desconhece, você não tem muito acesso a boas informações. E as matrículas são feitas imitando os amigos, os vizinhos…”. Para compensar a falta de informação, no site da cidade de Estocolmo há um quadro comparativo que mostra uma lista das escolas segundo critérios como resultados de pesquisas de satisfação junto aos alunos, número de alunos por professor ou porcentagem de professores diplomados.
Ex-defensores da reforma reconhecem seu erro: “Subestimamos a força do poder econômico”, admite Åsa Fahlén, presidente do sindicato de professores Lärarnas Riksförbund. “A sociedade sueca é muito ingênua.” Ela nos recebe na sede do sindicato, situado em frente ao túmulo de Olof Palme, primeiro-ministro assassinado em 1986 e encarnação do socialismo à maneira sueca de outrora: trabalhista, terceiro-mundista, feminista e favorável a um Estado forte. Fahlén reconhece o papel desempenhado pelos dois principais sindicatos – Lärarnas Riksförbund e Lärarforbundet – na adoção das reformas: “Éramos favoráveis a escolas particulares com diferentes tipos de pedagogia”, admite ela, sorrindo. “Isso deveria aumentar o pluralismo, a diversidade, e favorecer uma concorrência benéfica para os salários. Mas o que aconteceu foi o contrário.”
Para Emil Bertilsson,5 professor de Ciências da Educação da Universidade de Uppsala, “os sindicatos contribuíram para a degradação da condição dos professores”. “Eles passam mais tempo redigindo relatórios do que lecionando”, explica sua colega Shirin Ahlbäck Öberg, professora pesquisadora na área de administração pública. “Tiramos da profissão todo o seu atrativo.” Em média, os professores reservavam apenas um terço de seu tempo para preparar e ministrar as aulas,6 contra metade na França.7
O grosso das tarefas administrativas visa mostrar resultados para o conselho municipal a que pertence a escola. “O Parlamento tentou limitar essas tarefas ladras de tempo, mas os conselhos continuaram exigindo relatórios de atividades e resultados”, conta Ahlbäck Öberg. “Seria necessário que os 290 conselhos se entendessem para deixar os professores trabalhar em paz, o que é muito difícil.” Privada assim de sua essência, a profissão já não seduz, tanto que um professor ganha, em geral, 200 euros a menos que o salário médio. “Filhos de professores não querem mais ser professores: é um sinal”, observa Bertilsson. “Além do mais, os bons alunos, para quem a escolha dessa profissão era outrora um caminho natural, foram aos poucos ignorando-a.” Nota-se uma queda no número de candidatos dos cursos de formação de professores, que se tornam cada vez menos seletivos.
Contratados diretamente pelas escolas com base em currículos e cartas de apresentação, os professores ficam submetidos às regras do mercado de empregos, o que agrava as desigualdades entre os estabelecimentos. “Os melhores querem trabalhar onde os alunos tiram notas mais altas”, observa Bertilsson.
Embora isso seja ilegal desde 2006, quase um quarto dos professores de colégio trabalharam sem diploma em 2017-2018, segundo a Skolverket, a agência de educação nacional. Como o diploma é exigido para a adesão a um sindicato, a mobilização se torna difícil. Alguns ignoram até que dispõem do direito de greve, conforme se vê por uma pergunta feita com frequência no site de um sindicato. Eis uma verdadeira ofensa à rica história das lutas outrora conduzidas por uma profissão que, cansada da guerra, acabou depondo as armas.
*Violette Goarant é jornalista em Estocolmo.